Alexandrina de Balasar

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CAPÍTULO 21

Prossegue e acaba este último grau de oração. Diz o que a alma sente por continuar a viver no mundo; e como o Senhor a esclarece dos enganos deste mesmo mundo. Tem boa doutrina.

1.  Pois acabando o que ia dizendo, digo que Deus não tem aqui necessidade do consentimento da alma; já Lho deu e sabe que voluntariamente se entregou em Suas mãos e que não O pode enganar, porque é sabedor de tudo. Não é como aqui, que toda a vida está cheia de enganos e falsidades. Quando pensais que tendes conquistado um coração, segundo se vos mostra, vindes a descobrir que tudo é mentira. Não há quem viva em tanto desassossego, em especial se mete de permeio um pouco de interesse.

Bem-aventurada a alma que o Senhor traz a entender verdades? Oh! que estado este para os reis! Como lhes valeria muito mais procurá-lo, que grande senhorio! Que rectidão não haveria no reino! Quantos males não se escusariam e teriam evitado! Aqui não só teme perder vida nem honra por amor de Deus. Que grande bem este para quem está. mais obrigado a olhar à honra do Senhor de que à de todos os inferiores, pois hão-de ser os reis a quem se segue! Por um ponto de aumento na fé e por se ter dado em algumas coisas luz aos hereges, perderia mil reinos e com razão. É outro ganho: o de um reino que não se acaba. Com uma só gota que uma alma prove da água que nele há, lhe causa asco tudo o que é de cá. Pois, quando estiver de todo engolfada, que será?

2.  Oh, Senhor! Se me désseis ocasião para dizer isto em altas vozes! Não me acreditariam, como fazem a muitos que o sabem dizer de outro modo do que eu; mas, ao menos, sentir-me-ia satisfeita. Teria em pouco a vida para dar a entender uma só verdade destas, julgo eu. Depois não sei o que faria, que não há que fiar de mim. Sendo eu, porém, a que sou, dão-me tão grandes ímpetos de dizer isto aos que governam, que me desfazem. E, por não poder mais, volto-me para Vós, Senhor meu, a pedir-Vos remédio para tudo. E bem sabeis Vós que mui de boa vontade me despojaria das mercês que me tendes feito, contanto que ficasse em estado de Vos não ofender, e as daria aos reis; porque sei que seria impossível consentirem eles coisas que agora se consentem, nem deixar de haver grandes bens.

3.  Oh! Deus meu! Dai-lhes a entender aquilo a que estão obrigados, pois Vós os quisestes assinalar na terra de modo que até tenho ouvido dizer que há sinais no céu quando levais algum deles. Quando penso nisto, certo é, Rei meu, fazer-me devoção o Vós quererdes que, até nisto, eles entendam que Vos devem imitarem vida, pois que, de algum modo, à sua morte, há sinal no céu como quando Vós morrestes.

4.  A muito me atrevo. Rasgue isto V. Mercê, se lhe parecer este mal e creia que lho diria melhor em presença, se pudesse ou pensasse que me haviam de acreditar, porque os encomendo muito a Deus e quereria fosse com proveito. Tudo isto faz aventurar a vida, que desejo muitas vezes perder; era aventurar-me a ganhar muito por pouco preço. Porque não há já quem viva, vendo a olhos vistos o grande engano em que andamos e a cegueira que trazemos.

5.  Chegada uma alma aqui, não são só desejos o que ela tem por Deus; Sua Majestade dá-lhe forças para os pôr por obra. Nenhuma coisa se lhe põe diante, em que pense podê-Lo servir, a que não se abalance, e não faz nada, porque ― como digo ― vê claramente que tudo é nada, a não ser contentar a Deus. Trabalho é o não haver coisa que se ofereça às que são de tão pouco préstimo, como eu. Sede Vós, meu Deus, servido que venha tempo em que eu possa pagar algum cornado do muito que Vos devo. Ordenai Vós, Senhor, como Vos aprouver, que esta Vossa serva Vos sirva em alguma coisa. Mulheres eram outras e fizeram coisas heróicas por amor de Vós; eu não sirvo senão para tagarelar e assim não quereis, Deus meu, meter-me em obras. Tudo quanto hei-de servir vai-se em palavras e desejos e, ainda para isto, não tenho liberdade, porque, se porventura a tivera, faltaria em tudo. Fortalecei Vós a minha alma e disponde-a primeiro, Bem de todos os bens e Jesus meu, e ordenai logo modo e meios com que faça alguma coisa por Vós, porque não há já quem sofra receber tanto e nada pagar. Custe o que custar, Senhor, não queirais que me apresente diante de Vós com as mãos tão vazias, pois, conforme às obras, se há-de dar o prémio. Aqui está a minha vida, aqui está minha honra e minha vontade; tudo Vos dei; Vossa sou, disponde de mim conforme Vos agradar. Bem vejo, meu Senhor, o pouco que posso; mas chegada a Vós, do alto desta atalaia donde se vêem as verdades, não Vos afastando Vós de mim, tudo poderei. Se Vos afastais, por pouco que seja, irei para onde estava, que era o inferno.

6.  Oh! o que é uma alma, que se vê aqui, ter de voltar a tratar com todos, olhar e ver a farsa desta vida tão mal concertada, gastar tempo a cuidar do corpo, dormindo e comendo! Tudo a cansa. Não sabe como fugir. Vê-se encadeado e presa. Sente, então, mais verdadeiramente o cativeiro que trazemos com os corpos e a miséria da vida. Conhece a razão que tinha S. Paulo de suplicar a Deus que o livrasse dela, dá vozes como ele, pede a Deus liberdade, como outras vezes tenho dito. Aqui, porém, é com tão grande ímpeto, que muitas vezes parece que a alma quer sair do corpo a buscar esta liberdade, já que não a tiram dele. Anda como que vendida em terra estranha e o que mais a aflige é não encontrar muitos que se queixem com ela e peçam isto mesmo, senão que o mais normal é desejar viver. Oh! se não estivéssemos apegados a nada, nem tivéssemos posto o nosso contento em coisa alguma da terra, como a pena que sentiríamos em viver sempre sem Ele, temperaria o medo da morte com o desejo de gozar da vida verdadeira!

7.  Considero algumas vezes, que, se alguém como eu, apesar de ter tão tíbia caridade e tão incerto o descanso verdadeiro por não o terem merecido minhas obras, sinto muitas vezes ― só por o Senhor me ter dado esta luz ― tão grande pesar de me ver neste desterro, qual não seria o sentimento dos santos? Que devem ter passado São Paulo, a Madalena e outros seme- lhantes em quem tão crescido estava este fogo de amor de Deus? Devia ser para eles um contínuo martírio.

Parece-me que me dá algum alívio e descanso o trato de pessoas a quem posso falar destes desejos; digo, desejos com obras, porque há algumas pessoas que se julgam estar desprendidas de tudo e assim o apregoam e havia de ser, pois o seu estado e os muitos anos que há, desde que algumas começaram caminho de perfeição, assim o pede. Contudo, esta alma conhece bem, e de longe, os que o são só de palavras ou os que já confirmaram estas palavras com obras. É que já compreendem o pouco proveito que dão uns e o muito os outros. É coisa que, quem tem experiência, vê muito claramente.

8.  São, pois, estes os efeitos que realizam os arroubamentos quando são do espírito de Deus. Verdade é que há mais e menos. Digo menos, porque no princípio, embora cause estes efeitos, não estão experimentados com obras e assim não se pode entender que os têm. Também vai crescendo a alma em perfeição, procurando que não haja memória de teia de aranha e isto requer algum tempo. E quanto mais crescem nela o amor e a humildade, maior cheiro exalam de si estas flores de virtudes, para ela e para os outros.

Verdade é que, num rapto destes, o Senhor pode operar de maneira a que fique à alma pouco trabalho em adquirir a perfeição. Ninguém poderá mesmo acreditar, se não o tiver experimentado, o que o Senhor dá aqui; não há ― a meu parecer ― diligência nossa que a isso tanto possa chegar. Não digo que, com o favor do Senhor, trabalhando a alma durante muitos anos e servindo-se dos meios que descrevem os que têm escrito sobre oração, seus princípios e meios, não cheguem à perfeição e a muito desapego com grande custo. Mas não será, porém, em tão breve tempo nem sem nenhum esforço da nossa parte, como obra aqui o Senhor, pois determinadamente tira a alma da terra e lhe dá senhorio sobre quanto nela há, e isto ainda que nesta alma não haja mais merecimentos que havia na minha, o que sem encarecimento posso dizer, não era quase nenhum.

9.  O motivo pelo qual o faz Sua Majestade, é porque quer, e fá-lo como quer, e ainda que não haja na alma disposição, dispõe-na para receber o bem que Sua Majestade lhe dá. Assim, nem sempre concede suas mercês por as terem merecido, cultivando bem o horto, embora esteja muito certo que, a quem faz isto bem e procura desapegar-se, não deixe Sua Majestade de regalar. É, porém, de Sua vontade mostrar algumas vezes Sua grandeza na terra que é mais ruim, como tenho dito, e dispõe-na para todo o bem, de maneira que pareça, em certo modo, que já não é livre para voltar a viver com ofensas a Deus, como costumava. Tem o pensamento tão habituado em entender o que é verdadeira verdade, que tudo o mais lhe parece jogo de meninos. Ri-se consigo mesma algumas vezes, quando vê pessoas sérias, de oração e religião, fazer muito caso duns pontos de honra que esta alma tem já debaixo dos pés. Dizem que é discrição e autoridade do seu estado para maior proveito. Sabe ela, no entanto, muito bem que mais aproveitaria num só dia em que pospusesse aquela autoridade por amor de Deus, que, com ela, em dez anos.

10. Assim vive esta alma vida trabalhosa e sempre com cruz, mas vaiem grande aumento. Quando se dá a conhecer aos que, com ela tratam, vêem que está lá muito no cume; e dentro em pouco estará muito mais melhorada, porque Deus a vai favorecendo sempre mais. É alma sua, é Ele que a tem já a Seu cargo e assim a ilumina, dir-se-ia que com a Sua assistência a está sempre guardando para que não O ofenda, e favorecendo e despertando para que O sirva.

Chegando a minha alma a ponto de que Deus lhe fizesse esta tão grande mercê, cessaram os meus males e o Senhor deu-me fortaleza para sair deles. Já tanto se me dava estar metida nas ocasiões e com pessoas que me costumavam distrair, como não. Antes, até me ajudava o que me costumava causar dano. Tudo me era depois meio para conhecer melhor a Deus e amá-Lo e ver o que Lhe devia e ter pesar do que eu havido sido.

11. Bem entendia eu que aquilo não vinha de mim nem o tinha ganho com minhas diligências, pois não tinha ainda havido tempo para isso. Sua Majestade havia-me dado fortaleza para isso, só por Sua bondade.

Até agora, desde que o Senhor me começou a fazer esta mercê destes arroubamentos, sempre tem vindo crescendo esta fortaleza e Ele, por Sua bondade, tem metido de Sua mão para eu não voltar atrás. Nem mesmo me parece ― e assim é ― que faço alguma coisa de minha parte, senão que entendo claramente que o Senhor é O que opera.

E, por isto, me parece que almas a quem o Senhor faz estas mercês, indo com humildade e temor, sempre compreendendo que o Senhor mesmo é Quem o faz, e nós quase nada, se podem meter entre qualquer gente. Por mais divertida e viciosa que seja, nada fará ao caso, nem a moverá em nada; antes, como tenho dito, a ajudará e ser-lhe-á motivo para tirar muito maior proveito. São já almas fortes que o Senhor escolhe para fazer bem a outras, ainda que esta fortaleza não lhes venha delas. Pouco a pouco, em chegando até aqui uma. alma, o Senhor vai-lhe comunicando segredos muito grandes.

12. Aqui é que são as verdadeiras revelações, êxtases e as grandes mercês e visões; e tudo contribui para humilhar e fortalecer a alma e faz com que tenha em menos conta as coisas desta vida e conheça mais claramente as grandezas do prémio que o Senhor tem preparado para os que O servem.

Praza a Sua Majestade que a grandíssima liberalidade que tem tido com esta miserável pecadora sirva, de algum modo, para que se esforcem e animem os que isto lerem, a deixar tudo, de todo em todo, por Deus. Pois, se tão cabalmente paga Sua Majestade que ainda nesta vida se vê claramente o prémio e o lucro que têm os que O servem, que será na outra?

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