Alexandrina de Balasar

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CAPÍTULO 20

Trata da diferença que há entre a união e arroubamento. Declara o que é arroubamento e diz alguma coisa sobre o bem que existe na alma que o Senhor, pela Sua bondade, faz chegar a Ele. Enumera os efeitos que produz. É muito para admirar.

1.  Quereria eu saber declarar, com o favor de Deus, a diferença que há a entre união e arroubamento. Arroubamento ou rapto ou o que chamam voo de espírito ou arrebatamento, é tudo o mesmo. Digo que estes diferentes nomes são tudo uma e mesma coisa e também se chama êxtase. É grande a vantagem que leva à união; seus efeitos são muito maiores e realiza outras muitas operações. É que a união parece princípio, meio e fim; e assim é quanto ao interior; mas tal como estes outros favores são iras em mais alto grau, assim também produz efeitos interior e exteriormente. Declare isto o Senhor, como tem feito no demais, porque certo é que, se Sua Majestade não me tivesse dado a entender o modo e maneira de poder dizer alguma coisa disto, eu não o saberia.

2.  Consideremos agora que esta última água, de que falamos, é tão Copiosa que, se não fora não o consentir a vida temporal, poderíamos crer que está connosco, aqui nesta terra, esta nuvem da soberana Majestade. Mas, quando agradecemos este grande bem, acorrendo com obras, conforme as nossas forças, o Senhor colhe e levanta a alma, digamos agora, à maneira como as nuvens colhem os vapores da terra. Tenho ouvido assim isto: as nuvens ou o sol colhem os vapores, e sobe a nuvem ao céu. Assim, Deus levanta a alma toda e leva-a consigo e começa-lhe a mostrar coisas do reino que lhe tem preparado. Não sei se quadra a comparação, mas é, de facto, assim que isto se passa.

3.  Nestes arroubamentos, parece que a alma não anima o corpo; e assim, este sente, muito ao vivo, faltar-lhe o calor natural e vai-se esfriando, embora seja com grandíssima suavidade e deleite. Aqui não há meio algum para se poder resistir. Na união, como estamos em terreno nosso, temos meios para isso; embora seja com custo e à força, pode-se quase sempre resistir. Aqui, não só as mais das vezes nenhum remédio há, senão que muitas, sem prevenção do pensamento, sem nenhuma ajuda nossa, vem um ímpeto tão acelerado e forte, que sentis e vedes levantar-se esta nuvem ou esta águia caudalosa e colher-vos em suas asas.

4.  E digo que se entende e vos vedes levar e não sabeis para onde. É que, embora seja com deleite, a fraqueza da nossa natureza faz-nos temer ao princípio. É preciso ser alma determinada e animosa ― muito mais do que para o que já ficou dito ― para arriscar tudo, venha o que vier, e abandonar-se nas mãos de Deus e ir, de bom grado, aonde nos levarem, pois vos levam por mais que vos pese. E é em tanto extremo, que muitas vezes quisera eu resistir e emprego todas as minhas forças, em especial algumas quando é em público e outras a sós, temendo ser enganada. Em algumas podia eu algo; porém, com grande quebrantamento, como quem peleja com um homenzarrão forte, ficava eu depois cansada. Outras, era impossível resistir, senão que me levava a alma e quase de ordinário a cabeça ia atrás dela sem eu a poder deter e algumas vezes todo o corpo a ponto de o levantar.

5.  Isto tem sido poucas vezes. Uma delas foi quando estávamos todas juntas no coro, e indo a comungar, estando de joelhos. Deu-me isto grandíssima pena, pois me parecia coisa muito extraordinária e logo haveria de ser muito notada. Assim mandei às irmãs ― porque foi agora depois que tenho ofício de prioresa ― que não o dissessem. De outras vezes, em começando a ver que o Senhor ia fazer o mesmo, estendia-me no chão e aproximavam-se a deter-me o corpo e, no entanto, não deixava de se ver. Uma delas foi estando presente senhoras principais, pois era a festa do Orago, durante o sermão. Supliquei muito ao Senhor que jamais quisesse dar-me mercês que tivessem manifestações exteriores; porque eu já estava cansada de andarem tanta conta e aquela mercê podia-ma fazer o Senhor sem que se percebesse. Parece que, por Sua bondade, foi servido de me ouvir, pois nunca até agora a tenho tido; verdade é que foi há pouco. É assim que me parecia, quando queria resistir, que desde a sola dos pés me levantavam forças tão grandes que não sei a que as comparar. Eram com muito mais ímpeto que estas outras coisas de espírito de que tenho falado e assim ficava feita em pedaços; porque é grande peleja. Enfim, de pouco aproveita quando o Senhor quer, pois não há poder contra o Seu poder. Outras vezes é Ele servido em contentar-se com que vejamos que nos quer fazer a mercê e que não falha por parte de Sua Majestade. Resistindo-se por humildade, deixa os mesmos efeitos como se de todo se consentisse.

7.  Naqueles a quem faz isto, grandes são os efeitos. O primeiro é mostrar-se o grande poder do Senhor e como, da nossa parte, não temos nenhum, quando Sua Majestade quer, para deter o corpo ― e tão-pouco a alma ― nem somos senhores dele. Mas, por muito que nos pese, vemos que há alguém superior e que estas mercês são dadas por Ele e que, por nós mesmos, não podemos nada em nada. Imprime-se muita humildade. E até confesso que me fez grande temor ao princípio, e grandíssimo, ver-se assim levantar um corpo da terra, embora o espírito o leve atrás de si e seja com grande suavidade, se não se resiste. Não se perdem os sentidos; eu, pelo menos, estava em mim, de maneira que podia compreender que era levada. Mostra a majestade de quem pode fazer aquilo, que se eriçam os cabelos e fica um grande temor de ofender a tão grande Deus. Este envolto em grandíssimo amor que se cobra de novo a quem vemos que o tem tão grande, a um verme tão podre, que parece não se contentar com levar a Si tão deveras a alma, senão que também quer o corpo, ainda que tão mortal e de terra tão suja, como se tornou por tantas ofensas.

8.  Também deixa um desapego estranho que eu não saberei dizer como é. Parece-me poder dizer que é de algum modo diferente; digo que é mais que estas outras coisas de mero espírito. Porque embora se esteja, quanto ao espírito, com todo o desapego das coisas, aqui parece que o Senhor quer que até o corpo o ponha por obra. Cria-se uma estranheza nova para com as coisas da terra, que torna a vida muito mais penosa.

9.  Depois dá um pesar que nem a podemos atrair nem, uma vez que veio, se pode afastar. Muito quisera eu dar a entender esta grande pena e creio que não poderei, mas alguma coisa direi se souber. Há-de notar-se que estas coisas, que agora digo, são muito lá para o fim, depois de todas as visões e revelações que mais adiante descreverei; e no tempo em que costumava ter oração na qual o Senhor me dava tão grandes gostos e regalos, agora, ainda que isto não cesse algumas vezes, o mais frequente e o mais habitual é esta pena que agora direi.

Ora é maior, ora menor. De quando é maior quero eu agora falar, porque, mais adiante; falarei destes grandes ímpetos que me aconteciam quando o Senhor me quis dar os arroubamentos, os quais não têm ― a meu parecer ― tanta comparação com isto como uma coisa muito corporal com uma muito espiritual e creio que não ó encareço muito. É que parece que aquela pena ― embora a sinta a alma ― é em companhia do corpo; ambos parecem participar dela, mas não com o extremo do desamparo desta.

Para isto ― como tenho dito ― não pomos nada da nossa parte. Assim muitas vezes, a desoras, vem um desejo que não sei como se move, e deste desejo que penetra toda a alma num momento, ela começa a afligir-se tanto que sobe muito acima de si e de todo o criado. Põe-na Deus tão alheia a todas as coisas que, por muito que se esforce, nenhuma lhe parece haver sobre a terra que a acompanhe, nem ela o quisera, senão morrer naquela soledade. Se lhe falam e se ela quiser empregar toda a sua força para responder, de pouco lhe aproveita, porque o seu espírito, por mais que ela faça, não se aparta daquela soledade.

E, apesar de me parecer que Deus está então longíssimo, às vezes Ele comunica as Suas grandezas do modo mais estranho que se pode pensar. Assim, nem se sabe dizer, nem creio que o acreditará nem compreenderá quem não houver passado por isso; porque não é comunicação para consolar, senão para mostrar a razão que a alma tem de se afligir por estar ausente do Bem que em Si possui todos os bens.

10. Com esta comunicação cresce o desejo e o extremo de soledade em que se vê, com uma pena tão aguda e penetrante, que, embora a alma já estivesse posta naquele deserto, parece-me que ao pé da letra, se pode então dizer o que disse o real Profeta estando na mesma soledade: «Vigilavi, et factus sum sicut passer solitarius in tecto». Senão que a ele, como santo, lhe daria o Senhor a sentir isto num modo mais excessivo. E de tal maneira se me representa então este versículo, que me parece que o vejo em mim e consola-me ver que outras pessoas ― quanto mais sendo. elas tais ― sentiram tão grandes extremos de soledade.

Parece que a alma não está em si, senão no telhado ou tecto de si mesma e de tudo quanto é criado, porque até acima da parte muito superior da alma, me parece que ela está.

11. Outras vezes parece que a alma anda como necessitadíssima, dizendo e perguntando a si mesma: «Onde está o teu Deus?». É de notar que a tradução destes versos eu não sabia bem qual era e, depois que a compreendi, consolava-me de ver que mos havia trazido Deus à memória sem procurá-lo eu. Outras vezes me recordava do que diz S. Paulo: que estava crucificado para o mundo. Não digo que isto seja assim, bem vejo que não; mas parece-me estar assim a alma: nem do Céu lhe vem consolo nem está nele, nem da terra o quer nem está nela; está como crucificada entre o céu e a terra, padecendo sem lhe vir socorro de nenhum lado. Porque o que lhe vem do Céu, (que é, como tenho dito, uma notícia de Deus admirável, muito acima de tudo o que podemos desejar), é para mais tormento. Acresce o desejo de maneira que ― a meu parecer ― a intensidade da dor tira algumas vezes os sentidos, mas está-se pouco tempo sem eles. Parecem transes de morte, mas traz consigo um tão grande contentamento este padecer que não sei a que o comparar. É um duro martírio saboroso, pois tudo quanto se pode representar à alma de coisas da terra ― embora seja do que lhe costuma dar mais prazer ― nenhuma admite; logo parece lançá-lo para longe de si.

Bem entende que não quer senão a seu Deus, mas d'Ele não ama uma coisa particular; e a Ele todo inteiro que quer e não sabe o que quer. Digo que não sabe porque a imaginação não lhe representa nada; nem penso que, durante muito tempo daquele em que está assim, operam as potências, tal como na união e no arroubamento as suspende o gozo, aqui é a dor.

12. Oh, Jesus! Quem pudesse dar isto bem a entender a V Mercê, até para que me dissesse o que é, pois nisto anda agora sempre a minha alma! O mais normal ― em se vendo desocupada ― é ficar nestas ânsias de morte e teme, quando vê que começam, porque sabe que não há-de morrer. Mas, chegada a isto, o que houvesse de viver quereria fosse neste padecer; embora seja tão excessivo que a natureza mal o pode suportar. E assim, algumas vezes, quase me falta de todo o pulso ― segundo dizem algumas das irmãs que então se chegam a mim e isto já melhor entendem ― e sinto as canas dos braços abertas e as mãos tão hirtas; que eu, algumas vezes, não as posso juntar e assim me ficam dores até ao outro dia nos pulsos e no corpo, parece que se desconjuntaram.

13. Eu bem penso que, alguma vez, há-de ser o Senhor servido, se isto vai por diante como agora, que se acabe com acabar a vida, pois, a meu parecer, bastante é para isso tão grande pena, mas eu não o mereço. Então toda a ânsia é morrer. Não me recordo do purgatório nem dos grandes pecados que tenho feito, pelos quais merecia o inferno. Tudo se me olvida com aquela ânsia de ver a Deus e aquele deserto e soledade parece melhor à alma, que toda a companhia do mundo.

Se alguma coisa lhe pudesse dar consolo é tratar com quem tivesse passado por este tormento; mas ver que, embora se queixe dele, ninguém, segundo lhe parece, a há-de acreditar!

14. Também a atormenta ser esta pena tão grande que não quisera solidão como em outras, nem companhia, a não ser com quem se pudesse queixar. É como quem tem a corda ao pescoço e se está afogando, e procura tomar fôlego. Assim parece-me que este desejo de companhia provém da nossa fraqueza, porque nos põe em perigo de morte. Isto sim, de certo, que o faz. E tenho-me visto nesse perigo algumas vezes com grandes enfermidades e ocasiões, como tenho dito, e creio poder dizer que este é tão grande como todos os outros. E assim, o desejo que o corpo e a alma têm de não se apartarem, é que faz pedir socorro para tomar fôlego e, com dizê-lo e queixar-se e distrair-se, buscar remédio para viver, muito contra a vontade do espírito ou da parte superior da alma que não quereria sair desta pena.

15. Não sei se atino no que digo ou se o sei dizer, mas bem me parece isto passar-se assim. Veja, V. Mercê que descanso posso ter nesta vida; pois o que eu tinha -que era a oração e soledade, porque ali me consolava o Senhor-é agora habitual este tormento. É, porém, tão saboroso e a alma vê que é de tanto preço, que já lhe quer mais que a todos os regalos que costumava ter. Parece-lhe mais seguro, porque é caminho de cruz e contém em si um gosto de muito valor, a meu parecer, porque dele não participa o corpo, senão da pena somente e é a alma a que padece e goza sozinha do gozo e contento que dá este padecer.

Eu não sei como isto possa ser, mas sei que é assim. E, segundo penso, eu não trocaria esta mercê que o Senhor me faz ― e muito de Sua mão e, como tenho dito, nada adquirida por mim, porque é muito sobrenatural ―, por todas as que depois direi. Não digo todas juntas, senão tomada cada uma de per si. E não se deixe de ter na lembrança que é depois de tudo o que vai escrito neste livro e em que agora metem o Senhor.

16. Estando eu a princípio com temor (como me acontece quase sempre a cada nova mercê que me faz o Senhor, até que, com a continuação, Sua Majestade me infunde segurança), Ele disse-me que não temesse e a tivesse em mais conta que todas as que me tinha feito. Nesta pena se purifica a alma e se lavra e purifica, tal como o ouro no crisol, a fim de melhor poder receber os esmaltes de seus dons, e que ali se purificava pelo que havia de estar no purgatório.

Bem entendia que era grande mercê, mas fiquei com muita mais segurança e o meu confessor disse-me que era bom. E embora eu temesse por ser tão ruim, nunca pude crer que fosse mau; era antes o muito sobrado bem que me fazia temer, lembrando-me quão mal o havia merecido. Bendito seja o Senhor que tão bom é. Amen.

17. Vejo que saí do meu propósito, porque comecei a falar de arroubamentos e isto que disse é ainda mais que arroubamento, e assim deixa os efeitos mencionados.

18. Agora voltemos aos arroubamentos, ao que neles acontece mais ordinário.

Digo que muitas vezes me parecia que me deixava o corpo tão leve que dele me tirava todo o peso; e algumas era tanto à força que quase não me apercebia pôr os pés no chão. Pois, quando a alma está em arroubamento, o corpo fica muitas vezes como morto, sem nada poder fazer por si e, tal como é tomado por este arroubamento, assim se fica sempre: ou em pé, ou sentado, ou mãos abertas, ou fechadas. E ainda que poucas vezes se percam os sentidos, algumas tem-me acontecido de os perder de todo, porém poucas vezes e por pouco tempo. Normalmente, o sentido turva-se e, ainda que nada possa fazer por si quanto ao exterior, não deixa de entender e ouvir, mas como de longe.

Não digo que entenda e ouça quando está no maior auge deste ímpeto (chamo o mais subido, aos momentos em que se perdem as potências, porque estão muito unidas com Deus), porque então não vê, nem ouve, nem sente, segundo me parece. Mas, como disse na oração de união de que falei atrás, esta transformação da alma toda em Deus dura pouco; mas no tempo que dura, nenhuma potência se sente, nem sabe o que ali passa.

Deve ser para que não se compreenda enquanto vivemos na terra; pelo menos Deus não o quer; por não termos capacidade para isso. Tenho-o visto por mim.

19. Perguntar-me-á V Mercê, como é que, algumas vezes, dura tanto tempo o arroubamento. Muitas vezes, o que se passa comigo é que ― como disse na oração passada ― se goza com intervalos. E muitas vezes se engolfa a alma ou a engolfa o Senhor em Si, para melhor dizer, e, detendo-a assim um pouco, fica-se só com a vontade. Parece-me que este bulício destas outras duas potências é como o de uma linguetazita destes relógios de sol, que nunca pára; mas quando o Sol da Justiça quer, fá-las deter.

Digo que isto é por pouco tempo. Mas, como foi grande o ímpeto e levantamento de espírito, embora estas potências tornem a mexer-se, permanece engolfada a vontade e, como senhora de tudo, faz aquela operação no corpo. Já que as outras duas potências buliçosas a querem estorvar ― e de inimigos os menos ― não a estorvem também os sentidos e assim faz com que estejam suspensos, porque assim o quer o Senhor. E, na maior parte das vezes, estão cerrados os olhos, ainda que não os queiramos cerrar; e, se alguma vez estão abertos - como já disse -, não se atina nem se adverte no que vê.

20. Aqui é muito menos o que o corpo pode fazer por si, para que, quando se tornarem as potências ajuntar, não haja tanto que fazer. Por isso, a quem o Senhor der isto, não se desconsole quando se vir assim atado o corpo durante muitas horas e o entendimento e a memória às vezes distraídos. Verdade é estarem estas potências habitualmente embebidas em louvores a Deus ou em querer compreender o que se passou por elas e ainda para isto não estão bem despertas, senão como uma pessoa que tenha dormido muito e sonhado e ainda não acabou de despertar.

21. Declaro-me tanto nisto porque sei que há agora, mesmo neste lugar, pessoas a quem o Senhor faz estas mercês, e se os que as governam não passaram por isto, parecer-lhes-á, talvez, que elas hão-de estar como mortas no arroubamento, em especial se não são letrados e é lástima o que se padece com os confessores que não o compreendem, como direi depois. Porventura não saberei o que digo; V Mercê o entenderá, se eu atinar em alguma coisa, pois o Senhor já lhe deu experiência disso, embora, como não é de há muito tempo, talvez não o tenha ainda considerado tanto como eu.

Assim é que, embora muito procure fazê-lo, durante bom espaço de tempo, não há forças no corpo para se poder menear; todas as levou consigo a alma. Muitas vezes fica são ― pois estava bem enfermo.e cheio de grandes dores ― e com mais capacidade, porque é grande coisa o que ali se dá, e quer o Senhor algumas vezes, como repito, que goze o corpo, pois já obedece ao que a alma quer. Depois que volta a si, se foi grande o arroubamento, acontece andarem um dia ou dois, e até três, tão absortas as potências ou a alma como embevecida, que parece não anda em si.

22. Aqui é a pena de ter de voltar a viver; aqui o nascerem-lhe asas para bem voar; já lhe caiu a penugem. Aqui se levanta já de todo a bandeira por Cristo, pois outra coisa não parece senão que o alcaide-mor desta fortaleza subiu, ou que o levaram à torre mais alta a levantar bandeira por Deus. Olha para os de baixo como quem está a salvo; já não teme os perigos, antes os deseja, como pessoa a quem, de certa maneira, ali foi dada segurança da vitória. Aqui se vê mui claramente o pouco em que tudo o que é cá de baixo se há-de estimar e a ninharia que tudo é. Quem está no alto alcança muita coisa; já não quereria querer, nem quisera ter livre alvedrio, e assim o suplica ao Senhor. Dá-lhe as chaves da sua vontade.

Eis aqui o hortelão feito alcaide-mor: não quer fazer outra coisa senão a vontade do Senhor; nem deseja ser senhor de si, nem de nada, nem dum pêro deste horto... Se alguma coisa de bom nele houver, que o reparta Sua Majestade. Doravante não quer coisa própria, senão que Ele disponha de tudo conforme à Sua glória e à Sua vontade.

23. E, de facto e em verdade, é assim que se passa tudo isto, se os arroubamentos são verdadeiros, pois fica a alma com os efeitos e o aproveitamento que fica dito. Se estes assim não fossem, duvidaria eu muito virem os arroubamentos de Deus; antes temeria não fossem os «enraivecimentos» de que fala S. Vicente. Isto entendo-o eu, e tenho visto por experiência que a alma fica aqui senhora de tudo e com liberdade, até em menos de uma hora, que nem ela se pode conhecer. Bem vê que para isto nada fez, nem sabe como lhe foi dado tanto bem; mas entende claramente o grandíssimo proveito que cada rapto destes traz consigo.

Não há quem o acredite se não passou por isto; e assim não dão crédito à pobre alma por a terem visto tão ruim e tão depressa a verem pretender fazer coisas tão arriscadas; pois, logo dá em não se contentar com servir em pouco ao Senhor, senão no mais que ela puder. Pensam que é tentação e disparate. Se compreendessem que isto não nasce dela, senão do Senhor, a Quem já entregou as chaves da sua vontade, não se espantariam.

24. Tenho para mim que uma alma, que chega a este estado, já não fala nem faz coisa alguma por si mesma, senão que, de tudo quanto ela há-de fazer, tem cuidado este Soberano Rei. Oh! valha-me Deus, quão claramente se entende aqui a declaração do versículo do Salmo 54 e se vê, que tinha razão o salmista ― e a terão todos ― em pedir asas de pomba! Entende-se claramente que é voo o que o espírito dá para se levantar acima de tudo o criado e de si mesmo, em primeiro lugar; mas é voo suave, é voo deleitoso, voo sem ruído.

25. Que senhorio tem uma alma a quem o Senhor chega até aqui, que a tudo atende sem ficar nisso enredada! Que envergonhada está do tempo em que o ficava! Que espantada da sua cegueira! Como lastima os que estão nela, em especial se é gente de oração e a quem Deus já regala! Quereria dar vozes para dar a entender quão enganados estão, e mesmo assim o fazem algumas vezes e chovem-lhe sobre a cabeça mil perseguições. É tida por pouco humilde e por querer ensinar aqueles de quem deveria aprender, especialmente se é mulher; então é que é o condenar, e não sem razão, porque não sabem o ímpeto que a move, ao qual, às vezes, não pode resistir nem pode deixar de desenganar aqueles a quem quer bem e deseja ver soltos do cárcere desta vida: pois menos não é, nem menos lhe parece aquilo em que ela tem estado.

26. Dói-se do tempo em que olhou a pontos de honra e do engano que trazia em crer que era honra o que o mundo chama honra. Vê que é grandíssima mentira e que todos andamos nela. Entende que a verdadeira honra não é mentirosa, senão verdadeira, dando valor ao que, de facto, o tem e tendo o que não é nada, por bagatela, pois é nada, e menos que nada, tudo o que se acaba e não contenta a Deus.

27. Ri-se de si, do tempo em que tinha em alguma conta dinheiro e o cobiçava, ainda que nisto creio que nunca ― e assim é verdade ― confessei culpa; bastante culpa era já tê-lo em algum apreço. Se com ele se pudesse comprar o bem que agora vejo em mim, tê-lo-ia em muito; mas vejo que este bem se ganha com deixá-lo de todo em todo. Que é isso que se compra com estes dinheiros que desejamos? É coisa de preço? É coisa durável? Ou, para que o queremos.? Negro descanso se procura, que tão caro custa! Muitas vezes se procura com eles o inferno e se compra fogo perdurável e pena sem fim. Oh! se todos dessem em tê-los por terra sem proveito, que consertado andaria o mundo! Sem tráfegos e com que amizade se tratariam todos! Se faltasse ti interesse de honras e dinheiros, tenho para mim que se remediaria tudo.

28. Vê a grande cegueira dos prazeres e como com eles se compra trabalho e desassossego, até para esta vida. Que grande inquietação! Que pouco contento! Quanto trabalho em vão!

Aqui não só vê as teias de aranha da sua alma e as faltas grandes, mas até um pozinho que haja, por pouco que seja, porque o sol está muito claro. E assim, por muito que trabalhe uma alma em se aperfeiçoar, se deveras a colhe este Sol, toda ela se vê muito turva. É como a água que está num copo que, enquanto lhe não dá o sol, está muito clara, mas se vem a dar nela, vê-se que está cheia de impurezas. Esta comparação é ao pé da letra. Antes de estar a alma neste êxtase, parece-lhe que traz cuidado de não ofender a Deus e que, conforme às suas forças, faz quanto pode. Mas uma vez chegada aqui, quando dá nela este Sol de Justiça que lhe faz abrir os olhos, vê tantas arestas que os quereria voltar a fechar. Ainda não é tão filha desta águia real que possa fitar este sol sem pestanejar. Mas, por pouco que os tenha abertos, vê-se toda turva. Recorda-se do verso que diz: «Quem será justo diante de Ti?»

29. Quando olha para este Divino Sol fica deslumbrada com a claridade. Mas, como se vê a si mesma, o barro lhe tapa os olhos, cegando esta pobre pombazita. Assim acontece-lhe, muitas vezes, ficar cega de todo, absorta, espantada, desvanecida por tantas grandezas que vê.

Aqui se ganha a verdadeira humildade para não se lhe dar nada de dizer bem de si mesma nem que outros o digam. É o Senhor do horto que reparte a fruta e não ela, e assim nada se lhe apega às mãos. Todo o bem que possui vai endereçado a Deus; e se alguma coisa diz de si, é para Sua glória. Sabe que ali não tem nada seu; ainda mesmo que queira, não o pode ignorar, porque vê a olhos vistos que, por mais que lhe pese, lhos fazem fechar às coisas do mundo e tê-los abertos para entender verdades.

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