"O Céu é a minha esperança". |
Capítulo 25
OS DOIS
DERRADEIROS ÊXTASES DA PAIXÃO
1942
Só, sem
ter com quem abrir sua alma, é com Jesus e Maria que a Alexandrina
desabafa as suas mágoas, tão imensas, tão profundas e tão íntimas.
Desses desabafos ficou-nos um eco nas notas espirituais que ela, por uma
necessidade misteriosa, continua a ditar à sua irmã Deolinda.
Arquivemos aqui ao menos o que nos deixou escrito a propósito dos dois
últimos êxtases da Paixão; retrata-se aí bem o seu estado de alma, em
fase tão crítica e que irá ainda agravar-se.
A
20.3.42:
Jesus, não quero mais viver de ilusões; quero viver só
de amor e de confiança. Cortai em mim tudo o que é
terreno: quero só esperar em Vós. Quero ser forte, mas
não posso: sinto-me definhar dia a dia.
E sinto na minha alma que novos assaltos estão para cair
sobre mim. Tudo é revolta: prevejo um mundo de leões
lançarem-se a mim com toda a raiva para me devorarem!
(Como iremos vendo, não se enganava nestes seus
pressentimentos). Que angústia na minha alma, que
tristeza profunda no meu coração! A alma treme de medo
com todo o meu corpo: não posso viver assim. Será porque
o fim se aproxima? Venha ele, venha depressa.
O Céu é a minha esperança.
Quero por todos os caminhos percorridos durante a vida
deixar escrito com o meu sangue o vosso amor! São
caminhos de luta, caminhos de negras trevas, trevas como
nunca, abandono como nunca imaginei passar. Levanto as
minhas mãos ao Céu, para o Céu que tantas vezes fitei e
contemplei com amor, mas não o vejo. Brado com toda a
força do fundo do coração e o meu brado não sobe:
parece-me Jesus não ouvir. Abandono, que completo
abandono!
Jesus, Jesus, compadecei-vos de mim; parece-me que vos
perdi e que perdi a Mãezinha. Afastaram de mim na Terra
o amparo, guia e luz que me tínheis dado.
Jesus, Jesus, olhai a louquinha perdida que tudo sofre e
aceita por vosso amor, para dar-vos as almas.
Jesus, Mãezinha, quero sofrer tudo: as forças não me
ajudam. Estou sozinha; posso dizer convosco: — Pai,
porque me abandonastes? Quereis assemelhar-me a Vós?
Obrigada, meu Jesus; submeto-me ao peso da vossa Cruz.
Sinto arrancarem-me o coração, sinto que vou morrer
esmagada, mas quero balbuciar sempre: — Oh, como é doce
morrer por amor! Oh, como é doce cumprir a vontade do
Senhor!
Jesus, à medida que se aproxima de mim a crucifixão, o
pavor aumenta. Sinto-me cravada na cruz dando de longe a
longe mim suspiro, até que seja dado o derradeiro. A
agonia aumenta; são dados ao meu corpo maus-tratos, sem
piedade.
Ó mundo, ó mundo que não conheces a dor nem o amor de
Jesus! Só com Ele se abraça a cruz, só com Ele se
caminha para o martírio!...
Após a
crucifixão escrevia:
Chegou a hora da crucifixão: não podia temer mais. O meu
corpo não tinha força; pedi para mim todo o auxílio do
Céu.
Obrigada, meu Amor, apressastes-vos a dar-me conforto.
— Minha filha, escuta, é Jesus que se aproxima; vem
beber à tua fonte, vem saciar a fome com a tua esmola.
É com a tua crucifixão que os pecadores recebem graça. É
pela tua crucifixão que os pecadores recebem toda a
graça. É pela tua crucifixão que o mundo recebe a paz.
Coragem, coragem! O teu Paizinho auxilia-te de longe,
como se estivesse aqui. Eu não o retirei de ti.
Acompanho-o com a tua Mãezinha para te amparar. Coragem,
coragem, coragem!
Caminhei para o Horto, meu Jesus, com as vossas divinas
palavras por algum tempo gravadas em meu coração. A
pouco e pouco com as trevas nada via, com o
desfalecimento nada podia. Sofria como se nunca vos
tivesse ouvido nem encontrado. Que abandono triste!
Principiei a sentir lançadas no meu coração que o
desligaram do meu peito fazendo-o cair no chão, sendo
nele esmagado, maltratado. Não era o meu, mas o vosso,
meu Jesus.
Que dor me causava ver-vos sofrer assim! E sentir que
Vós vos queríeis cobrir de terra sendo ela o véu que
encobrisse os pecados de que estáveis revestido!
Impossível, Vós não podíeis fugir à vista do Eterno Pai.
Ele via-vos todo manchado, revoltava-se contra Vós.
Eu ouvia os vossos suspiros, sentia as vossas lágrimas.
Não tínheis quem fosse testemunha delas: os Apóstolos
dormiam despreocupados de tudo; não viam que suáveis
sangue. Só quando vos levantastes para os chamardes,
eles viram os vossos vestidos ensopados. Sem nada
discorrerem, continuaram o sono.
Pobre Jesus, sofríeis sozinho: que lição para mim! No
palácio de Herodes… senti a vossa dor por tanto que vos
fizeram sofrer.
Na flagelação fui descansar no vosso Coração divino. Era
grande como o universo; podia percorrê-lo todo; mas não:
estava muito ferida. Inclinei-me para Vós, descansei até
que de novo voltassem os algozes. Na coroação de
espinhos, descansei nos braços da Mãezinha; senti que o
seu manto me cobria e a sua santíssima mão me
acariciava; o rosto dela junto ao meu suavizava a minha
dor. Sentia-me cansada, sem alegria. Em seus braços não
vinham ferir-me, mas quando fui para eles já ia em
sangue.
Caminhei para o Calvário: sentia que era impossível
chegar ao termo; fugia-me a vida, falhavam-me as forças.
Invoquei a Mãezinha, invoquei o vosso divino nome, meu
Jesus, pedi as vossas forças divinas...
Cheguei ao Calvário... tudo era escuridão e abandono
total. Por entre o som de grandes blasfémias, ouviam-se
suspiros, caíam lágrimas de amargura e dor. Bradei ao
Céu de todo o coração; ele estava fechado, não se abriu
para mim.
Ó dor, ó dor, que és aceita só por amor!
Terminou toda a Paixão: porém a dor tem que atingir seus
limites. Soube que tinha razão em sentir os novos
assaltos na minha alma. Que pena, Jesus!... O coração
estala-me de dor. As humilhações deitam-me por terra.
Ser forte, só convosco, Jesus!...
Referindo-se ao último dia em que teve a Paixão, a 27 de Março de 1942,
sexta-feira das Dores de Nossa Senhora, encontramos o seguinte não menos
expressivo:
— Jesus, ouve as minhas palavras, parece que já abafadas
com o peso da morte. Mais uma vez quero dizer-vos:
Sou vossa no tempo e vossa serei na eternidade; só a Vós
me dou e só a Vós quero pertencer.
É com a alma em agonia e o coração retalhado de dor que
os meus lábios mais uma vez balbuciam estas palavras:
só por amor!
As negras trevas não me deixam ver; caminho só por entre
abrolhos e espinhos. Estou toda ferida: só sangue sinto
escorrer do meu pobre corpo.
Sinto-me sozinha: roubaram-me o meu conforto, o alívio
da minha alma, o meu amparo na Terra! Tenho que lutar
abandonada no combate mais difícil. Por vezes não posso
resistir às saudades de ver celebrar, no meu quarto, o
Santo Sacrifício da Missa. Tudo roubado, tudo perdido!
— Perdoai, meu Jesus, aos que me causaram tudo isto.
Para todos peço a vossa compaixão e a vossa luz para a
sua cegueira.
No meio deste mar de sofrimento e deste lutar de negras
trevas, de noite escuríssima, a minha alma goza a
maior paz.
Não temo comparecer na vossa divina presença. Lembra-me
por vezes se será orgulho da minha parte: não o
conhecerei, meu Jesus? Estará escondido na minha
ignorância? Vós destes-me a graça de eu conhecer o
abismo da minha miséria, mas ao mesmo tempo, vejo que
maior, infinitamente maior é o abismo do vosso amor, a
vossa misericórdia e compaixão. Confio cegamente em Vós
e em Vós espero. É o manquinho infernal que tenta
inquietar-me, arrancar de mim a paz de consciência,
prender-me de alguma forma às coisas terrenas. Quando me
sinto mais desprendida do mundo e em maiores ânsias de
voar para Vós, para a Pátria celeste que me espera,
aparecem-me rapidamente na minha imaginação estas coisas
que tanto me atormentam:
— Tens muita pressa de deixar os teus que nunca mais
voltas a ver; com a morte tudo acaba: não há Céu nem
inferno.
— Jesus, Jesus, eu amo-Vos, eu creio em Vós. Vós não
enganais ninguém; não deixeis o maldito confundir-me.
Nem queria que estas palavras se soubessem, não quero
escandalizar ninguém; não quero tirar a fé a quem tem
pouca e mais aprofundar no erro aqueles que nenhuma têm.
Perdoai-me, se não devia dizê-lo! Meu bom Jesus, meu
doce Amor, tenho chorado com o medo à minha crucifixão:
ai de mim e pobre de mim sem Vós! Não me falteis por
quem sois, com a vossa força divina: eu não tenho força,
a minha vida está perdida.
Durante a noite e a manhã de hoje, animou-me a vossa
divina presença. Apresentastes-Vos à minha frente de
Cruz aos ombros, inclinado para a terra, desfalecido e
sem vida, rodeado de vil canalha.
Ao ver assim um Deus sofrer por meu amor, não posso
recusar-vos minha crucifixão; aceito por vosso amor,
aceito pelas almas. Revesti-vos de mim, vivei em mim,
movei o meu corpo sem vida.
Está próxima a crucifixão, não me falteis, meu Jesus:
dai-me graça, força e amor.
(Depois
da Crucifixão)
— Jesus, não me falteis com as vossas forças, para que
eu possa descrever o melhor possível o que Vós sofrestes
na vossa santa Paixão e a vossa protecção e amor para
com esta pobrezinha. É para vossa maior glória e
proveito de todas as almas.
Os olhos do meu corpo pareciam quase não ver, ao
aproximarem-se os momentos da crucifixão. Assustava-me o
meu desfalecimento; o abandono em que me encontrava
levava-me à sepultura. Que tormento não ter vida e ter
que lutar contra o mundo!
Desceu sobre mim a vossa vida e o vosso amor: Ouvi a
vossa doce e meiga voz:
— Minha filha, ó amor de Jesus, coragem: não temas, não
temas!
O caminho do Calvário está a terminar; vem trilhar os
últimos espinhos. Das feridas por eles feitas nascem
fontes de salvação. As almas necessitam de tudo. Jesus
consola-se na tua crucifixão encontra em ti toda a
reparação que se pode encontrar na Terra. Coragem; Jesus
não te falta com a sua Mãe bendita. O teu Paizinho
acompanha-te em espírito, com a minha divina graça;
auxilia-te em união connosco.
Fui para o Horto; no meio do abandono relembrava as
vossas doces palavras que por algum tempo se conservaram
gravadas em meu coração. Depois, com os golpes que nele
senti pelos maus-tratos que me foram dados pela
Humanidade, tudo desapareceu.
E aí, sozinha, em profundo silêncio, na maior escuridão,
quase na morte, procurava esconder-me para sempre, ser a
terra o meu esconderijo, ao ouvir as ameaças do Eterno
Pai.
Meu Deus, meu Deus! E eu sozinha, não corria uma aragem
nem as folhas das oliveiras se mexiam, a não ser para
curvarem seus ramos em sinal de adoração por terra.
Ó dor! Ó agonia de Jesus! Ó loucura de amor de Jesus
pelas almas!
— Não eram meus estes sofrimentos, mas Vossos, só
vossos, meu Jesus.
Segui os passos da Paixão: aqui e além caía sucumbida,
esmagada pela dor. Repetidas vezes invoquei o nome de
Jesus e da Mãezinha; pedi as vossas forças, porque todas
as minhas estavam perdidas.
— Obrigada, meu Jesus; convosco fui resistindo.
Na flagelação, ao ser resguardada em vosso divino
Coração, via à minha frente os algozes preparados com os
açoites, para mais castigarem o meu corpo. Eu, coberta
com o vosso divino amor, não os temia. Na coroação de
espinhos, quando estava nos braços da Mãezinha, via
também enlearem à minha frente agudos espinhos uns aos
outros, preparando novo capacete para na cabeça me
cravarem, As carícias da Mãezinha fizeram-me esquecer
que eles se preparavam para mim. Oh, como é grande o
vosso poder e o vosso amor, ó Jesus!
Caminhei para o Calvário sem vida para chegar ao fim:
não podia caminhar, escasseavam-me as forças. Na segunda
queda obrigou-me a obediência a entrar de novo no vosso
divino Coração; ouvi que Vós me dizíeis:
— Minha filha, todas as minhas graças e todo o meu amor
se estendem sobre o Cireneu (refere-se ao Médico que
assistia) que te auxilia e sobre todos os seus
descendentes, até ao fim e sobre o teu Paizinho aqui
presente (em espírito) a teu lado e sobre as
almas que mais de perto te tratam e com o meu amor te
acariciam suavizando a tua dor. Não se chama a isto amor
da Terra.
Fui cravada na cruz; a cada pancada que davam para me
cravarem, caia em desfalecimento.
Todo o Calvário estava escurecido, mal se ouviam os
suspiros da Mãezinha, que eram abafados com as
blasfémias: sentia-os mais no meu coração. Parecia-me
que ia em pouco expirar em Vós...
Foi esta
a última vez que a Alexandrina teve o êxtase movimentado da Paixão. Daí
a oito dias, Sexta-feira Santa, dizia-lhe Nosso Senhor:
Confia, minha filha, que não és mais crucificada. A
crucifixão que tens é a mais dolorosa que se pode
imaginar na história...
Mas em
todas as sextas-feiras, embora sem se movimentar, continuou a sentir ao
vivo a Paixão de Cristo, em que sofria tanto e por vezes mais do que nas
precedentes, como se pode ver nos seus escritos. Vá, à guisa de amostra,
a sexta-feira Santa de 1947 (4.4.47):
No princípio da tarde de ontem (Quinta-feira Santa),
senti como se a minha alma fosse presa, insultada,
maltratada; era um nunca acabar de martírios. Nas outras
quintas-feiras tenho sentido um ou outro sofrimento, mas
nesta senti muitos, se não foram todos.
Senti e vi a Ceia com a maior de todas as maravilhas:
Jesus dar-se para nosso alimento, partir e ficar
connosco. Que maravilha! Que amor tão profundo! Vi o
lava-pés e o discípulo amado inclinado sobre Jesus;
sentia e via o desespero de Judas e vi-o partir à frente
dos outros, para O ir entregar.
No Horto senti e vi beijar e apontar para Jesus, para
poder ser preso. Mas, antes da prisão, senti a sua
grande aflição: a rolar pela terra, a suar sangue, o
Anjo a confortá-lo e Ele, com o cálice da amargura, a
enchê-lo de sangue, que lhe saía dos seus divinos olhos,
ouvidos e de todo o corpo.
Vi depois, à saída do Horto, que o acompanhavam uma
grande multidão de soldados com armas, homens com paus.
Meu Deus, como eles maltratavam a Jesus! Como Ele já ia
desfigurado e desfalecido!...
Vi São Pedro a negá-lo, mas sentia que aquela negação
foi feita só por temor. O galo cantava uma e outra vez.
Ele chorou copiosas lágrimas. Oh, como foi grande o seu
arrependimento!
Custou-me tanto ver Jesus de tribunal em tribunal, tão
maltratado e por fim ter que O deixar sozinho na prisão.
E assim moribundo O senti hoje a seguir os caminhos do
Calvário.
Parecia-me que todas as feridas do seu santíssimo corpo
estavam no meu e ainda assim era chicoteada e arrastada;
não havia compaixão para mim nem para o nosso Jesus. Os
espinhos da sua santíssima cabeça feriam-me a minha e
também me feriam o coração.
Fui subindo e quantas vezes desfaleci com Ele e com Ele
ia a expirar! Jesus ia dentro em mim tão ansioso para a
morte, como cordeirinho sequioso para a corrente; queria
morrer para dar a vida.
Na Cruz, eu sentia como se o sangue das Chagas de Jesus
corresse nos meus braços, pés, peito e cintura, como se
tivesse chagas também.
Senti dentro em meu peito um mundo tão cruel e tão duro
que mo abriu de cima a baixo. Neste transe doloroso
fiquei, como se expirasse com Jesus.
Passou-se algum tempo num silêncio mortal.
Jesus despertou e fez que eu despertasse.
— Minha filha, minha filha, Eu não morri; vem para Mim,
vem para o meu amor, vem para o meu fogo divino; ele é
para ti a vida, é o cadinho, o fogo que te purifica, te
dá a pureza, a graça, todo o brilho da tua alma.
Mergulha-te nele, enamora-te de Mim, enche-te para
poderes encher as almas. Descansa neste fogo, suaviza
nele a tua dor, retoma as forças perdidas em tão
doloroso martírio.
Jesus calou-se e eu fiquei por um pedaço de tempo a
arder naquelas chamas; sentia-as, via-as; eu era a
caldeira, Jesus o fogo. Conservei-me em silêncio também;
não sabia falar a Jesus...
A seguir
recebe misteriosamente a Comunhão da mão dos Anjos, que lhe é ministrada
com a fórmula do Viático:
Viaticum
Corporis Domini Nostri Jesu Christi custodiat animam tuam in vitam
aeternam.
E depois
ouve ainda estas preciosas palavras:
Minha filha, dei-me a ti em alimento, sou a tua vida.
Dei-me desta forma para mais e melhor mostrar as minhas
maravilhas e para mostrar que estou contente com os meus
representantes na Terra, com a doutrina da minha Igreja.
Não podia deixar-te sem o meu alimento, depois de tantas
forças consumidas, de tanto sofreres. Prometi não deixar-te
sem a minha Eucaristia, às sextas-feiras, e não faltei.
Recebestes-me como Viático e é verdade que és enferma e
sem um milagre divino não terias resistido à dor, eras
moribunda.
Coragem, minha filha; Eu continuo a pedir-te sofrimento,
porque o meu Eterno Pai continua a exigir grande
reparação das minhas vítimas, para a salvação do
mundo, para que os pecadores se convertam e venham a Mim…
|