

Padre Mariano Pinho, sj,
primeiro Director espiritual da Alexandrina
et autor desta biografia
* * *
"Quanto mais sinto que
sofre, mais Jesus une as nossas almas" |
Capítulo 24
SEM
DIRECTOR ESPIRITUAL
1941-1942
Já de há
tempos que a Alexandrina se vinha referindo a sofrimentos do director
espiritual, sem que este nada lhe tivesse dado a entender. E assim, a
18.10.41, por exemplo, escreve:
Se pudesse ser em vez desta carta, ir eu mesma! Sinto
necessidade de alívio para o meu corpo e sinto também
necessidade de alívio e luz para a alma. Estou tão
ceguinha e numa dor tão profunda!
Anseio por amar o meu Jesus: são ânsias devoradoras. Se
me dissessem que no fundo do mar estava um cofre onde
estava encerrado o amor de Jesus, eu louca de alegria,
lançava-me ao fundo a buscar esse cofre que possuía o
amor de Jesus, e com o amor dele eu O queria amar!
Queria frequentar a escola do amor: queria aprender a
amar o meu Jesus e a amá-lo na dor, amá-lo no meio de
tudo o que é sofrer. Não sei da escola, não sei do amor.
Sem luz não vejo e sem amar o meu Jesus não posso viver.
E já a
terminar a carta, diz:
Meu Padre, peço-lhe por caridade para me dizer se sofre
e se eu sou a causa do seu sofrer! Não me engane: venha
o que vier, digam o que disserem. Não poderei resistir
às lágrimas, mas não me entristeço com Jesus. Eu amo
tudo o que dele me vem. O que eu quero é o Céu e dá-lo a
todas as almas. Não me importa viver noite e dia cravada
na cruz.
E a 22 do
mesmo mês, acrescenta ainda:
Estou muito doente, mal posso ditar estas palavrinhas.
Sinto necessidade de o fazer, por mim para desabafar:
ver se respiro melhor debaixo do peso da cruz; e pelo
meu Paizinho: para lhe dizer que quanto mais sinto que
sofre, mais Jesus une as nossas almas. Melhor conheço
que é o caminho que Nosso Senhor talhou para o meu Padre
seguir. Caminhamos por amor unidos na mesma dor: Jesus o
quer. Não importa que o mundo não conheça estes
caminhos, não compreenda este sofrer. Se Jesus com isto
é amado e desagravado, que mais devemos desejar?
Evidentemente que o director sentia a fundo a responsabilidade que sobre
ele pesava com a direcção desta alma que caminhava por vias tão
extraordinárias e não era para ele nada agradável perceber a perseguição
que já se estava movendo ao Caso de Balasar, por elementos que
(embora nunca tivessem examinado nem visto a doente nem estudado os
imensos documentos que sobre ela já então possuíamos), devido à sua
posição, influíam sinistramente no caso. Perseguição que mais se
cimentou e agravou ao divulgar-se a opinião do Dr. Abel Pacheco sobre a
doença da Alexandrina, a que cegamente aderiram, sem atenção ao parecer
dos outros distintos médicos e que acima ficou bem clara.
Ao
director consideravam-no como um visionário, um imprudente e elemento
perigoso que necessariamente se devia afastar e quiçá começariam já a
estranhar que o Superior do mesmo não interviesse eficazmente. Momentos
bem desagradáveis por certo para o pobre Superior que também ele não
conhecia pessoalmente a doente.
Para
precipitar essa intervenção, concorreu decisivamente a publicação de um
fascículo, o n.º 10 da Vida de Cristo, a Paixão Dolorosa,
vol. V, pelo Padre José Alves Terças, Lisboa, 1941, onde, depois de
falar do Santo Sudário de Turim fala de "A martirizada do Calvário",
isto é, da Alexandrina, narrando miúda e longamente os factos que viu e
anotou a 29 de Agosto de 1941, durante o êxtase da Paixão.
A
Alexandrina refere-se ao caso, em carta autógrafa escrita por ela à
meia-noite de 27.8.41:
Meu Padre, é quase meia-noite; venho agora mesmo de
contemplar o céu. Chorei de olhos fitos no alto do
firmamento. Disse a Jesus:
Quando me levais para Vós? Quando poderá partir esta
criminosa que anda a ser julgada e interrogada, como o
maior assassino e criminoso do mundo?
Tendes razão, meu Jesus: o meu julgamento assemelha-se
bem com o que eu sinto na minha alma. Eu tenho nojo e
vergonha de mim: estou coberta de todos os vícios e
crimes!
Ai meu Padre, hoje ao cair da tarde, fui interrogada por
um senhor Padre da Ordem do Espírito Santo, chamado
Padre Terças. Tratou-me com muito carinho, mas
interrogou-me seriamente. Custou-me tanto! Não posso
falar da Paixão de Jesus e tive que falar: eis a razão
das minhas lágrimas. Só por Jesus, só por seu amor. Este
exame veio agravar a minha dor, já tão profunda;
tornou-se mais doloroso o meu calvário. Novos espinhos
virão ferir o meu pobre coração e ladear o caminho
triste do meu penoso calvário.
Senti em mim a força divina: senti que Jesus me obrigava
a caminhar para a frente. As dúvidas atormentam-me e eu
para poder resistir, digo a mim mesmo: se esta obra
fosse minha, era isto bastante para ela acabar...
Nas notas
autobiográficas, é mais explícita:
No dia 27 de Agosto de 1941, recebi a visita do Sr.
Abade acompanhado pelo Padre Terças e outro sacerdote.
Esta visita foi para mim de grande desgosto, pois fiz o
sacrifício de responder às perguntas que o Sr. Padre
Terças me fez diante de todos, o que me custou imenso.
Respondi a tudo conscientemente, porque pensava que
viria em estudo, como outros tinham vindo. Só Nosso
Senhor pôde avaliar quanto me custou ter de falar sobre
o assunto da Paixão e foi sobre isto que mais me
interrogou. O nosso Pároco disse-me que Sua Rev.cia
queria voltar aqui, na próxima sexta-feira, dia 29. Não
queria ceder ao pedido sem consultar o meu Director
Espiritual, mas como me dissessem que tinha de se
retirar para Lisboa, nos dias imediatos a este,
consenti, dizendo:
Eu penso que V. Rev.cia não vem aqui por curiosidade?
Como me dissesse que não, cedi prontamente, embora me
fizesse sofrer muito a visita na sexta-feira.
Sua Rev.cia não faltou, mas trouxe consigo mais três
sacerdotes. Mal eu pensava que esta visita vinha erguer
para mim um novo calvário!
Não levou muito tempo que Sua Rev.cia publicasse o que
observou e o que soube de mim.
Que Jesus tenha em conta a dor que me causou aquela
publicação, por saber que a minha vida foi publicada e
os meus segredos revelados, aquilo que tanto tempo
escondi.
De vez em quando chegavam-me aos ouvidos vários
comentários a meu respeito. Eram espinhos que me
cravaram no peito, mesmo sem as pessoas darem por isso.
Eram variadas as impressões com que ficavam as pessoas
que liam o livro ou ouviam falar de mim.
A minha ida ao Porto e a publicação da minha vida
fizeram inquietar os espíritos dos Superiores do meu
Director Espiritual, a ponto de o proibirem de vir junto
de mim e de me prestar a assistência religiosa que
necessito, assim como o proibiram também de me escrever
e de receber cartas minhas.
Logo que
nos chegou à mão o citado fascículo, apressámo-nos a escrever ao Padre
Terças (com quem nunca falámos e a quem nunca tínhamos escrito coisa
alguma), manifestando-lhe o nosso desagrado por uma publicação daquele
género, tão prematura. Sua Rev.cia respondeu-nos de Lisboa, a 31.12.41,
o que segue:
Em resposta ao cartão de V. Rev.cia de 17 do corrente,
tenho a honra de enviar-lhe o parecer do Sr. Arcebispo
de Braga sobre a publicação do caso da "Martirizada do
Calvário". Da carta de Sua Ex.cia Rev.ma, tratando
também doutros assuntos, remeto só o final dela,
referente ao caso do Calvário. O parecer do Sr.
Arcebispo de Mitilene está contido no "imprimatur". A
opinião do Senhor Cardeal Patriarca tenho-a oralmente,
pois além das provas tipográficas, tudo lhe expus de
viva voz e com todas as particularidades.
Agora pergunto eu: o que faria V. Rev.cia se, ao referir
o que se passa no lugar do Calvário, lhe respondessem: —
esse é um dos muitos casos para iludir o povo…— o que
faria?
Colega muito obrigado, P. José Alves Terças.
O final
da carta do Senhor Arcebispo é o seguinte:
Como V. Rev.cia se apresenta autorizado pela Cúria de
Lisboa e pelo Rev. Superior Provincial, julgo que não
devo intervir, nem mesmo solicitado agora por V.
Rev.cia.... E só o faria mais tarde ex officio,
se se mostrasse que a narrativa dos factos feita no
livro trazia prejuízo grande às almas que me estão
confiadas, o que creio firmemente se não virá a dar. E
até faço votos por que o livro venha a produzir
abundantes frutos espirituais, como V. Rev.cia, a cujas
boas intenções rendo justo preito, seguramente deseja.
Augurando a V. Rev.cia muitas boas festas natalícias,
com alta consideração me subscrevo.
† A. Arcebispo Primaz.
Segundo o
dito, nenhuma das autoridades eclesiásticas mais imediatamente
responsáveis de algum modo, na dita publicação, se alarmou nem lhe
pareceu necessário censurá-la. Mas alarmou-se uma conhecida Revista de
Lisboa (Brotéria). A propósito ou despropósito de um artigo
anódino sobre Mística, julgou oportuno então o director da Revista pôr a
seguinte nota:
Chamamos a atenção para este artigo, cujo assunto está
sendo entre nós da máxima oportunidade. Vemos com
espanto difundir-se pelo País, com demasiada
insistência, um espírito visionário e preocupado de
preternaturalismo, que não deixa de ser perigoso para as
almas afectadas dessa pendência e até para a Religião em
geral. A publicidade dada numa Vida de Nosso Senhor
Jesus Cristo segundo os Evangelhos e as visões de Ana
Catarina Emmerich a pretensos (?) fenómenos místicos
duma doente do Norte de Portugal parece-nos, sob todos
os pontos de vista, lamentável e, sem pôr em causa a boa
fé do signatário dos factos vistos e anotados em 29 de
Agosto de 1941, sumamente suspeita (??). Não nos compete
a nós ajuizar oficialmente da objectividade mística dos
mesmos factos. Estamos no entanto habilitados a declarar
que o que, a pág. 332 do volume V da mesma Vida de
Cristo (Lisboa, 1941) se atribui a um sacerdote da
Companhia de Jesus, é da exclusiva responsabilidade
deste.
Depois de
uma nota dessas, que reflectia bem o ambiente que contra o caso se
estava formando, estávamos para dizer, era lógico que o Provincial
proibisse ao director espiritual a quem se refere a nota de continuar a
tratar com a doente de Balasar.
Foi o que
sucedeu: o Provincial fulminou essa proibição, declarando que, se o caso
fosse de Deus, não precisava dos homens para o fazer triunfar.
A carta
do Provincial foi recebida pelo director espiritual a 7.1.42; já no dia
2.1.42 dizia Nosso Senhor à Alexandrina:
Prepara-te para a luta, minha filha: tens que lutar
aparentemente sozinha. Depois da batalha vem a
glória. O teu caminho não terá luz, Sol nem dia, mas é
para que mais apareçam em ti as minhas grandezas e para
que na glória brilhe em ti o esplendor do meu amor e
vejas brilhar toda a beleza divina.
No dia
seguinte (3.1.42), repete-lhe Nosso Senhor as mesmas afirmações e
pergunta-lhe:
— Aceitas, minha amada, toda a declaração do teu Jesus?
— Sim, sim, meu Jesus, tudo aceito por vosso amor e
sempre confiada que não me faltais com a vossa graça,
que a vossa força divina será em mim a única resistência
para todo o meu sofrer.
Salve eu as almas e incendeie nos corações o vosso
divino amor...
Neste
golpe que a Alexandrina vai sentir afinal até à morte, revela-se-nos
esplendidamente a solidez da sua virtude, na extraordinária conformidade
com a vontade de Deus e o espírito de fé com que encara a situação, sem
uma incriminação nem uma queixa contra ninguém. Mas a dor é pungente e
manifesta-a claramente nos seus escritos espirituais dessa quadra.
Copiamos ao menos o que encontramos a 19.2.42:
Meu bom Jesus, sinto o meu coração retalhado de dor.
Tereis ainda mais golpes para ferir-me? Faça-se a vossa
vontade! Gravada na cruz convosco, escorrendo sangue e
na maior agonia, vejo-me de todos abandonada.
Não posso viver no mundo: tenho medo, Jesus. Vinde
depressa, vinde, levai-me para o Céu. Os homens tentam
desviar de mim, arrancar-me para sempre aquilo que me
servia de alívio, que podia dar-me conforto. Tiram-me o
meu Pai Espiritual; proíbem-no de me escrever a mim e de
lhe escrever a ele.
Permiti Vós ao menos, meu Amado, de eu desabafar
convosco. Estou sozinha, no meio da tempestade e ela não
serena. Abro-vos o meu pobre coração, só Vós sabeis ler
o que nele está escrito com dor e sangue. Só Vós
compreendeis e podeis avaliar o meu sofrer. O mundo
desconhece-o; os homens nada compreendem. Deixai-me
dizer a Vós o que Vós dissestes ao Eterno Pai:
— Perdoai-lhes, meu Jesus, porque eles não sabem o que
fazem.
Estão ceguinhos, falta-lhes a vossa divina luz;
iluminai-os a todos e a todos dai o vosso amor.
Ó meu Jesus todos os meus pressentimentos me têm saído
certos. Poderão eles ainda proibir que eu vos receba
sacramentalmente? Ai de mim! Seria esse o golpe que me
tiraria a vida, se Vós com o vosso divino poder ma não
conservásseis. Digam o que disserem, façam eles o que
fizerem, o que nunca conseguirão é tirar-me desta união
íntima com Vós (sic). Roubarem-me Jesus
Sacramentado, sim não o duvido que o façam; tirarem-me
do meu coração o tesoiro riquíssimo que eu adoro, que eu
amo acima de todas as coisas, o Pai, o Filho, o Espírito
Santo, nunca, nunca os homens o conseguirão: teriam para
isso fazer-me viver sem coração e sem alma. Impossível.
Venha a força do mundo inteiro, seja ele todo contra mim
a separar-me desta grandeza infinita, deste Amor
infinito, nunca: só o pecado: só esse me pode separar.
Mas eu confio plenamente em Vós, é de Vós que eu tudo
espero, embora que o sentir da minha alma me chegue
quase a persuadir que me engano a mim mesma. Sinto que
não vos amo; sinto que nada de Vós posso esperar, por
tão grande ser a minha miséria.
Que confusão a minha, que grande é o meu desfalecimento!...
E a
terminar:
Perdoai-me os meus desabafos, Jesus; bem vedes que só
convosco posso desabafar. Já que me escolhestes para a
dor, já que me destinastes para tão grandes martírios,
eis a tua vítima, eis a tua escrava, Jesus: faz de mim o
que quiseres. A tua bênção, meu Amado. Diz à Mãezinha
que me abençoe e proteja.
Sou a tua mais indigna filhinha, pobre Alexandrina.
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