Alexandrina de Balasar

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O mundo no Coração de Maria

« Mãezinha, quem ama o teu Jesus, ama o teu Coração. Quem ama o teu coração, ama o teu Jesus » [1].

Foi em 1935, a 30 de Julho, que pela primeira vez Jesus pediu a colaboração da Alexandrina para a consagração do mundo ao Coração Imaculado de Maria.

Em carta datada do dia 1 de Agosto desse ano ela dá conta ao seu Director espiritual deste pedido de Jesus:

« No dia trinta, depois da Sagrada Comunhão, sentia-me muito bem com Nosso Senhor, sentia uma grande união com Ele. Passados alguns momentos ouvi que Ele me chamava:

— Minha filha, ó minha querida rainha, a que alturas te levei, a esposa do Rei Sacramentado! Continua, minha querida filha, a tua breve missão: enquanto vives pede-me pelos ceguinhos, pelos pobres pecadores. Ainda tens muitos para conduzires aos teus caminhos. Eu sou o caminho, a verdade e a vida, conduz-mos para que Eu seja amado. Não me deixes nem um momento sozinho nos meus sacrários. Eu estou à espera de almas que me dediquem um amor como tu, mas não as tenho. Sou tão desprezado! Mas não é só isso, sou tão ofendido! Tem pena do teu Jesus, meu anjo, meu amor! Cura com a tua reparação esta lepra tão contaminosa. Manda dizer ao teu pai espiritual que, em prova do amor que dedicas a Minha Mãe Santíssima, quero que seja feito todos os anos um acto de Consagração do mundo inteiro, num dos dias das suas festas, escolhido por ti: Assunção, Purificação ou Anunciação, pedindo à Virgem sem mancha de pecado que envergonhe e confunda os impuros, para que eles arredem caminho e não me ofendam. Assim, como pedi a Santa Margarida Maria para ser o mundo consagrado ao Meu Divino Coração, assim peço-te a ti para que seja consagrado a Ela com uma festa solene.

Sentia as carícias de Nosso Senhor » [2].

Jesus começa a sua mensagem atribuindo à sua vítima os títulos de “minha Rainha” e o de “esposa do Rei Sacramentado”, para de seguida a encorajar na sua luta da salvação das almas que regularmente esquecem que Jesus é “o Caminho, a Verdade e a Vida”.

Vem depois, o grande pedido, que se renovará muitas vezes, até ser concretizado: a consagração do mundo ao Coração Imaculado de Maria.

“Manda dizer ao teu pai espiritual que, em prova do amor que dedicas a Minha Mãe Santíssima, quero que seja feito todos os anos um acto de Consagração do mundo inteiro”.

Obediente como sempre, Alexandrina mandou dizer ao seu Paizinho espiritual o que Jesus acabava de lhe pedir, mas não foi ouvida, como no-lo confirma o Padre Mariano Pinho, então seu Director espiritual:

« Não ligámos por então importância a esta parte da carta, pois era a época, como ela afirma acima, dos mimos e das consolações espirituais, e são tão fáceis nessas circunstâncias os equívocos e enganos a respeito do que se experimenta na alma... » [3]

« Convém também ter presente — lembra o professor José Ferreira, e com razão — que, embora viesse de Jesus, o pedido impunha uma tarefa ingente: mobilizar o Papa e com ele toda a Igreja! E isto na base do pedido duma ignorada paralítica a viver numa desconhecida paróquia rural dum pequeno país ».

Esta consagração anual deveria, segundo os desejos e instruções de Jesus, realizar-se “num dos dias das suas festas, escolhido por” Alexandrina: “Assunção, Purificação ou Anunciação”. Na cerimónia mundial organizada pela hierarquia da Igreja, o clero e os fieis deveriam pedir “à Virgem sem mancha de pecado que envergonhe e confonda os impuros, para que eles arredem caminho e não ofendam” mais Jesus.

Uma outra indicação interessante sobre esta consagração, encontramo-la ainda na mesma mensagem de 30 de Julho de 1935:

“Assim, como pedi a Santa Margarida Maria para ser o mundo consagrado ao Meu Divino Coração, assim peço-te a ti para que seja consagrado a Ela com uma festa solene”.

Efectivamente o primeiro pedido de consagração do mundo ao Coração de Jesus foi feito por Jesus em Paray-le-Monial, a Santa Margarida Maria Alacoque. Todavia, como no caso da Alexandrina, este pedido ficou letra morta durante muito tempo, visto que só duzentos anos depois o Sumo Pontífice Leão XIII, sob as insistências de Jesus dirigidas à Irmã Maria do Divino Coração, superiora então do convento do Bom Pastor no Porto, pôs em prática este pedido de Jesus.

Nada mais podendo fazer do que repetir as instruções de Jesus, Alexandrina continua a sofrer, a amar e a reparar, tal como era a sua missão.

« Como eu sinto o meu coração a querer amá-lo muito, muito mais — explica ela em carta ao seu Paizinho espiritual. Às vezes parece que Nosso Senhor me abraça, mesmo sem me falar. Hoje, pareceu-me que o meu coração tinha desaparecido do seu lugar e que eu tinha ido com ele. Que união tão profunda com Jesus! » [4]

São os tais momentos de consolações espirituais, de que fala o Padre Mariano Pinho; são momentos de gozo antes que a tempestade, terrível tempestade espiritual, venha desencadear-se no coração da vítima de Balasar.

Os primeiros sinais da chegada desta tempestade, encontramo-los na carta enviada ao Director espiritual em setembro desse mesmo ano:

« Passo momentos em que parece que estou no meio dum deserto, sem saber o caminho e sem ter quem me guie. Mas, se isto serve para o aumento do meu amor a Jesus, o fazer amado, salvar as almas dos meus queridos irmãos e para consolar o Seu Santíssimo Coração tão ultrajado, venha tudo que lhe aprouver contanto que se faça a Sua Santíssima Vontade » [5].

Mesmo com a chegada deste “deserto”, Alexandrina não esquece a sua missão e, com força e convicção aceita, esperando que o terrível estado de aridez espiritual em que se encontra possa servir “para o aumento do seu amor a Jesus, o fazer amado, salvar as almas dos seus queridos irmãos”, e mais ainda, “para consolar o Seu Santíssimo Coração tão ultrajado”.

Ela não pode, de modo nenhum, esquecer aquele Coração que tanto amou os homens, ao ponto de morrer por eles. É o que explica o Padre Humberto Pasquale, segundo Director espiritual da Alexandrina:

« Jesus ama tanto os pecadores!... Odeia as suas ofensas, mas ama as suas almas! Jesus tem o Coração aberto para a todos receber. Jesus verte lágrimas sem conta e sangue com abundância. O mundo está coberto de lodo e lama... Os vícios e as paixões atingiram a maior altura » [6].

Alexandrina, ouve, desde há algum tempo Jesus dizer-lhe que em breve estará no Céu, que em breve vai ser lá acolhida pelos Anjos e pelos Santos, mas a palavra “breve” não tem para Deus o mesmo significado que para nós.

Algo vai em breve acontecer, é verdade, mas não a morte que a conduziria directamente ao Paraíso, como ela tanto desejava. O Padre Mariano Pinho explica:

« O ano de 1936 fica assinalado por dois factos importantes na vida da Alexandrina: a sua primeira morte mística e o pedido à Santa Sé da Consagração do mundo ao Imaculado Coração de Maria.

Quanto ao primeiro, é de notar que, inúmeras vezes, Nosso Senhor, para a encorajar nos sofrimentos, lhe prometia levá-la em breve para o Céu. E, por isso, a Alexandrina vivia sempre na ânsia e na expectativa desse momento tão desejado » [7].

“Foi-se-lhe gravando no espírito o pensamento de que morreria pela Festa da Santíssima Trindade” de 1936, escreve o mesmo sacerdote. Mas deixemos a Alexandrina dar-nos ela mesma a notícia, que ela conta duma maneira quase surrealista:

« Em 1935, Nosso Senhor preveniu-me de que iria morrer antes da festa da Santíssima Trindade de 1936. Como não conhecia outra morte, pensava que era deixar este mundo e partir para a eternidade. Nesse tempo, tudo eram mimos, consolações e alegrias espirituais. À medida que se ia aproximando o dia da Santíssima Trindade, aumentava a minha alegria e contentamento. Ia passar no Céu a festa dos meus tão queridos Amores, como lhes chamava: Pai, Filho e Espírito Santo.

Os males do corpo iam aumentando e tudo dava sinal da minha partida. Dois dias antes, Nosso Senhor disse-me que morreria das 3h às 3,5 da manhã e que mandasse vir o meu Pai espiritual. Assim o fiz. Ele chegou ao cair da tarde e passou a noite junto de mim. Preparei-me para morrer. Sua Reverência fez comigo um acto de inteira resignação e conformidade com a vontade de Deus... » (Autobiografia)

Surpreendente o que a seguir:

« Pedi perdão à minha família, a cantar de alegria, assim:

Feliz, oh, feliz
Se eu tal conseguia,
Morrer a cantar
O nome de Maria!

Feliz quem mil vezes,
Na longa agonia,
Com amor repete
O nome de Maria ».
(Autobiografia)

Felizes almas que, mesmo face á morte continuam, ou até redobram de fervor e de puro amor!

Com que simplicidade ela canta o seu amor a Maria!...

« É — diz Santa Teresa de Ávila —, uma morte saborosa, um arrancar de alma de todas as operações que pode ter, estando no corpo; deleitosa porque, ainda que de verdade pareça que a alma se aparta dele, é para melhor estar em Deus » [8]

Continuemos a ler o trecho que se refere à morte mística da “Doentinha de Balasar” e saboreemos a simplicidade e a ingenuidade que dele ressalta:

« A aflição ia aumentando... À hora marcada por Nosso Senhor, não sei o que senti, deixando de ouvir o que se passava à volta de mim. O meu Pai espiritual e a minha família rezaram o ofício da agonia, acenderam uma vela benzida, meteram-ma nas mãos, mas eu já não dei por isso, e assim estive algum tempo.

Julgavam-me já quase morta e choravam por mim. Nessa altura, já ouvi os choros dos meus; principiei a respirar e, pouco a pouco, reanimei-me, mas, ainda debaixo do mesmo estado, pensei: Estais a chorar e eu sempre morro. Estava sempre a ver quando aparecia na presença de Nosso Senhor. Não tinha pena por deixar o mundo e os meus queridos. Quando via que ia melhorar e que não se cumpriam as palavras de Jesus, caiu sobe mim uma tristeza que não se pode calcular e um peso esmagador ». (Autobiografia)

Por um pouco pensaríamos naquelas traquinices que ela costumava fazer à irmão, quando eram crianças e que ela conta na Autobiografia.

Triste de não ter passado deste mundo para outro melhor, a Alexandrina ficou inconsolável, sobretudo porque o seu Paizinho espiritual, por causa de transporte, não pôde esperar que ela voltasse ao seu estado normal e a confortasse depois...

« Eram horas do meu Director espiritual se retirar — explica ela —, não tendo tempo para me dizer umas palavrinhas de conforto. Passei a festa da Santíssima Trindade como uma moribunda e dentro de mim tudo era morte. As lágrimas corriam-me, as dúvidas eram quase insuportáveis... »

E, porque duvidava ela?

« ...porque não só me tinha enganado no que dizia respeito a este dia, isto é, à morte, como também em tudo quanto Nosso Senhor me tinha dito antes deste dia ».

Situação paradoxal, mas luz radiante para o Director espiritual, como ele mesmo o confessa:

« Este acontecimento — escreve o Padre Mariano Pinho —, que para a Alexandrina foi o ponto mais cerrado desta sua noite escura, para o Director espiritual foi luz decisiva... » [9]

Quase um ano mais tarde, por volta do fim do mês de Abril 1937, Alexandrina encontra-se, aparentemente, às portas da morte, tendo perdido completamente os sentidos durante várias horas, após duríssimos sofrimentos.

Após a recuperação, o Pároco passa a levar-lhe a Sagrada Comunhão todos os dias.

Durante dezassete dias não consegue engolir nada, excepto a Sagrada Hóstia.

Nesse mesmo ano e, porque o Padre Pinho escrevera para Roma pedindo a consagração do mundo ao Coração Imaculado de Maria, Alexandrina recebe, a 31 de Maio a visita do Padre António Durão, S.J. — enviado pela Santa Sé —, para examinar o seu caso. Parte bem impressionado, depois de ter orado com a “Doentinha de Balasar”.

Como se esta visita não chegasse para afligir a Alexandrina, um outro “visitante”, este bem mais terrível e pernicioso, começa, a partir do mês de Julho desse ano a causar-lhe grandes tormentos e grandes aflições. Trata-se do “manquinho”, como ela o chamava, o rei da mentira: Satanás. Este período só terminará a 7 de Outubro do mesmo ano.

Alexandrina continuará a sofrer, continuará a amar e a reparar, porque é essa a sua missão sobre a terra, missão que ela livremente aceitou.

« Eu não posso dispensar-te de tão tremendos ataques — lhe diz o Senhor —, de tanta reparação para Mim. Que tesouros de graças para Eu derramar sobre os pobres pecadores! Descansa em paz dentro do meu Coração. Os Anjos bons te defenderão dos maus. Recebe, meu anjo, as carícias do teu Jesus » [10].

Todavia, como lhe diz também Jesus, ela tem sempre a possibilidade e o insigne privilégio de poder descansar em paz no Coração de Jesus, aquele Coração onde as forças do mal não têm acesso, e onde ela pode receber as carícias do seu divino Esposo.

É o que lhe reafirma Jesus um mês mais tarde:

« Repousa contra o meu Coração; aqui encontras tudo: luz para poderes caminhar, força para tudo suportares e amor para tudo sofreres » [11].

Muitas vezes, quando Jesus lhe fala do seu divino Coração, associa ao Seu o da sua Santíssima Mãe, dois Corações inseparáveis e de tal maneira unidos que, estamos seguros, formam um só e único centro de Amor divino, um só e único Coração. Aqui temos, a seguir, um exemplo desta união sagrada:

« Recebe, minha filha, as minhas carícias, descansa entre o meu santíssimo Coração e o de tua Mãezinha do Céu, que contempla com ternura, a meu lado, o teu sofrimento, mas alegre, por ver a glória que me dás, os pecadores que me salvas e o que no Céu está preparado para ti. Associa-te aos Anjos e louva-me com eles, na minha Eucaristia » [12].

“O que no Céu está preparado para ti!”

Nos escritos da Alexandrina encontramos muitas vezes esta alusão ao que no Paraíso estava preparado para a Vítima de Balasar. As expressões não são sempre as mesmas, mas o significado não difere: Alexandrina beneficiará no Paraíso dum grande poder de intercessão, porque Jesus quer que ela seja “o canal por onde passarão as graças” distribuídas aos pecadores.

Esta intercessão é tão importante que se torna “impossível dizer quanto a Alexandrina tenha alcançado do Coração do seu Amado, com o seu heroísmo de imolação”[13].

Infelizmente, « o fato mais doloroso e mais triste de todos é que tantas almas, remidas pelo sangue de Cristo, como que arrebatadas pelo turbilhão desta época transviada, vão-se precipitando numa conduta sempre mais depravada, e se abismam na eterna ruína » [14], daí a necessidade de almas-vítimas, daí a necessidade de oração e de penitência.

« Certamente —afirma o Papa Leão XIII —, nem a todos é dada a possibilidade, nem todos têm a obrigação de fazer o mesmo; mas cada um é obrigado, segundo o seu poder, a mortificar a sua vida e os seus costumes. Exige-o a justiça divina, à qual é dada estrita satisfação das culpas cometidas; e é preferível dar essa satisfação enquanto se está em vida, com penitências voluntárias, porque assim também se tem o mérito da virtude » [15].

O Padre Humberto Pasquale, por sua vez, ensina-nos e previne-nos igualmente:

« Jesus ama tanto os pecadores!... Odeia as suas ofensas, mas ama as suas almas! Jesus tem o Coração aberto para a todos receber. Jesus verte lágrimas sem conta e sangue com abundância. O mundo está coberto de lodo e lama... Os vícios e as paixões atingiram a maior altura » [16].

No mês de Maio de 1938, os Bispos portugueses reúnem-se em Fátima em retiro espiritual. Esse retiro será orientado e pregado pelo Padre Mariano Pinho, director espiritual da Alexandrina, que aproveitará para os “interessar” a respeito da consagração do mundo ao Coração Imaculado de Maria. Eles aceitarão a proposta e é o próprio Padre Pinho quem escreverá a carta ― em latim ― que depois será enviada ao Sumo Pontífice.

Desta carta resulta um novo exame da Santa Sé, confiado desta vez ao Cónego Manuel Vilar ― natural de Terroso (Póvoa de Varzim) ― reitor do Pontifício Colégio Português de Roma.

Este sacerdote tornar-se-á um amigo da vidente de Balasar e seu defensor.

Nesse mesmo ano, a 3 de Outubro, Alexandrina “viverá”, pela primeira vez a Paixão, dada como sinal da autenticidade do pedido de consagração do mundo. Este fenómeno extraordinário durará, na sua forma “visível”, todas as sextas-feiras, até 20 de Março de 1942, ano em que a dita consagração iria ser realizada.

Entretanto, Jesus continua a visitá-la e a encorajá-la na sua missão;

« Hoje, depois da Sagrada Comunhão ― escreve ela ao seu Paizinho espiritual ―, falou-me Nosso Senhor:

— Meu anjo, ó louquinha! Eu venho dar-te a mão, bafejar-te com o me Bafo divino. Venho encher-te, dar-te força para caminhares. Olha, meu amor. Tu amas-me a mais não poder, ainda que to não pareça. Tu és o tudo do meu Coração e Eu o tudo do teu. Eu tenho-te no meu Coração, no lugar mais elevado. És o meu adorno mais belo, mais sublime. E o teu adornei-o com as mais heróicas virtudes. Queres, meu amor, fazer um contrato? Queres contratar comigo?

E eu disse: ó meu Jesus, eu quero, mas de cada vez me sinto mais confundida. Vós bem vedes a minha miséria. Eu sou tão nada!

— Que tens tu com isso? Fui eu que te escolhi assim com essa miséria! Tu deste-me tudo: Eu em troca dou-me todo a ti. Dou-te todos os tesouros do meu Coração. Pega-os, são teus. Dá-os a quem quiseres. Ele está a transbordar de amor: reparte-o. Como é belo amar a Jesus!

Eu estava envergonhada. Como eu era pequenina! » [17]

E, como sempre o Coração de Jesus está no centro: “Eu sou o tudo do teu coração”, diz-lhe o Senhor, depois de lhe ter afirmado que ela, a Alexandrina, era o tudo do Seu.

Depois, vem aquela proposição de “contrato” que surpreende a Vidente que outra coisa não pode dizer senão confessar o seu abismo: “Vós bem vedes a minha miséria. Eu sou tão nada!”

Que importa o abismo se o divino Arquitecto tem em mão os planos?

Jesus não desarma e propõe:

“Dou-te todos os tesouros do meu Coração”.

E, como se esta proposta não fosse suficiente, o Senhor propõe ainda:

“Pega-os, são teus. Dá-os a quem quiseres. Ele está a transbordar de amor: reparte-o”.

Como é bom o nosso Deus! Como ele nos ama!...

A resposta da bem-aventurada beneficiária é como um hino à humildade:

“Eu estava envergonhada. Como eu era pequenina!”

Alexandrina não se sente competente para tão alta missão, ela que era tão “pequenina”, logo pensa que o seu Director espiritual ― que nesse momento está em Fátima rodeado de Bispos ― é a pessoa mais indicada para receber e distribuir tais tesouros. Para que isso possa ser possível ela interroga o Senhor, sempre com a mesma humildade e simplicidade:

― « Ó meu Jesus e poderei eu entregar-me com os vossos divinos tesouros ao meu Paizinho para que ele os reparta como ele quiser às pessoas que me são tão queridas, e aos Senhores Bispos para eles os darem cada um aos seus padres, e os padres às almas? »

Se a pergunta é simples e oportuna, a resposta não o é menos! E que ternura nas palavras de Jesus!

— « Sim, minha amada. O teu Paizinho melhor que tu os saberá distribuir. Faz deles o que quiseres. Como isto me dá consolação! Que consolação me dás! Como Eu te uno a Mim e te estreito ao meu Santíssimo Coração! » [18]

Cinco dias depois, Alexandrina volta a escrever e, se já abrasada no amor divino, ela parece insatisfeita: ela quer amar mais, muito mais e mais ainda...

« Mas ainda ansiava mais ― escreve ela. Queria o meu Jesus. Passado algum tempo, ouvi que Ele me falava:

― Alexandrina, louquinha do amor divino, tem confiança, tem confiança! Minha predilecta esposa que me amas e eu amei-te logo que existias! E amei-te tanto que depressa atingi todo o amor que posso dar às criaturas. Eu amo sem limites, mas não posso amar-te mais. Tens uma prova bem clara, meu amor. Se te não amasse tanto, não te fazia sofrer assim. Dou-te todos os sofrimentos do corpo e da alma. Mas é preciso, meu anjo, sofrer assim para ocupares o lugar que ocupas no meu Divino Coração. Tu, minha louquinha, a sofrer assim, estes dias de angústias, de desolação tremenda, e Eu cheio de delícias em ti » [19].

“Eu amai-te logo que existias”, diz Jesus, antes de lhe dizer que “amava sem limites” e “não posso amar-te mais”. Parece paradoxal, mas não é, porque não é o amor de Deus que é limitado, mas aquela a quem Ele se destina. Efectivamente, nenhum ser humano poderia conter aquilo que não tem limites: nenhum balão pode conter mais ar do que aquele que lhe é destinado, senão rebenta. Assim é com o Amor “sem limites” de Deus.

Outra frase que Jesus lhe diz e que nos interpela, é esta: “Se te não amasse tanto, não te fazia sofrer assim”.

Jesus disse esta mesma frase a Santa Teresa de Ávila, a grande Doutora mística. A resposta da Santa é dum humor extraordinário, o que prova a simplicidade e o “à vontade” com que ela falava a Jesus. Disse-lhe pois:

“Se fazeis isso aos vossos amigos, Senhor, não me admira que tenhais tão poucos!”

Alexandrina, quanto a ela, continua a receber as visitas do Senhor que encontra no coração simples e inocente da sua esposa alívio para os males que entristecem o Seu: os pecados do mundo.

« No dia 3 — de junho, escreve ela ao seu Pai espiritual —, depois de Sagrada Comunhão, sentia que Nosso Senhor se deliciava em mim e eu disse-lhe:

― Deliciai-vos meu Jesus à Vossa vontade.

E Ele disse-me:

— Minha louquinha, minha querida pombinha, ama-me pelos que não me amam, quero que me substituas esse amor. Eu tenho tanta fome das almas e elas não querem saciar a fome de Jesus. Eu quero abundá-las, enriquecê-las dos meus divinos tesouros, e elas não querem. Pobrezinhas! Querem viver pobres! O meu Divino Coração sangra, sangra rios de sangue com os pecados do mundo. (...) Oferece-me, meu anjinho, os teus sacrifícios; consolas-me tanto! Deixa-me deliciar-me, acariciar-te e estreitar-te mais no meu Divino Coração » [20].

Jesus, sequioso de amor e de almas, lembra à sua vítima o “contrato” passado entre eles: enriquecer as almas com os tesouros confiados à Alexandrina. Porque o Seu Coração “sangra, sangra rios de sangue” e, para sarar aquela ferida aberta, a vítima deverá oferecer os seus sacrifícios, porque estes são como um bálsamo suave que consola tanto Jesus.

Alexandrina tinha já de antemão dado a resposta que Jesus esperava: “Deliciai-vos meu Jesus à Vossa vontade”.

Pouco depois o céu da vida espiritual da “Doentinha de Balasar” começa a obscurecer-se e, às consolações vão suceder, a obscuridade, a aridez e o abandono, assim como visões terríveis da humanidade pecadora que não hesita agora a revoltar-se contra o Criador. Ouçamo-la:

« Ontem, domingo, Nosso Senhor mudou o meu sofrimento. Mas ai, meu Jesus, ai, meu Paizinho! Não foi menos doloroso. Recebi o meu Jesus, começou-se a apoderar de mim uma tristeza tão profunda, parecia mortal. E depois começaram os maus tratos a Nosso Senhor. Eu sentia que retalhavam todo o Corpo Santíssimo do meu Jesus e atiravam os pedaços com muita força para longe. As aves apanhavam-nos assim como outros animais. Mas era tal a raiva que tinham àqueles pedaços de carne, que os que ainda de novo podiam tirar aos animais, os esmigalhavam com pedras ou coisas parecidas. Por fim, veio o Coração Santíssimo de Jesus, e umas mãos brutais O apertavam e atavam à volta arames ou cordas fininhas com tanta força que quase traçavam ao meio. Depois, com uns chuços de ferro o espicaçavam todo: e por fim o esmigalharam. Ai, meu Paizinho!

Eu contemplei bem profundamente este espectáculo. Eu vi bem com os olhos da minha alma, tudo isto. Eu não podia mais. O meu coração doía-me, estava agitadíssimo » [21].

Imagem terrível que ela não esquecerá tão cedo, se a conseguiu esquecer...

Mas Jesus, depois de alguns dias de ausência ou de silêncio, talvez para a testar, vai bem depressa reconfortá-la e explicar-lhe que os sacrifícios que lhe pede são necessários para a salvação das almas. Pela sua aceitação constante Alexandrina torna-se a heroína do Amado.

Escrevendo ao seu Pai espiritual, ela conta:

« Isto agora é o que Nosso Senhor me disse no dia 11, dia em que o meu Paizinho aqui esteve:

― Minha filha, minha esposa, minha querida heroína. Chamo-te heroína porque é tua a vitória. Chamo-te tudo que te posso chamar. Anda ao teu Jesus que tem feito violência para não vir a ti, ou melhor para não te falar, para me não fazer sentir, porque em ti estou sempre, nunca te abandono. Queres tirar os espinhos ao meu Coração?

Eu disse:

― Todos, todos, meu Jesus.

― Pois é sofrendo assim, o mundo está como nunca esteve. A malícia dos homens atingiu a maior altura. Queres amor? Não podes com nada, mas amas-me. Viste aquele coração que te mostrei a arder em chamas de amor? Era o teu. Era a tua e minha Mãe Santíssima que o tinha em suas mãos. Os raios que vinham do alto para ele, vinham da Santíssima Trindade. Viste a minha Mãe Santíssima. Não te enganaste. Não te falou para não ser tão grande a consolação. Coragem, minha pombinha. Tu a sofrer, e Eu em ti em delícias. Eu consolado, e tu triste. Diz ao teu Paizinho que te auxilie porque estás a atravessar os caminhos mais dolorosos, e és a minha esposa mais querida. Coragem, coragem, porque é com a tua generosidade no sofrimento que tiras a sebe de espinhos que cerca o meu Divino Coração. E é preciso sofreres para mereceres os nomes que Eu te tenho chamado » [22].

Nalguns países existe este ditado popular: “Os males de uns são a felicidade de outros!”

Jesus que sofre os males que Lhe causam os pecados do mundo utiliza mais ou menos este mesmo ditado expurgado do sentido pejorativo que possa ter a versão dos homens: “Tu a sofrer, e Eu em ti em delícias. Eu consolado, e tu triste”.

Mais lhe diz ainda: “E é preciso sofreres para mereceres os nomes que Ei te tenho chamado”.

Já tivemos ocasião de frisar quão numerosos foram os títulos que a Alexandrina recebeu de Jesus: “minha heroína” e “minha pombinha”, aqui; “minha louquinha” ou “louquinha da minha Eucaristia”; “minha rainha” ou “esposa do Rei Sacramentado”, mais acima. Como já dito, o Padre Humberto Pasquale, seu segundo Director espiritual e seu biógrafo, contou mais de 300.

Quando este ano de 1938 estava prestes a findar, a 27 de Dezembro, Alexandrina foi examinada pelo eminente professor Elísio de Moura, psiquiatra; ele mostrou-se cruel para com ela, causando-lhe umas grandes dores e tristes recordações para o futuro. Tratou-a “aos safanões”, comenta o Padre Mariano Pinho que assistiu a essa consulta. “Não me saía da ideia o que o médico me tinha feito sofrer... o dia de ontem foi um dia de lágrimas para mim...”[23], diz a Alexandrina ainda toda dolorida pelos maus tratos recebidos.

Na sua Autobiografia ela conta este episódio surpreendente:

« Em 26 de Dezembro de 1938, fui visitada e examinada pelo Sr. Dr. Elísio de Moura, que me tratou cruelmente, tentando sentar-me numa cadeira com toda a violência. Como nada conseguisse, atirou-me para cima da cama, fazendo várias experiências que me fizeram sofrer horrivelmente. Tapou-me a boca, atirou-me contra a parede, fazendo-me dar uma forte pancada. Vendo-me quase desmaiada, disse-me: “Ó minha Joaninha, não percas os sentidos!”.

Sem querer, chorei, mas todas as minhas lágrimas ofereci a Jesus com os meus sofrimentos, que foram muitos, pois o que digo nada é do muito que passei. Tudo lhe desculpei, porque ele vinha em missão de estudo » [24].

 


 

[1] Padre Humberto Pasquale: «Alexandrina»; cap. 5.

[2] Carta ao Padre Mariano Pinho : 01.08.1935.

[3] Padre Mariano Pinho: “No Calvário de Balasar”, cap. 10.

[4] Carta ao Padre Mariano Pinho : 22.08.1935.

[5] Carta ao Padre Mariano Pinho : 11.09.1935.

[6] Padre Humberto Pasquale : «Alexandrina»; cap. 5.

[7] Padre Mariano Pinho : “No Calvário de Balasar”, cap. 10.

[8] Santa Teresa de Ávila : Moradas ou Castelo interior, Quintas moradas, cap. I-4.

[9] Padre Mariano Pinho : “No Calvário de Balasar”, cap. 10.

[10] Carta ao Padre Mariano Pinho: 30.08.1937.

[11] Carta ao Padre Mariano Pinho: 24.09.1937.

[12] Carta ao Padre Mariano Pinho: 02.10.1937.

[13] Padre Humberto Pasquale: «Alexandrina»; cap. 4.

[14] Leão XIII: Supremi apostolatus officio, 11.

[15] Leão XIII: Octobri mense, 29.

[16] Padre Humberto Pasquale : «Alexandrina»; cap. 5.

[17] Carta ao Padre Mariano Pinho : 05.05.1938.

[18] Carta ao Padre Mariano Pinho : 05.05.1938.

[19] Carta ao Padre Mariano Pinho : 10.05.1938.

[20] Carta ao Padre Mariano Pinho : 06.06.1938.

[21] Carta ao Padre Mariano Pinho : 25.07.1938.

[22] Carta ao Padre Mariano Pinho : 15.08.1938.

[23] Carta ao Padre Mariano Pinho : 27.12.1938.

[24] Alexandrina Maria da Costa : Autobiografia.

   

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