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ALEXANDRINA
E A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL


Afonso Rocha

A Justiça e o amor de Deus
nas “Cartas ao Padre Pinho”

2

“Abandona-te a Mim”

Na missiva de 7 de Julho de 1939, as palavras de Jesus não são ralhos, mas palavras ternas, palavras pelas quais Jesus desvela uma vez mais a ternura do seu Coração e o seu amor para com a vítima de Balasar que de novo se oferece generosamente:

“— Ó meu Jesus, eu aceito tudo, mas quero-Vos dar toda a honra possível, amor, glória e reparação. Fazei-me sofrer tudo; crucificai-me, meu Jesus: fazei que eu Vos dê tudo quanto Vos posso dar.

Chegou a hora: Nosso Senhor bateu à porta do meu coração e disse-me:

— Vem cá, vem cá minha crucificada, entrega-te nos meus Divinos braços, abandona-te a mim. Deixa-me fazer de ti tudo o que Eu quiser. Não temas; confia; é esta esmola que te peço.

Mas os homens só se lembram de Deus quando as adversidades caem sobre eles. Enquanto estas não chegam, fazem como os habitantes de Sodoma e Gomorra: comem, bebem e dançam, e pior ainda: pecam sem remorsos, ofendendo ainda mais gravemente Aquele que sempre se mostra misericordioso. Disso mesmo se queixa Jesus, como podemos ler na carta escrita em 9 de Julho de 1939:

Nosso Senhor disse-me assim:

— Maldita! na aflição acreditas em Mim, chamas-Me, invocas o meu Divino Auxílio: e quando Eu te chamo para deixares o caminho da perdição e seguires aquele que te conduz a Mim, não Me ouves, estás morta, morta pelo pecado. Desgraçada, és digna de morte eterna, da sorte dos condenados!”

A linguagem popular sintetiza esta triste situação numa pequena frase que todos conhecemos: “Só nos lembramos de Santa Bárbara quando troveja!”

Assim ia o mundo naqueles anos: Jesus avisa, Jesus pede, Jesus suplica, mas a humanidade dança, canta, diverte-se, peca impunemente — julga ela — sem nunca se lembrar que “para os grandes males só os grande remédios” servem e, neste caso, o melhor remédio era o que o Senhor pedia insistentemente: a oração e a penitência.

A humilde vítima de Balasar continuava a ouvir a voz terrível do Senhor... Mas ela não ouvia só aquela voz cheia de cólera — de justa cólera!  — Alexandrina “via” também aquilo que ouvia, como podemos deduzir das frases que se podem ler em carta escrita de 13 de Julho de 1939:

A tempestade tudo derrubava, o peso esmagava-me até que ficava despedaçada e me enterrava pelo chão. Passei hora e meia neste estado e depois disse-me muito fortemente Nosso Senhor:

— A fúria da tempestade da alma é muito mais tremenda do que a fúria dos ventos, a tempestade dos tempos e dos astros: Maldita, já não a temes, não a ouves! Vê a gravidade dos crimes que te matou. Desgraçada: o inferno todo te espera para te atormentar em todos os teus sentidos!

A aflição fez-me rolar; e Nosso Senhor dizia-me ao mesmo tempo que me esmagava com o peso da Sua Justiça Divina:

— Recebe maldita, a minha vingança.

Parecia-me que com uma foice era toda retalhada”.

Dessa mesma carta, destacam-se ainda estes exemplos claros da cólera divina:

Hoje, no fim da Sagrada Comunhão, o caso foi mais sério. Durante um pedaço sentia a morte muito no íntimo, e uma tremenda revolta. E Nosso Senhor, muito forte, dizia-me:

— Maldita! calcas aos pés o Meu Divino Sangue, a Minha Carne Divina que Eu preparei para teu alimento, para a vida da tua alma: é calcado aos pés, é profanado: e, ainda não satisfeita, escarras no rosto do mais belo dos homens, no meu rosto divino. És tu, és tu mesma! Basta: não te posso sofrer mais, maldita; serás maldita eternamente! Passará um século, passará outro, e tu sempre no inferno: maldita eternamente!

Quando Nosso Senhor me dizia que Lhe escarravam no Seu Divino Rosto, eu sentia cair no meu coração uma chuva de escarros; e sentia o meu corpo todo cortado em pedaços para ser lançado fora e calcado aos pés”.

A leitura destas frases causa calafrios — mesmo quando sabemos que não é a Alexandrina que está em causa, e que deste estado do mundo ela não tem culpa —, porque, se olharmos bem à nossa volta, não podemos esconder a nós mesmos que os tempos actuais são ainda mais desastrosos do que aqueles em que viveu a “Doentinha de Balasar”.

Em quase todos os países do mundo desapareceu o sentido do pecado; desapareceu o temor de Deus, subverteu-se a moral... Vivemos num verdadeiro caos, mesmo se muitos dizem que tudo vai bem, que passamos bem sem a religião e ainda melhor sem Deus, porque Deus não existe, senão não deixava morrer tantos inocentes nem desencadearem-se tantas guerras e tantos atentados...

Mas, quem somos nós para julgar a Deus? Porventura é Ele que desencadeia as guerras? Porventura é Ele que pratica atentados? Será ainda Deus que mata as crianças nos ventres de suas mães? Teria sido Deus que estragou o ozono e modificou o sistema natural que Ele mesmo criou? Não era inocente também o Filho de Deus que os homens crucificaram?

Nós somos os únicos culpados disso, e não Deus: Deus só quer o nosso bem, porque Ele nos ama, porque Ele é Amor e Justiça ao mesmo tempo.

Quem somos nós que julgamos Deus, dizendo que não é possível que Ele nos castigue justamente, porque é Amor?...

Nós, que nada somos, não hesitamos em castigar os nossos filhos quando nos não obedecem ou cometem qualquer falta... Mas Deus não pode castigar... Deus é só Amor... E, da sua Justiça, que conceito fazemos?

Mas, para remediar a esta espécie de pessimismo, convém lembrar aqui aquelas palavras de Jesus que S. Mateus transcreveu no seu Evangelho:

“Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que vos está preparado desde a criação do mundo” (Mt. 25, 34).

Assim como aquelas de S. João Crisóstomo, Pai e Doutor da Igreja universal:

“É a misericórdia de Deus que, comovida com o nosso destino, nos transforma a todos; é ela que nos converte” [1].

“Confia: Eu estou a teu lado”

Na carta escrita em 14 de Julho de 1939, e sempre endereçada ao Padre Mariano Pinho, Alexandrina, com um certo júbilo anuncia ao bom sacerdote as ternas palavras de Jesus:

“Nosso Senhor (...) chamou-me:

— Minha filha, minha filha, dá-me a esmolinha. Confias que Me dá mais consolação, que é de mais merecimento a tua esmola do que todas as esmolas do mundo?

— Custa-me a acreditar, meu Jesus, mas confio em Vós.

— Então, não me negues. Vá, deixas-me entrar e tomar tudo o que é de valor? Em ti não há nada que não tenha valor.

— Ó meu Jesus, sou a Vossa vítima, tudo é para Vós.

— Confia: Eu estou a teu lado e o teu Paizinho acompanha-me para te dar-mos coragem. Não temas.

Depois disto seguiu-se no Horto um tremendo abandono. Eu invocava muito repetidas vezes o nome do meu Jesus: buscava n’Ele força para o meu sofrer. E Nosso Senhor disse-me assim:

— A criancinha não pode viver sem cuidado, o alimento e as carícias de sua mãe. Eu sou mais que todas as mães da terra: tenho todo o cuidado por ti, venho alimentar-te, venho acariciar-te.

Ao ouvir isto fiquei mais confortada e não tive outra resposta para o meu Jesus senão muito obrigada.”

Que ternura nestas frases de Jesus! Que carinho demonstra Ele para com a sua “filhinha”!

Este bálsamo deu conforto à Alexandrina, surpreendeu-a de tal maneira que ela mais não soube dizer “senão muito obrigada”!

Como se tornam aqui realidade as palavras de São Paulo aos Romanos:

“Quem poderá separar-nos do amor de Cristo? A tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo, a espada?” (Rm. 8, 35)

Ouçamos ainda Jesus queixar-se à Alexandrina, como podemos ler em carta escrita a 19 de Julho de 1939:

E eu não saio da morte, umas vezes mais outras vezes menos; é assim que eu vivo. Como eu me vejo aflita no fim de receber o meu Jesus. Eu, hoje rolei pela cama; e Ele dizia assim:

— Desgraçada, só o pecado é que causa assim a morte! Que será de ti se não tens quem se compadeça? Eu não te posso suportar mais! Olha as tuas misérias, os teus crimes…

O peso esmagava-me e parecia-me que um punhal me atravessava o corpo e o coração; e Nosso Senhor dizia-me:

— Já antes de morreres era assim que tu me fazias: desgraçada, maldita!”

A humanidade prefere Satanás

No dia seguinte ela escreve ainda ao seu Paizinho espiritual:

O peso esmagador esmagava-me o coração. Sentia Nosso Senhor a repelir-me e dizia-me claramente:

— Aparta-te de Mim! Maldita tu és, não te posso ver, causas-me nojo! Não és digna de te sentar à minha mesa: antes quero ver sentados a ela os animaizinhos e Eu mesmo ser quem lhes servia para alimento a minha divina carne, o meu divino sangue. Tu não és digna do manjar mais delicioso: queres alimentar-te dele para o vomitares fora, calcares aos pés e lançares para as estrumeiras. Desprezas-Me, preferes a Satanás: também, já fui preferido a Barrabás, para Eu ser crucificado”.

A humanidade prefere Satanás a Jesus...

Quanta tristeza da parte de Jesus, nesta afirmação ainda tão actual!...

Mas a Alexandrina continua a sofrer esta “encarnação” da humanidade e a ouvir as queixas e as ameaças do seu e nosso Senhor: era ela a vítima expiadora que Jesus escolhera desde toda a eternidade. O que ela vive é aterrador!...

Depois de tão duras palavras, Jesus vem de novo confortá-la e dirigir-lhe palavras de amor, cheios de ternura e carinho.

Na carta de 21 de julho ela escreve:

“Nosso Senhor compadecido de mim bateu ao meu coração e confortou-me assim:

— Minha querida filha, minha crucificada, venho desejoso, venho faminto da tua esmola; é a minha consolação, é o alimento da humanidade: sustentas a Justiça Divina. Ela quer cair sobre a terra com a sua força vingadora. Que dizes a isto, dás-ma?

— Ó meu Jesus em vez de me crucificares às sextas-feiras, crucificai-me todos os dias ou mais se possível. Bem sabeis que sou fraquinha, sou sempre aquela que não move nada, uma pequena aresta.”

Não satisfeita de assim se humilhar, Alexandrina insiste e queixa-se:

“— Meu Jesus, ai como o meu coração está angustiado.

— Tens razão, não podes sofrer mais, nem eu sofri quanto à natureza humana. Quanto maior é a tua desolação e a dor do teu coração, mais me desagravas e me consolas.”

E Jesus insiste também, para a consolar e lhe inculcar mais coragem:

“— Escuta minha filha, a voz tão doce e tão meiga que te chama e te pede que aceites tudo por amor. Coragem, um pouquinho mais!”

“A gravidade dos crimes é tremenda”

A carta que escreveu em 25 de Julho de 1939 é bastante interessante, não só porque nela podemos ler as admoestações divinas, mas também porque nela a Alexandrina explicar o que sente, o que vive de maneira quase surrealista:

Tenho medo de viver: a vida para mim é um horror. Não sei o que sinto, quero abafar a voz da minha consciência: convida-me a mudar de vida, mas eu não quero. A minha consciência está morta: toda eu parece que não vivo. Nosso Senhor ralhou-me tanto no fim de eu O receber! Repelia-me d’Ele e dizia-me:

— Não te aproximes, não dês mais um passo: retira-te de Mim, vai lavar-te, vai vestir-te!

Ao ouvir pronunciar estas palavras, já rolava pela cama. Nosso Senhor caiu sobre mim, calcava-me que me deixava aniquilada, toda esmagada e dizia-me:

— A gravidade dos crimes é tremenda e horrível; também a minha Justiça é tremenda e horrível. Paga-me tudo, senão és condenada, vives a vida dos condenados!

Parecia-me que o meu Jesus enrolava todo o meu corpo até que ficava todo numa bola que Ele apertava tanto, tanto em Suas Divinas Mãos até que a deitava ao chão e calcava aos pés até que ficava em nada, tudo desaparecia. As palavras de Nosso Senhor eram tremendas, mas mais tremendo era o estado da minha alma: tão morta estava que ficava como que não ouvisse e não temesse o meu Senhor. Era um rochedo que não havia nada que partisse.” [2]

Representar assim tanto ao vivo a humanidade pervertida e gravemente pecadora foi experiência dolorosíssima para a “Doentinha de Balasar”. Por vezes ela sente-se de tal maneira “incorporada” naquela humanidade que as suas palavras são mesmo as que a humanidade inteira proferia contra Deus.

Alexandrina, uma vez mais, vai oferecer-se, vai entregar-se ao bel-prazer de Deus, aceitando de antemão tudo aquilo que Ele desejar enviar-lhe:

“— Ó meu Jesus que me podeis Vos pedir que eu não Vos dê. Não tenho coragem, nem quero ter jamais de Vos negar nada. Vós sois digno de todo o amor e de toda a consolação possível. E que maior prova de amor Vos posso dar do que sofrer tudo por Vós? E que maior consolação podeis receber de mim do que dando-Vos as almas? Batei, Jesus, esmagai-me toda: eu gritarei sempre, Jesus, eu amo-Vos, debaixo do peso de toda a dor e angústia, sou Vossa Vítima, vítima que convosco não teme ser imolada a cada momento. Não cesseis de me esmagar, de me dar sofrimentos. Eu com a Vossa graça, não cessarei de Vos amar, de Vos dar almas, dando por elas todo o meu sangue se assim quiserdes, meu Jesus. quero sofrer muito, muito pelos sacerdotes, mas muito em particular por aqueles a quem o meu Paizinho está a falar. Fazei que eles se incendeiem todos nas chamas do Vosso amor. Ai meu Jesus, como se me afigura que sou tão impostora. Vós sabeis tudo confio, confio meu Jesus.”

Em carta enviada ao Padre Pinho em 27 de Julho de 1939, explica:

Não sei como Nosso Senhor pode suportar-me e não me tem já no inferno. Ele ralhar, ralhou-me. Eu também tornei a tombar na minha cama com a aflição que me causava, se bem que me parecia que O não temia. Mas Ele dizia-me:

— Não Me temes, não sentes os remorsos, porque o pecado calejou a tua consciência. Estás morta, matou-te o pecado. Maldita, tentas persuadir-te que não existe eternidade ou feliz ou desgraçada! À tua vida convém-te que ela não exista… Desgraçada, olha como vives! Paga-me, dá-Me contas!

Nosso Senhor esmagava-me com os seus Divinos Pés. Mas depois, com uma voz mais doce e suave, dizia-me.

— Converte-te, ouve a voz do teu Senhor, é o último chamamento”.

“Loucura dos meus olhos!”

O dia 28 de Julho é dia não de ralhos mas de palavras ternas, em que Jesus demonstra uma vez mais o seu amor à vítima que tão generosamente se oferece:

“Nosso Senhor chamou-me:

— Minha filha, minha querida filha, loucura dos meus olhos, dá-me a esmola. Horas aflitas apertam o mundo, horas de tremendos e horríveis castigos. O meu Divino Coração sangra, está angustiado de dor e o bálsamo de tua crucifixão pode curar-lhe as feridas. Queres curar-me?

— Ó meu Jesus, eu quero tudo que seja para Vós e para as almas. Crucificai-me.

— Tem coragem: as forças não te hão-de faltar.

No Horto disse-me assim:

— Minha louquinha, tem coragem, não desanimes e não duvides. Sou Eu o Jesus, o artista divino que trabalha em ti: faço maravilhas que nunca fiz no mundo, nem jamais farei. Apresso-me a realizar em ti a minha obra.

Não tive outras palavras para o meu Jesus senão um “muito obrigada”. Mais tarde um pouquinho, quando o desânimo era muito, Nosso Senhor disse-me:

— Coragem, minha filha, minha alegria, minha loucura! Primeiro que tu sofri o abandono e todos os sofrimentos: abri-te o caminho. É por meu amor; não achas que mereço tudo?

— Ó meu Jesus, é por Vós que eu sofro de boa vontade. Quero morrer por Vosso amor; milhões e milhões de vezes e por Vós derramar todo o meu sangue.”

“A minha miséria é extrema”

No dia 30 do mesmo mês de Julho ela explica ainda melhor a sua situação de vítima e a sua “incorporação” como “humanidade pecadora”. Ouçamo-la atentamente, com devoção e admiração:

A minha miséria é extrema, o meu nada assustador. A minha alma está morta e não temo o meu Senhor. Ele não me tem ralhado nem acariciado. Mas, ai, o abandono e desolação em que estou! Queria palavras para desabafar e mostrar o que a minha alma sente; mas não sou capaz, não sei dizer nada. Tento aproximar-me do meu Jesus, correr para Ele, mas Ele parece que foge de mim: quanto mais corro, mais longe me vejo d’Ele. O meu coração sofre tanto com os males do mundo, com as ofensas que se fazem ao meu Jesus! Sinto que sou, não sei como dizer, não sei se isto terá explicação: sou quase como um pára-raios: eles não vinham para ser para mim, mas não sei o que é que os atrai. Penso ser as ofensas que se fazem a Nosso Senhor; elas iam para Ele, mas eu apanho tudo para mim. Disse mal? Eu não penso, é o que sinto. Eu então ao sentir-me assim, disse:

Ó meu Jesus, eu quero que o meu coração seja o centro onde venham cair todos os espinhos, todas as setas que vão ferir o Vosso, ainda que por isso tenha que abrir-se o meu peito, arrancá-lo fora e tê-lo à disposição de todos para o ferirem como quiserem: o que eu quero é ter a certeza que não sofreis Vós nada.

Ai meu Paizinho, ai que desolação! Eu não sei dizer o que sinto: a dor que trespassa o meu coração é aguda, é dolorosíssima. Vivo na dúvida e desconfiada de mim”.

A humanidade é infiel e ingrata, por isso mesmo merecedora de condenação eterna.

Eis o que diz Jesus à boa Alexandrina no dia 1 de Agosto do mesmo ano:

Hoje, no fim de O receber, quase não podia pronunciar palavra; sentia-me morta e abandonada. A aflição fez-me rolar e Nosso Senhor dizia-me muito irado:

— Como és infiel ao teu Senhor, como és ingrata para o teu Criador, para o teu Deus! És digna de maldição, de morte eterna. Paga-Me, paga-Me!

O peso esmagava-me. Principiei a ouvir e sentir o furor da tempestade, o assobiar dos ventos: cada vez me sentia mais aterrada”.

O peso dos pecados

Que peso era aquele que a esmagava?

Para responder a esta pergunta, nada melhor do que citar um caso passado na vida da vítima do Calvário de Balasar:

“Certo dia — escreve o Padre Humberto Pasquale — estava presente um célebre médico, o Dr. Elísio de Moura: um homem de grande reputação em matéria de psiquiatria. Tirou o casaco, e com os seus modos bruscos e enérgicos aferrou a Alexandrina por baixo dos braços. Suava. Mas não a moveu nem um centímetro; pelo contrário, a um jeito improviso da agonizante no Horto, o psiquiatra caiu de costas.

Vários homens, amigos da família, prepararam uma balança, para verificar o peso da Cruz de Jesus. Mas todos os seus esforços para levantarem a Alexandrina, não lhes valeram de nada.

O seu Director lembrou-se em certa ocasião de lhe perguntar, por obediência, durante a subida ao Calvário, qual era o peso da Cruz.

E a vidente obedeceu. Simples e solene, respondeu no êxtase:

― A minha cruz tem um peso mundial !

Resposta profundamente teológica e desconcertante: sobre a Cruz de Jesus pesavam, efectivamente, todos os pecados da humanidade. O mesmo «peso mundial» sentia-o durante a agonia no Horto. Parecia-lhe que era despedaçada e triturada entre o cúmulo dos pecados e o peso da justiça divina, como se estivesse entre os cilindros de uma prensa ou entre os mordentes de um torno”.[3]

“Tu só me dás consolação”

No mesmo dia, e na mesma carta Alexandrina conta de que maneira o Senhor se mostrou cheio de ternura, para a encorajar, falando-lhe não só do seu Paizinho espiritual, mas também de Deolinda, a querida irmã et de Sãozinha, a professora tão assídua a prestar serviço à Alexandrina e à família desta:

“O meu Jesus compadeceu-se de mim, principiou a dizer-me mais brandamente:

— O teu doloroso calvário vai acalmar as tempestades e reparar os estragos que ela causou. Não é contigo a mínima coisinha do meu ralhar. Estou contentíssimo contigo, minha louquinha: não tenho porque te ralhe. Tu só me dás consolação; és digna de louvor, digna de elogios e dos meus aplausos. A tua alma, o teu coração são as minhas delícias, são o paraíso na terra.

Apesar de me sentir envergonhada, já o meu Paizinho pode calcular a paz que sentia: momentos sem dúvidas e cheios de luz. Sentia-me então tão grande! Era o oceano, sentia ser o paraíso que Nosso Senhor me dizia. Não sentia quase nenhuma consolação mas conhecia bem que eram coisas de Nosso Senhor. Ele dizia-me:

— Tu és a minha vítima imolada, sacrificada. tenho-te sempre na prensa para te espremer. O pequeno alívio que às vezes sentes é quando levanto o peso para te remover e depois de novo te esmagar. Confia, confia que é Jesus quem te diz tudo, não duvides. Olha o teu Paizinho faz em tudo a minha divina vontade; dá-me toda a consolação, é um primor que eu tenho na minha companhia. Diz-lhe que o amo muito: que trabalhe sem cessar e para incendiar o meu amor nas almas, elas estão tão frias! Diz à tua irmã e à tua Sãozinha que delas espero muito e que lhes dou todas as graças precisas para que elas sejam o que Eu desejo. É a recompensa que lhes dou do que elas fazem por ti. Beija-as, abraça-as, acaricia-as. É a prova do meu amor.”

Mau cheiro do pecado

Os pecados do mundo não só têm grande peso, mas também cheiram mal, causam nojo ao Senhor. É isto que ressalta de uma outra carta da Alexandrina ao seu Director espiritual, datada de 4 de Agosto desse mesmo ano de 1939:

Nosso Senhor, no fim de eu O receber, fez-me sentir tanto, tanto o esquecimento d’Ele, e no fim a morte! Mais tarde um pouquinho, dizia-me:

— Cheiro nauseabundo: aparta-te de Mim! Sabes o que te faz escalar [4] esse cheiro? A imundície e a maldade dos teus crimes.

Eu não disse palavra ao meu Jesus”.

“Que sublime é a tua missão”

Depois destas palavras rudes, na mesma carta podemos ler, como um contrapeso destas, as seguintes, que Alexandrina introduz com um certo humor:

“Ao meio-dia, ou talvez ainda antes, sentia que Nosso Senhor andava a espreitar; queria falar-me. Chegou a hora: bateu palminhas ao meu coração, e chamou-me:

— Minha filhinha, minha filhinha, vem cá: tenho tanta fome! Anda matar-ma, dá-me a esmola. Preciso tanto dela para me desagravar, para distribuir as almas! Olha, tem mão nos espinhos que vêm magoar, que vêm ferir o meu Divino Coração.

— Ó meu Jesus que eu seja ferida e esmagada, não me importa, o que me importa é não deixar ir nada para Vós que Vos possa magoar e entristecer, que possa ferir o Vosso Divino Coração de Pai Bondoso. Crucificai-me sem demora.

— Que árdua, que bela, que sublime é a tua missão, meu encanto. Confia que tens sempre as tuas forças.

(...)

Depressa caí em desânimo de desfalecida. Invoquei o nome de Jesus e não foi em vão; Ele falou-me logo.

— Tem sempre nos teus lábios e no teu pensamento o meu Divino Nome. Eu sou Rei e nunca abandono o Trono do teu coração. Nele me alegro e me delicio.”

São Bernardo de Claraval, na sua Terceira homilia sobre o Cântico dos Cânticos escreve:

“Eis o Seu templo, eis o Seu trono... Sim, é no coração que recebemos a misericórdia, é no coração que habita Cristo, é no coração que Ele murmura palavras de paz ao seu povo, aos seus santos, a todos aqueles que entram no seu coração.”

Quando o mesmo Espírito “sopra”!...

No dia seguinte ela explica o que lhe vai na alma:

Mas ainda antes de O receber sentia uma tempestade tão grande na minha alma! Tentava enrolar e derrubar tudo. Recebi a Jesus; a fúria da tempestade redobrou: abandonei-me toda a Ele, entreguei-me nos seus Divinos Braços. A fúria tremenda tentava arrancar-me deles, mas não o conseguia”.

Alexandrina sofre e expia, mas ama, ama tanto quanto lhe permite o seu dócil coração. O seu desejo é agradar a Jesus, amá-Lo com ternura e salvar-Lhe almas. E, mesmo quando as queixas de Jesus são terríveis, ela não perde nunca a confiança nem a sua fé sofre qualquer diminuição: “amar, sofrer e reparar” é o seu lema, “custe o que custar”.

No dia 5 de Agosto ela dita:

Hoje, quando recebi o meu Jesus, estava morta, esquecida d’Ele e numa desolação tremenda. E dizia-Lhe:

Jesus, estais a fingir que me abandonastes, mas eu confio em Vós. Eu sei que a ternura e amor do vosso Divino Coração não vos deixa separar de mim.

A aflição continuou; fez-me rolar pela cama, mas com tanta força que me parecia que os ossos se despedaçavam um bocado para cada lado. Ó meu Jesus, que dores! E o meu Jesus parecia-me que estava com os pés sobre o meu coração a esmagar-me fortemente, e dizia-me:

— Paga-Me, paga-Me! Hás-de pagar-Me com duros sofrimentos os males da tua fraqueza. O que por aí vai! Faz-Me tremer a gravidade, a malícia com que Me ofendem. Pouco se aproveita. Deito-os numa medida, raso-os no fim, só os que caem fora Me pertencem”.

No dia 15 de Agosto, festa da Assunção de Maria, Jesus começa por ralhar, depois chora e fala-lhe “com mais bondade”:

Pouco a pouco, senti-me morta e principiou Nosso Senhor a repelir-me e dizia-me:

— Aparta-te de Mim, não dês mais um passo, não irrites mais a Justiça Divina nesta tremenda hora em que ela está armada para se vingar de toda a humanidade!

E Jesus principiou a chorar e, passado um bocadinho, já com mais bondade, estreitando o meu coração ao d’Ele, dizia-me:

— Hoje o teu coração tão amante do meu está triste e angustiado e o meu tão amante da humanidade é amargurado; sou crucificado com tanta maldade e malícia com que Me ofendem”.

A oferta é imediata e generosa como sempre:

“— Meu Senhor e meu tudo, que eu sofra os mais horríveis sofrimentos pouco me importa, isso mesmo é o que eu desejo, porque confio em Vós, que sois a minha força; mas ver o meu Jesus crucificado, ofendido, não, não posso. O meu coração morre de dor; deixá-lo, quero sofrer tudo por Vós, sois digno de todo o meu amor.”

“Vem minha esposa para os meus Braços”

Nova acalmia e novas palavras de reconforto.

Na carta de 18 de Agosto, podemos ler:

“Nosso Senhor, de vez em quando, vai-me deitando a mão. Antes da crucifixão ainda Ele não me falava e eu já sentia a acariciar-me e a estreitar o meu coração ao d’Ele.

Depois disse-me assim:

— Vem filhinha, vem minha esposa para os meus Braços Divinos; é neles que me vais dar a tua esmola: é de superabundância para mim e para os pecadores, desagravas-me e salva-los. Sofres tudo?

— Já sabeis que sim, meu Jesus. Que me podereis pedir que eu Vos não faça? Antes quero morrer que negar-Vos a menor coisinha: dai-me força, meu Jesus, bem sabeis que eu não posso nada.”

Na mesma carta de 18 de Agosto, Jesus continua a confortá-la e a explicar-lhe o que nela se passa e porquê:

“Nosso Senhor falou-me uma vez durante o Horto. Disse-me assim:

— Meu amor, meu amor, tem coragem. A tua crucifixão é o quadro mais vivo da minha paixão que eu podia mostrar as almas.

Na flagelação vi-me tão aflita que disse para Nosso Senhor:

— Agora vejo que não sou eu: ainda que quisesse parar, não podia.

A fúria era tremenda. Nosso Senhor disse-me:

— Então agora acreditas? Tem coragem e confiança. Eu é que permito tudo, faço em ti todos os movimentos, é para me desagravar e salvar as almas.”

Dois dias depois, a 20 de Agosto, ao seu Paizinho espiritual, a Alexandrina confirma os ralhos divinos e fala novamente do mau cheiro dos pecados. Jesus não só repele a humanidade, mas ameaça esta de lhe retirar o que sustém o braço de Deus: a sua divina misericórdia. Leiamos:

Hoje já não passei sem ralhos de Nosso Senhor. Estava tão severo! Assustou-me tanto! Oh, como O temia! Foi quase logo que desceu ao meu coração que Ele me dizia assim ao tempo que me repelia com a sua mão divina:

— Não te aproximes! O cheiro nauseabundo faz deitar tudo fora, até as fezes. A malícia da carne, a concupiscência, a maldade de todos os crimes. Pára! Ou paras de Me ofender com tanta gravidade, com tanta malícia, ou paro Eu com a minha misericórdia, com o meu Amor”.

A data fatídica aproxima-se...

Quanto mais a data fatídica se aproxima, mais Jesus ralha à humanidade insensível aos seus pedidos e às suas admoestações. Em breve vai desencadear-se o ciclo infernal que cobrirá a Europa e o mundo de milhões de mortos.

Em carta escrita em 21 de Agosto de 1939, a Alexandrina dá conta ao seu Pai espiritual das palavras e queixas de Jesus:

A dor, a agonia do meu coração é contínua. Ao ouvir as palavras de Nosso Senhor, tive que rolar pela cama. Ele dizia-me:

— Miserável, desgraçada, paga-Me a dívida mais penosa e de maior valor, é a dívida dos sacerdotes, a dívida mais cara: oferecestes-te por eles como vítima! Paga-me; eles calcam aos pés à minha lei, à minha divina Carne, ao meu divino Sangue. Paga-Me miserável, paga-Me, desgraçada!”

No dia seguinte ela envia ao Padre Pinho nova carta e, como sempre, ela informa o santo sacerdote das queixas e das ameaças de Jesus: a humanidade corre para o abismo, sem pensar um só momento em arrepiar caminho; é uma corrida vertiginosa e irremediável.

As palavras de Jesus são sobretudo de tristeza e de dor:

O meu Jesus continua a ralhar-me; continuo a rolar na cama. Meu Deus, meu Deus como eu tenho medo! Hoje, dizia-me assim:

— Cruel insensata! De ti esperava tudo; desprezaste-Me, calcastes aos pés o alimento da tua alma e de todas as almas. Desafias com os crimes mais horrendos a justiça divina. Criei-te para Mim; desprezaste-Me, abandonaste o teu Deus, o teu criador; és digna de morte, és digna do inferno!”

As orações e os sofrimentos das almas-vítimas — e elas são numerosas durante este triste período! — parecem não ser suficientes para travar a corrida vertiginosa da humanidade, uma humanidade que parece cega e obstinada não só no seu pecado, mas até na sua autodestruição. O coração da humanidade tornara-se então em pedra dura, resistindo a tudo e até mesmo ao amor e ao amor de Deus em particular.

Jesus queixa-se da impermeabilidade de todos os corações e reitera a sua exigência: arrepiar caminho!

Mas a pobre humanidade está surda: surda, porque não quer ouvir a voz do seu Criador; cega, porque não quer ver a mão de Deus que prefere abençoar a punir. Triste humanidade surda e cega, para onde vais?

A carta de 23 de Agosto é bem explícita:

Sentia que mãos imundas me apertavam a garganta; e Nosso Senhor dizia-me:

— Maldita, Satanás é o teu senhor; expulsaste-Me a Mim para ele te possuir! Ele quer instalar-te em corpo e alma no aposento dele, que é o inferno: és digna dele. As tuas paixões desregradas ta fizeram merecer. Converte-te, ouve a voz de teu Deus, deixa-me de novo tomar posse do teu coração para poderes ser digna da minha mansão celeste para que Eu te possa instalar lá: arrepia caminho!

O meu coração estava duríssimo, eu não queria ouvir a voz de Nosso Senhor; Ele, irritado contra mim, deixava cair o peso da sua divina justiça e dizia que me esmigalhava.

— Olha o caminho que trilhas, olha como Me fazes, os maus-tratos que Me dás. Converte-te, converte-te, porque te quero para Mim!

Todo o meu corpo ficava alanceado: mas não valeu nada o chamamento de Nosso Senhor: fiquei morta por completo. Meu Jesus, é tudo por Vós; aceitai a minha desolação e os meus dolorosos e tristes sofrimentos para conciliar e abrasar no Vosso amor todos os Vossos discípulos: sou vítima deles, aceitai-me Jesus”.

E mais adiante:

Nosso Senhor continua a ter-me abandonada, a fazer-me sentir que não tenho ninguém por mim: que mesmo Ele e a querida Mãezinha me odeiam. Ele usa comigo com toda a severidade. Hoje, pouco depois que desceu ao meu coração, senti tanta aflição, faltava-me a respiração e este pobre coração era como um pau roliço que rolava e rastejava pelo chão e batia nas ladeiras com toda a força, até que se esmigalhava. Ao ouvir a voz de Nosso Senhor, rolei eu também com uma força brutal. Ele dizia-me:

— Miserável, desgraçada, paga-Me, paga-Me esta dívida tão cara em horas tão graves!

E, esmigalhando-me sobre o chão, um peso enormíssimo parecia prender-me ao soalho. Nosso Senhor dizia-me:

— Estás presa a este leito tão duro como eles estão presos com as cadeias do inferno. Converte-te, se não és condenada!”

“O príncipe deste mundo” (Jn. 12,31)

Jesus diz: “Satanás é o teu senhor”! Grave acusação dirigida à humanidade pecadora!

Mas quem é este Satanás de quem, em nossos tempos já ninguém ou poucos falam, como se ele tivesse deixado de existir ou fosse nada mais nada menos do que um mito só bom para encher páginas de histórias macabras que muitos dos nossos filhos lêem com grande interesse?

O Papa Paulo VI disse, numa audiência geral pronunciada a 15 de Novembro de 1972:

“Encontramos o pecado, perversão da liberdade humana e causa profunda da morte, porque é um afastamento de Deus, fonte da vida (cf. Rm 5,12) e, também, a ocasião e o efeito de uma intervenção, em nós e no nosso mundo, de um agente obscuro e inimigo, o Demónio”.

E, como se um auditor tivesse contestado esta realidade, ou qualquer outro sorrido desdenhosamente, o mesmo Papa continua:

“O mal já não é apenas uma deficiência, mas uma eficiência, um ser vivo, espiritual, pervertido e perversor. Trata-se de uma realidade terrível, misteriosa e medonha. Sai do âmbito dos ensinamentos bíblicos e eclesiásticos quem se recusa a reconhecer a existência desta realidade; ou melhor, quem faz dela um princípio em si mesmo, como se não tivesse, como todas as criaturas, origem em Deus, ou a explica como uma pseudo-realidade, como uma personificação conceitual e fantástica das causas desconhecidas das nossas desgraças”.

Categoricamente Paulo VI afirma:

“Sabemos, portanto, que este ser mesquinho, perturbador, existe realmente e que ainda atua com astúcia traiçoeira; é o inimigo oculto que semeia erros e desgraças na história humana”.

Mais adiante, no mesmo documento, ele reitera:

“Ele é o pérfido e astuto encantador, que sabe insinuar-se em nós através dos sentidos, da fantasia, da concupiscência, da lógica utópica, ou de desordenados contactos sociais na realização de nossa obra, para introduzir neles desvios, tão nocivos quanto, na aparência, conformes às nossas estruturas físicas ou psíquicas, ou às nossas profundas aspirações instintivas”.

O Soberano Pontífice termina a sua intervenção com um conselho “prático”, cuja eficácia não deixa dúvidas ao cristão consciente do perigo que representa para cada um de nós o “príncipe deste mundo”:

“Conscientes, portanto, das presentes adversidades em que hoje se encontram as almas, a Igreja e o mundo, procuraremos dar sentido e eficácia à usual invocação da nossa oração principal: ‘Pai nosso... livrai-nos do mal’.”

*****

Na Alemanha começam os preparativos que conduzirão à invasão da Polónia. A França mobiliza tropas, preparando-as para uma eventual declaração de guerra à Alemanha, se esta fizer qualquer acto bélico contra a Polónia... Estamos nas vésperas do começo das hostilidades que causarão tantos danos e tantas mortes.

Isso mesmo pressente e sente a Alexandrina, que o explica ao seu Director espiritual em carta datada de 25 de Agosto de 1939:

Senti uma tremenda aflição na alma; a desolação, a revolta, a morte de todas as almas: tudo eram ruínas em minha alma. Que noite triste! Rolei na cama e Nosso Senhor disse-me, mas não em tom de ralhar, mas com imensa dor e amargura:

— Salva-Me, salva-Me o mundo. São os momentos de maior gravidade e deles vêm os flagelos do mundo e das almas: é para mais e melhor se povoar o inferno. Tem dó de Mim: une-te àqueles que neste momento sofrem. Une-te a Mim, deixa-Me oferecer-te comigo ao eterno Pai.

Com as Suas Divinas Mãos cruzadas no Seu Santíssimo Peito, com que dor eu sentia que Ele as apertava ao Seu Divino Coração. Condoí-me tanto da dor de Nosso Senhor que de dor me parecia morrer”.

Na carta de 28 de Agosto ela explica ainda como ela sentia o “estado” de Jesus: Ele “tremia de dores e não de frio”... Estava próximo o castigo da humanidade.

Sentia que Ele tremia em mim ao mesmo tempo que me dizia:

— Que dor, que dor, para o meu Divino Coração ao ver o mundo incendiar-se nas chamas ardentes das paixões e do vício, ao ver os indivíduos, a sociedade, em todos os povos, uma guerra feroz! Parece que desencadeou para a terra todo o inferno. Ai mundo, que não te levantas, ai mundo, que não te convertes! E está tão próximo o teu castigo! É por isto que Eu tremo de dores e não de frio”.

E aquilo que devia acontecer aconteceu...

No dia 1 de Setembro o ditador alemão, sem qualquer declaração de guerra, invadiu a Polónia e ao mesmo tempo acendeu o rastilho que iria pôr fogo à pólvora que por sua vez incendiaria a Europa e o mundo.

Antes que a terrível notícia chegue aos ouvidos da Alexandrina, Jesus veio consolá-la, confortá-la, como se nada de novo se passasse:

“— Ditosa hora, minha filha, ditosa hora meu encanto, em que vais dar a esmola. Tem coragem, meu amor. Olha que cada vez hás-de sofrer mais, sentir mais medos e mais horror à crucifixão. Todo este sofrimento que já sentiste faz parte da paixão, mas faz a tua esmola mais meritória, de mais valor para Eu distribuir. Eu sei que não me negas nada.

— Não nego, meu Jesus, não posso negar-Vos: tomai tudo o que Vos servir e distribuí.”

Mais adiante lemos ainda:

“— Coragem, meu amor, confia que sou o teu Jesus, não duvides. Estou tão deliciado no teu coração. Servi-me da tua generosidade para salvar o mundo. Faço-te sofrer por amor. Esse abismo que tu vês cheio de maldade, e de tão horrendos crimes, tudo isto vi também à minha frente [5]. Agradece ao teu Deus, ao teu esposo assemelhar-te assim tanto a Ele.

Durante a flagelação, dizia-me Nosso Senhor:

— Coragem, meu amor, coragem te brada Jesus no intimo do teu coração, e toda a corte celeste lá do alto to brada também. Coragem, coragem, é para acudir ao mundo!”

Mobilização geral...

Mas, nesse mesmo dia a Alexandrina foi informada do começo da guerra.

Na missiva desse dia 1º de Setembro escrevendo ao Padre Mariano Pinho, já no fim da carta, ela diz:

Meu Paizinho, era já noite e surpreendeu-me a triste notícia que tinha rebentado a guerra. Será verdade? Durante uns momentos fiquei tão triste e aflita, parece que o meu coração saltava cá fora. Mas depois principiei a acalmar, confiando cegamente e sem limites no meu Jesus e na querida Mãezinha que, ainda que verdade seja, ainda podem entrar em acordo e vir a paz. Ai minha Mãezinha querida, Ela é a Rainha da Paz, é o refúgio dos pobrezinhos: há-de ser Ela que sem cessar vai obter o perdão e a paz para a pobre humanidade”.

No dia seguinte escreve de novo ao mesmo sacerdote e explica-lhe a dor de Jesus, uma dor que o leva às lágrimas.

E Nosso Senhor com grande dor dizia-me assim:

— Os pecadores não deixam cicatrizar a ferida do meu Divino Coração; escorre sangue noite e dia sem cessar um momento. Pobres pecadores, que não cessam de Me ofender! Pobre humanidade que não se quer salvar! Tem dó de Mim, cura-Me com o bálsamo das tuas virtudes.

Jesus chorava e fazia-me sentir a dor e a amargura que Ele sentia. O meu coração parece que se partia e morria de dor. Eu dizia:

— Não choreis, Jesus.

Disse-me Ele:

— Deixa-Me chorar, são lágrimas de dor e de amor: purificam o mundo”

Agora, para que em breve a guerra termine, é necessário orar, fazer penitência. Desta vez escutarão os homens a voz de Deus?

A nova situação do mundo é motivo de novos sofrimentos para Alexandrina, de novas apreensões, de novos e medos. Ela pensa mesmo que tudo o que acontece é por culpa dela — ela humanidade —, como está implícito na carta de 3 de Setembro:

“Sofro porque Jesus sofre: sinto a amargura e a dor do seu Divino Coração. O meu coração não descansa, tem ânsias, mais ânsias, quer a paz quer o amor e a união de todos os filhos de Deus. Ando a combater sem cessar, quero ser guerreira contra o pecado porque é ofensa tão grande ao meu Jesus. Meu Deus, meu Deus que aflição a da minha alma, parece que ando de rastos pela terra. Levanto-me da terra, ergo os olhos ao Céu a implorar o perdão para a terra culpada, mas de novo torno a rastejar desanimada, parece que nada consigo. O demónio bate palmas e dança à minha volta: diz-me que todo o exército é dele. Ai meu Paizinho, que confusão a minha; parece que está tudo perdido e que fui eu a causadora; que toda a culpa é minha. Eu quero consolar a Jesus e não sei como nem com quê. Queria correr o mundo todo de joelhos em sinal de penitência e falar a todos os corações para se amarem e amarem a Jesus. Que não o ofendessem. A minha dor é ver que Ele é ofendido.”

Jesus pede e insiste: orai e fazei penitência, arrependei-vos dos vossos pecados...

A 6 de Setembro Alexandrina volta a escrever ao seu Pai espiritual e envia-lhe os pedidos de Jesus: Ele deve pregar para que se ore e se faça penitência, para que os homens arrepiem caminho...

Como no tempo de Noé...

Jesus lembra a história de Noé e promete um mundo regenerado, se fizerem o que Ele pede...

“— Sou o teu Jesus, venho desabafar con-tigo. Olha, escreve já ao teu Paizinho, quero que ele pregue, mas que diga que sabe a certeza que foi Jesus quem o disse como se ele o tivesse ouvido dos meus divinos Lábios. Se não se fizer penitência, se não houver renovação no mundo, corações contritos e arrependidos, corações puros a principiar pelos meus discípulos de quem tudo esperava e são os que mais mal Me servem, que vai ser tão grande o castigo, guerra, peste e fome que hão-de chegar os cristãos a comerem-se uns aos outros. Não pouparei aldeias, vilas nem cidades: todo o mundo será vítima do meu castigo. Tremenda vingança, que horas de angústia o esperam! Será quase como no tempo de Noé, e então principiará um mundo novo. Mas, se fizer penitência e todo o mundo se renovar e se cumprir os meus Divinos desejos, virá a paz”.

Os anos foram passando e a guerra continuava, cada vez mais furiosa, cada vez mais mortífera. Vozes se levantavam para dizer que Portugal deveria respeitar as suas alianças com a Inglaterra e com a França e que por isso mesmo deveria entrar em guerra, contra a Alemanha.

Parece-nos aqui oportuno lembrar o que escreveu o P. Humberto Maria Pasquale, sdb, seu segundo Guia espiritual:

“A missão da vítima de Balasar, ligada à imolação a que o Artista Divino a havia destinado, está claramente expressa nas palavras que o Senhor lhe dizia na Paixão de 20-6-1941: «Une a tua dor à minha dor, o teu amor ao meu amor: só assim te será suavizado o caminho do Calvário; só assim os pecadores serão salvos, só assim vem a paz ao mundo e vai vir depressa. Depois, todo o mundo rejubilará ao ser consagrado ao Coração da tua e minha Bendita Mãe...» [6]

Mais adiante, no mesmo capítulo o douto biógrafo acrescenta ainda:

“Desde este momento, enquanto sofrer a Paixão de Jesus, a Alexandrina comparecerá, como Ele, diante de Deus, como representante do mundo, e a Justiça exigirá dela satisfação por todas as maldades que se cometem. Ela será um mundo que é rejeitado por Deus e será um Jesus que expia e aplaca a sua justa ira.

Admirável sabedoria e misericórdia divina que, com o dogma do Corpo Místico, tornou possível esta «mística substituição»!” [7]

Quanto ao seu primeiro Director espiritual, o Padre Mariano Pinho, na segunda biografia que escreveu, afirma, para que os leitores tenham uma melhor compreensão de tudo quanto se passa na Alexandrina:

“Nem é mister chamar a atenção do leitor esclarecido para estes efeitos de profundíssima humildade que na alma da Alexandrina deixavam as graças místicas de que foi objecto, efeitos que são ao mesmo tempo prova irrefutável da autenticidade dessas mesmas graças” [8].

Mais adiante o mesmo biógrafo explica ainda, referindo-se à vida e aos carismas da Alexandrina:

“Participar na morte de Cristo não é só receber as graças que Ele nos mereceu com a sua morte, mas experimentá-la, ser vítima, estar morto com Cristo. É experimentar os seus estigmas e a sua morte em nós mesmos, estendendo até nós, membros seus, os seus sofrimentos:

«Completo na minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo pelo seu corpo que é a Igreja», ensinava o mesmo São Paulo.

Evidentemente nada falta à Paixão de Cristo quanto ao mérito, mas quanto à aplicação: para esta quer que colaboremos, com os nossos trabalhos, sofrimentos, fadigas, orações, vida e morte, transformando-os assim em instrumentos destes méritos redentores de nós mesmos e dos pecadores.

A vida da Alexandrina é uma realização concreta e eloquente desta doutrina; desta sua união com Cristo sofrendo, encontramos passagens inúmeras nas suas cartas e outros escritos e já várias foram aparecendo nos capítulos precedentes. Mas o ponto é importante, por isso apresentemos mais algumas a comprovarem expressamente a doutrina que agora nos ocupa” [9].


[1] S. João Crisóstomo (cerca 345-407), bispo de Antioquia depois de Constantinopla, Pai e Doutor da Igreja; 7ª Homilia sobre a conversão.
[2] Carta ao Padre Pinho: 25-07-1939.
[3] Padre Humberto Maria Pasquale, sdb: Sob o céu de Balasar, cap. 5.
[4] Expressão tipicamente “piscatória”, que significa exalar. Ela é utilizada nos Açores, sobretudo nas ocasiões em que os pescadores põem o peixe a secar. Desde que o peixe começa a secar, logo começa a “escalar” mau cheiro por estar “escalado”. A minha mãe comprava muitas vezes cavalas frescas e depois de as limpar ponha-as a “escalar” e elas cheiravam mal a partir dum certo momento... Isto depois desaparecerá!...
[5] Necessário é notar aqui, como pensa o Professor José Ferreira, que “a guerra é mais o motivo deste «teatro», mas a mensagem vai muito mais além”; ela não diz unicamente respeito ao tempo presente — o tempo da Alexandrina — mas provavelmente aos tempos futuros, ao nosso, talvez. Efectivamente, segundo a teologia mística, a visão de que beneficiam os místicos apresenta-se a eles como um “quadro”, como uma “tela” onde as “imagens” representam um presente, uma actualidade; não aquela que nós chamamos “presente” ou “actual”, mas o “actual” de Deus. Ora, para Deus não existe passado nem futuro, porque tudo é “presente”, daí a dificuldade que têm os místicos de explicar com certeza “matemática” aquilo que viram, salvo graça especial. Veja-se o Compêndio de Ascética e Mística de Adolfo Tanquerey ou as obras de S. João da Cruz ou de Santa Teresa de Ávila.
[6] P. Humberto Maria Pasquale, sdb: Alexandrina; cap. 6 – 6ª Edição.
[7] P. Humberto Maria Pasquale, sdb: Alexandrina; cap. 6 – 6ª Edição.
[8] P. Mariano Pinho, sj: No Calvário de Balasar, cap. 15, primeira edição portuguesa, Braga 2005.
[9] P. Mariano Pinho, sj: No Calvário de Balasar, cap. 22, primeira edição portuguesa, Braga 2005.

   

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