A Justiça e o amor de Deus
nas “Cartas ao Padre Pinho”
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Na missiva de 7 de
Julho de 1939, as palavras de Jesus não são ralhos, mas palavras ternas,
palavras pelas quais Jesus
desvela
uma vez mais a ternura do seu Coração e o seu amor para com a vítima de Balasar
que de novo se oferece generosamente:
“— Ó meu Jesus, eu aceito tudo, mas quero-Vos dar toda a
honra possível, amor, glória e reparação. Fazei-me sofrer tudo; crucificai-me,
meu Jesus: fazei que eu Vos dê tudo quanto Vos posso dar.
Chegou a hora: Nosso Senhor bateu à porta do meu coração e
disse-me:
— Vem cá, vem cá minha crucificada, entrega-te nos meus
Divinos braços, abandona-te a mim. Deixa-me fazer de ti tudo o que Eu quiser.
Não temas; confia; é esta esmola que te peço.
Mas os homens só se
lembram de Deus quando as adversidades caem sobre eles. Enquanto estas não
chegam, fazem como os habitantes de Sodoma e Gomorra: comem, bebem e dançam, e
pior ainda: pecam sem remorsos, ofendendo ainda mais gravemente Aquele que
sempre se mostra misericordioso. Disso mesmo se queixa Jesus, como podemos ler
na carta escrita em 9 de Julho de 1939:
“Nosso Senhor disse-me assim:
— Maldita! na aflição acreditas em Mim, chamas-Me, invocas o
meu Divino Auxílio: e quando Eu te chamo para deixares o caminho da perdição e
seguires aquele que te conduz a Mim, não Me ouves, estás morta, morta pelo
pecado. Desgraçada, és digna de morte eterna, da sorte dos condenados!”
A linguagem popular
sintetiza esta triste situação numa pequena frase que todos conhecemos: “Só nos
lembramos de Santa Bárbara quando troveja!”
Assim ia o mundo
naqueles anos: Jesus avisa, Jesus pede, Jesus suplica, mas a humanidade dança,
canta, diverte-se, peca impunemente — julga ela — sem nunca se lembrar que “para
os grandes males só os grande remédios” servem e, neste caso, o melhor remédio
era o que o Senhor pedia insistentemente: a oração e a penitência.
A humilde vítima de
Balasar continuava a ouvir a voz terrível do Senhor... Mas ela não ouvia só
aquela voz cheia de cólera — de justa cólera! — Alexandrina “via” também aquilo
que ouvia, como podemos deduzir das frases que se podem ler em carta
escrita de 13 de Julho de 1939:
“A tempestade tudo derrubava, o peso esmagava-me até que
ficava despedaçada e me enterrava pelo chão. Passei hora e meia neste estado e
depois disse-me muito fortemente Nosso Senhor:
— A fúria da tempestade da alma é muito mais tremenda do que
a fúria dos ventos, a tempestade dos tempos e dos astros: Maldita, já não a
temes, não a ouves! Vê a gravidade dos crimes que te matou. Desgraçada: o
inferno todo te espera para te atormentar em todos os teus sentidos!
A aflição fez-me rolar; e Nosso Senhor dizia-me ao mesmo
tempo que me esmagava com o peso da Sua Justiça Divina:
— Recebe maldita, a minha vingança.
Parecia-me que com uma foice era toda retalhada”.
Dessa mesma carta,
destacam-se ainda estes exemplos claros da cólera divina:
“Hoje, no fim da Sagrada Comunhão, o caso foi mais sério.
Durante um pedaço sentia a morte muito no íntimo, e uma tremenda revolta. E
Nosso Senhor, muito forte, dizia-me:
— Maldita! calcas aos pés o Meu Divino Sangue, a Minha Carne
Divina que Eu preparei para teu alimento, para a vida da tua alma: é calcado aos
pés, é profanado: e, ainda não satisfeita, escarras no rosto do mais belo dos
homens, no meu rosto divino. És tu, és tu mesma! Basta: não te posso sofrer
mais, maldita; serás maldita eternamente! Passará um século, passará outro, e tu
sempre no inferno: maldita eternamente!
Quando Nosso Senhor me dizia que Lhe escarravam no Seu Divino
Rosto, eu sentia cair no meu coração uma chuva de escarros; e sentia o meu corpo
todo cortado em pedaços para ser lançado fora e calcado aos pés”.
A leitura destas
frases causa calafrios — mesmo quando sabemos que não é a Alexandrina que está
em causa, e que deste
estado
do mundo ela não tem culpa —, porque, se olharmos bem à nossa volta, não podemos
esconder a nós mesmos que os tempos actuais são ainda mais desastrosos do que
aqueles em que viveu a “Doentinha de Balasar”.
Em quase todos os
países do mundo desapareceu o sentido do pecado; desapareceu o temor de Deus,
subverteu-se a moral... Vivemos num verdadeiro caos, mesmo se muitos dizem que
tudo vai bem, que passamos bem sem a religião e ainda melhor sem Deus, porque
Deus não existe, senão não deixava morrer tantos inocentes nem desencadearem-se
tantas guerras e tantos atentados...
Mas, quem somos nós
para julgar a Deus? Porventura é Ele que desencadeia as guerras? Porventura é
Ele que pratica atentados? Será ainda Deus que mata as crianças nos ventres de
suas mães? Teria sido Deus que estragou o ozono e modificou o sistema natural
que Ele mesmo criou? Não era inocente também o Filho de Deus que os homens
crucificaram?
Nós somos os únicos
culpados disso, e não Deus: Deus só quer o nosso bem, porque Ele nos ama, porque
Ele é Amor e Justiça ao mesmo tempo.
Quem somos nós que
julgamos Deus, dizendo que não é possível que Ele nos castigue justamente,
porque é Amor?...
Nós, que nada somos,
não hesitamos em castigar os nossos filhos quando nos não obedecem ou cometem
qualquer falta... Mas Deus não pode castigar... Deus é só Amor... E, da sua
Justiça, que conceito fazemos?
Mas, para remediar a
esta espécie de pessimismo, convém lembrar aqui aquelas palavras de Jesus que S.
Mateus transcreveu no seu Evangelho:
“Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em
herança o Reino que vos está preparado desde a criação do mundo” (Mt. 25, 34).
Assim como aquelas de
S. João Crisóstomo, Pai e Doutor da Igreja universal:
“É a misericórdia de Deus que, comovida com o nosso destino,
nos transforma a todos; é ela que nos converte”
.
Na carta escrita em 14
de Julho de 1939, e sempre endereçada ao Padre Mariano Pinho, Alexandrina, com
um certo júbilo anuncia ao bom sacerdote as ternas palavras de Jesus:
“Nosso Senhor (...) chamou-me:
— Minha filha, minha filha, dá-me a esmolinha. Confias que Me
dá mais consolação, que é de mais merecimento a tua esmola do que todas as
esmolas do mundo?
— Custa-me a acreditar, meu Jesus, mas confio em Vós.
— Então, não me negues. Vá, deixas-me entrar e tomar tudo o
que é de valor? Em ti não há nada que não tenha valor.
— Ó meu Jesus, sou a Vossa vítima, tudo é para Vós.
— Confia: Eu estou a teu lado e o teu Paizinho acompanha-me
para te dar-mos coragem. Não temas.
Depois disto seguiu-se no Horto um tremendo abandono. Eu
invocava muito repetidas vezes o nome do meu Jesus: buscava n’Ele força para o
meu sofrer. E Nosso Senhor disse-me assim:
— A criancinha não pode viver sem cuidado, o alimento e as
carícias de sua mãe. Eu sou mais que todas as mães da terra: tenho todo o
cuidado por ti, venho alimentar-te, venho acariciar-te.
Ao ouvir isto fiquei mais confortada e não tive outra
resposta para o meu Jesus senão muito obrigada.”
Que ternura nestas
frases de Jesus! Que carinho demonstra Ele para com a sua “filhinha”!
Este bálsamo deu
conforto à Alexandrina, surpreendeu-a de tal maneira que ela mais não soube
dizer “senão muito obrigada”!
Como se tornam aqui
realidade as palavras de São Paulo aos Romanos:
“Quem poderá separar-nos do amor de
Cristo? A tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo, a
espada?” (Rm. 8, 35)
Ouçamos ainda Jesus
queixar-se à Alexandrina, como podemos ler em carta escrita a 19 de Julho de
1939:
“E eu não saio da morte, umas vezes mais outras vezes menos;
é assim que eu vivo. Como eu me vejo aflita no fim de receber o meu Jesus. Eu,
hoje rolei pela cama; e Ele dizia assim:
— Desgraçada, só o pecado é que causa assim a morte! Que será
de ti se não tens quem se compadeça? Eu não te posso suportar mais! Olha as tuas
misérias, os teus crimes…
O peso esmagava-me e parecia-me que um punhal me atravessava
o corpo e o coração; e Nosso Senhor dizia-me:
— Já antes de morreres era assim que tu me fazias:
desgraçada, maldita!”
No dia seguinte ela
escreve ainda ao seu Paizinho espiritual:
“O
peso esmagador esmagava-me o coração. Sentia Nosso Senhor a repelir-me e
dizia-me claramente:
— Aparta-te de Mim! Maldita tu és, não te posso ver,
causas-me nojo! Não és digna de te sentar à minha mesa: antes quero ver sentados
a ela os animaizinhos e Eu mesmo ser quem lhes servia para alimento a minha
divina carne, o meu divino sangue. Tu não és digna do manjar mais delicioso:
queres alimentar-te dele para o vomitares fora, calcares aos pés e lançares para
as estrumeiras. Desprezas-Me, preferes a Satanás: também, já fui preferido a
Barrabás, para Eu ser crucificado”.
A humanidade prefere
Satanás a Jesus...
Quanta tristeza da
parte de Jesus, nesta afirmação ainda tão actual!...
Mas a Alexandrina
continua a sofrer esta “encarnação” da humanidade e a ouvir as queixas e as
ameaças do seu e nosso Senhor: era ela a vítima expiadora que Jesus escolhera
desde toda a eternidade. O que ela vive é aterrador!...
Depois de tão duras
palavras, Jesus vem de novo confortá-la e dirigir-lhe palavras de amor, cheios
de ternura e carinho.
Na carta de 21 de
julho ela escreve:
“Nosso Senhor compadecido de mim bateu ao meu coração e
confortou-me assim:
— Minha querida filha, minha crucificada, venho desejoso,
venho faminto da tua esmola; é a minha consolação, é o alimento da humanidade:
sustentas a Justiça Divina. Ela quer cair sobre a terra com a sua força
vingadora. Que dizes a isto, dás-ma?
— Ó meu Jesus em vez de me crucificares às sextas-feiras,
crucificai-me todos os dias ou mais se possível. Bem sabeis que sou fraquinha,
sou sempre aquela que não move nada, uma pequena aresta.”
Não satisfeita de
assim se humilhar, Alexandrina insiste e queixa-se:
“— Meu Jesus, ai como o meu coração está angustiado.
— Tens razão, não podes sofrer mais, nem eu sofri quanto à
natureza humana. Quanto maior é a tua desolação e a dor do teu coração, mais me
desagravas e me consolas.”
E Jesus insiste
também, para a consolar e lhe inculcar mais coragem:
“— Escuta minha filha, a voz tão doce e tão meiga que te
chama e te pede que aceites tudo por amor. Coragem, um pouquinho mais!”
A carta que escreveu
em 25 de Julho de 1939 é bastante interessante, não só porque nela podemos ler
as admoestações divinas, mas também porque nela a Alexandrina explicar o que
sente, o que vive de maneira quase surrealista:
“Tenho medo de viver: a vida para mim é um horror. Não sei o
que sinto, quero abafar a voz da minha consciência: convida-me a mudar de vida,
mas eu não quero. A minha consciência está morta: toda eu parece que não vivo.
Nosso Senhor ralhou-me tanto no fim de eu O receber! Repelia-me d’Ele e
dizia-me:
— Não te aproximes, não dês mais um passo: retira-te de Mim,
vai lavar-te, vai vestir-te!
Ao ouvir pronunciar estas palavras, já rolava pela cama.
Nosso Senhor caiu sobre mim, calcava-me que me deixava aniquilada, toda esmagada
e dizia-me:
— A gravidade dos crimes é tremenda e horrível; também a
minha Justiça é tremenda e horrível. Paga-me tudo, senão és condenada, vives a
vida dos condenados!
Parecia-me que o meu Jesus enrolava todo o meu corpo até que
ficava todo numa bola que Ele apertava tanto, tanto em Suas Divinas Mãos até que
a deitava ao chão e calcava aos pés até que ficava em nada, tudo desaparecia. As
palavras de Nosso Senhor eram tremendas, mas mais tremendo era o estado da minha
alma: tão morta estava que ficava como que não ouvisse e não temesse o meu
Senhor. Era um rochedo que não havia nada que partisse.”
Representar assim
tanto ao vivo a humanidade pervertida e gravemente pecadora foi experiência
dolorosíssima para a “Doentinha de Balasar”. Por vezes ela sente-se de tal
maneira “incorporada” naquela humanidade que as suas palavras são mesmo as que a
humanidade inteira proferia contra Deus.
Alexandrina, uma vez
mais, vai oferecer-se, vai entregar-se ao bel-prazer de Deus, aceitando de
antemão tudo aquilo que Ele desejar enviar-lhe:
“— Ó meu Jesus que me podeis Vos pedir que eu não Vos dê. Não
tenho coragem, nem quero ter jamais de Vos negar nada. Vós sois digno de todo o
amor e de toda a consolação possível. E que maior prova de amor Vos posso dar do
que sofrer tudo por Vós? E que maior consolação podeis receber de mim do que
dando-Vos as almas? Batei, Jesus, esmagai-me toda: eu gritarei sempre, Jesus, eu
amo-Vos, debaixo do peso de toda a dor e angústia, sou Vossa Vítima, vítima que
convosco não teme ser imolada a cada momento. Não cesseis de me esmagar, de me
dar sofrimentos. Eu com a Vossa graça, não cessarei de Vos amar, de Vos dar
almas, dando por elas todo o meu sangue se assim quiserdes, meu Jesus. quero
sofrer muito, muito pelos sacerdotes, mas muito em particular por aqueles a quem
o meu Paizinho está a falar. Fazei que eles se incendeiem todos nas chamas do
Vosso amor. Ai meu Jesus, como se me afigura que sou tão impostora. Vós sabeis
tudo confio, confio meu Jesus.”
Em carta enviada ao
Padre Pinho em 27 de Julho de 1939, explica:
“Não sei como Nosso Senhor pode suportar-me e não me tem já
no inferno. Ele ralhar, ralhou-me. Eu também tornei a tombar na minha cama com a
aflição que me causava, se bem que me parecia que O não temia. Mas Ele dizia-me:
— Não Me temes, não sentes os remorsos, porque o pecado
calejou a tua consciência. Estás morta, matou-te o pecado. Maldita, tentas
persuadir-te que não existe eternidade ou feliz ou desgraçada! À tua vida
convém-te que ela não exista… Desgraçada, olha como vives! Paga-me, dá-Me
contas!
Nosso Senhor esmagava-me com os seus Divinos Pés. Mas depois,
com uma voz mais doce e suave, dizia-me.
— Converte-te, ouve a voz do teu Senhor, é o último
chamamento”.
O dia 28 de Julho é
dia não de ralhos mas de palavras ternas, em que Jesus demonstra uma vez mais o
seu amor à vítima que tão generosamente se oferece:
“Nosso Senhor chamou-me:
— Minha filha, minha querida filha, loucura dos meus olhos,
dá-me a esmola. Horas aflitas apertam o mundo, horas de tremendos e horríveis
castigos. O meu Divino Coração sangra, está angustiado de dor e o bálsamo de tua
crucifixão pode curar-lhe as feridas. Queres curar-me?
— Ó meu Jesus, eu quero tudo que seja para Vós e para as
almas. Crucificai-me.
— Tem coragem: as forças não te hão-de faltar.
No Horto disse-me assim:
— Minha louquinha, tem coragem, não desanimes e não duvides.
Sou Eu o Jesus, o artista divino que trabalha em ti: faço maravilhas que nunca
fiz no mundo, nem jamais farei. Apresso-me a realizar em ti a minha obra.
Não tive outras palavras para o meu Jesus senão um “muito
obrigada”. Mais tarde um pouquinho, quando o desânimo era muito, Nosso Senhor
disse-me:
— Coragem, minha filha, minha alegria, minha loucura!
Primeiro que tu sofri o abandono e todos os sofrimentos: abri-te o caminho. É
por meu amor; não achas que mereço tudo?
— Ó meu Jesus, é por Vós que eu sofro de boa vontade. Quero
morrer por Vosso amor; milhões e milhões de vezes e por Vós derramar todo o meu
sangue.”
No dia 30 do mesmo mês
de Julho ela explica ainda melhor a sua situação de vítima e a sua
“incorporação” como “humanidade pecadora”. Ouçamo-la atentamente, com devoção e
admiração:
“A minha miséria é extrema, o meu nada assustador. A minha
alma está morta e não temo o meu Senhor. Ele não me tem ralhado nem acariciado.
Mas, ai, o abandono e desolação em que estou! Queria palavras para desabafar e
mostrar o que a minha alma sente; mas não sou capaz, não sei dizer nada. Tento
aproximar-me do meu Jesus, correr para Ele, mas Ele parece que foge de mim:
quanto mais corro, mais longe me vejo d’Ele. O meu coração sofre tanto com os
males do mundo, com as ofensas que se fazem ao meu Jesus! Sinto que sou, não sei
como dizer, não sei se isto terá explicação: sou quase como um pára-raios: eles
não vinham para ser para mim, mas não sei o que é que os atrai. Penso ser as
ofensas que se fazem a Nosso Senhor; elas iam para Ele, mas eu apanho tudo para
mim. Disse mal? Eu não penso, é o que sinto. Eu então ao sentir-me assim, disse:
Ó meu Jesus, eu quero que o meu coração seja o centro onde
venham cair todos os espinhos, todas as setas que vão ferir o Vosso, ainda que
por isso tenha que abrir-se o meu peito, arrancá-lo fora e tê-lo à disposição de
todos para o ferirem como quiserem: o que eu quero é ter a certeza que não
sofreis Vós nada.
Ai meu Paizinho, ai que desolação! Eu não sei dizer o que
sinto: a dor que trespassa o meu coração é aguda, é dolorosíssima. Vivo na
dúvida e desconfiada de mim”.
A humanidade é infiel
e ingrata, por isso mesmo merecedora de condenação eterna.
Eis o que diz Jesus à
boa Alexandrina no dia 1 de Agosto do mesmo ano:
Hoje, no fim de O receber, quase não podia pronunciar
palavra; sentia-me morta e abandonada. A aflição fez-me rolar e Nosso Senhor
dizia-me muito irado:
— Como és infiel ao teu Senhor, como és ingrata para o teu
Criador, para o teu Deus! És digna de maldição, de morte eterna. Paga-Me,
paga-Me!
O peso esmagava-me. Principiei a ouvir e sentir o furor da
tempestade, o assobiar dos ventos: cada vez me sentia mais aterrada”.
Que peso era aquele
que a esmagava?
Para responder a esta
pergunta, nada melhor do que citar um caso passado na vida da vítima do Calvário
de Balasar:
“Certo dia — escreve o Padre
Humberto Pasquale — estava presente um célebre médico, o Dr. Elísio de Moura:
um homem de grande reputação em matéria de psiquiatria. Tirou o casaco, e com os
seus modos bruscos e enérgicos aferrou a Alexandrina por baixo dos braços.
Suava. Mas não a moveu nem um centímetro; pelo contrário, a um jeito improviso
da agonizante no Horto, o psiquiatra caiu de costas.
Vários homens, amigos da família, prepararam uma balança,
para verificar o peso da Cruz de Jesus. Mas todos os seus esforços para
levantarem a Alexandrina, não lhes valeram de nada.
O seu Director lembrou-se em certa ocasião de lhe perguntar,
por obediência, durante a subida ao Calvário, qual era o peso da Cruz.
E a vidente obedeceu. Simples e solene, respondeu no êxtase:
― A minha cruz tem um peso mundial !
Resposta profundamente teológica e desconcertante: sobre a
Cruz de Jesus pesavam, efectivamente, todos os pecados da humanidade. O mesmo
«peso mundial» sentia-o durante a agonia no Horto. Parecia-lhe que era
despedaçada e triturada entre o cúmulo dos pecados e o peso da justiça divina,
como se estivesse entre os cilindros de uma prensa ou entre os mordentes de um
torno”.
No mesmo dia, e na
mesma carta Alexandrina conta de que maneira o Senhor se mostrou cheio de
ternura, para a encorajar, falando-lhe não só do seu Paizinho espiritual, mas
também de Deolinda, a querida irmã et de Sãozinha, a professora tão assídua a
prestar serviço à Alexandrina e à família desta:
“O meu Jesus compadeceu-se de mim, principiou a dizer-me mais
brandamente:
— O teu doloroso calvário vai acalmar as tempestades e
reparar os estragos que ela causou. Não é contigo a mínima coisinha do meu
ralhar. Estou contentíssimo contigo, minha louquinha: não tenho porque te
ralhe. Tu só me dás consolação; és digna de louvor, digna de elogios e dos meus
aplausos. A tua alma, o teu coração são as minhas delícias, são o paraíso na
terra.
Apesar de me sentir envergonhada, já o meu Paizinho pode
calcular a paz que sentia: momentos sem dúvidas e cheios de luz. Sentia-me então
tão grande! Era o oceano, sentia ser o paraíso que Nosso Senhor me dizia. Não
sentia quase nenhuma consolação mas conhecia bem que eram coisas de Nosso
Senhor. Ele dizia-me:
— Tu és a minha vítima imolada, sacrificada. tenho-te sempre
na prensa para te espremer. O pequeno alívio que às vezes sentes é quando
levanto o peso para te remover e depois de novo te esmagar. Confia, confia que é
Jesus quem te diz tudo, não duvides. Olha o teu Paizinho faz em tudo a minha
divina vontade; dá-me toda a consolação, é um primor que eu tenho na minha
companhia. Diz-lhe que o amo muito: que trabalhe sem cessar e para incendiar o
meu amor nas almas, elas estão tão frias! Diz à tua irmã e à tua Sãozinha que
delas espero muito e que lhes dou todas as graças precisas para que elas sejam o
que Eu desejo. É a recompensa que lhes dou do que elas fazem por ti. Beija-as,
abraça-as, acaricia-as. É a prova do meu amor.”
Os pecados do mundo
não só têm grande peso, mas também cheiram mal, causam nojo ao Senhor. É isto
que ressalta de uma outra carta da Alexandrina ao seu Director espiritual,
datada de 4 de Agosto desse mesmo ano de 1939:
“Nosso Senhor, no fim de eu O receber, fez-me sentir tanto,
tanto o esquecimento d’Ele, e no fim a morte! Mais tarde um pouquinho, dizia-me:
— Cheiro nauseabundo: aparta-te de Mim! Sabes o que te faz
escalar
esse cheiro? A imundície e a maldade dos teus crimes.
Eu não disse palavra ao meu Jesus”.
Depois destas palavras
rudes, na mesma carta podemos ler, como um contrapeso destas, as seguintes, que
Alexandrina introduz com um certo humor:
“Ao meio-dia, ou talvez ainda antes, sentia que Nosso Senhor
andava a espreitar; queria falar-me. Chegou a hora: bateu palminhas ao meu
coração, e chamou-me:
— Minha filhinha, minha filhinha, vem cá: tenho tanta fome!
Anda matar-ma, dá-me a esmola. Preciso tanto dela para me desagravar, para
distribuir as almas! Olha, tem mão nos espinhos que vêm magoar, que vêm ferir o
meu Divino Coração.
— Ó meu Jesus que eu seja ferida e esmagada, não me importa,
o que me importa é não deixar ir nada para Vós que Vos possa magoar e
entristecer, que possa ferir o Vosso Divino Coração de Pai Bondoso.
Crucificai-me sem demora.
— Que árdua, que bela, que sublime é a tua missão, meu
encanto. Confia que tens sempre as tuas forças.
(...)
Depressa caí em desânimo de desfalecida. Invoquei o nome de
Jesus e não foi em vão; Ele falou-me logo.
— Tem sempre nos teus lábios e no teu pensamento o meu Divino
Nome. Eu sou Rei e nunca abandono o Trono do teu coração. Nele me alegro e me
delicio.”
São Bernardo de
Claraval, na sua Terceira homilia sobre o Cântico dos Cânticos escreve:
“Eis o Seu templo, eis o Seu trono... Sim, é no coração que
recebemos a misericórdia, é no coração que habita Cristo, é no coração que Ele
murmura palavras de paz ao seu povo, aos seus santos, a todos aqueles que entram
no seu coração.”
Quando o mesmo
Espírito “sopra”!...
No dia seguinte ela
explica o que lhe vai na alma:
“Mas ainda antes de O receber sentia uma tempestade tão
grande na minha alma! Tentava enrolar e derrubar tudo. Recebi a Jesus; a fúria
da tempestade redobrou: abandonei-me toda a Ele, entreguei-me nos seus Divinos
Braços. A fúria tremenda tentava arrancar-me deles, mas não o conseguia”.
Alexandrina sofre e
expia, mas ama, ama tanto quanto lhe permite o seu dócil coração. O seu desejo é
agradar a Jesus, amá-Lo com ternura e salvar-Lhe almas. E, mesmo quando as
queixas de Jesus são terríveis, ela não perde nunca a confiança nem a sua fé
sofre qualquer diminuição: “amar, sofrer e reparar” é o seu lema,
“custe o que custar”.
No dia 5 de Agosto ela
dita:
“Hoje, quando recebi o meu Jesus, estava morta, esquecida
d’Ele e numa desolação tremenda. E dizia-Lhe:
Jesus, estais a fingir que me abandonastes, mas eu confio em
Vós. Eu sei que a ternura e amor do vosso Divino Coração não vos deixa separar
de mim.
A aflição continuou; fez-me rolar pela cama, mas com tanta
força que me parecia que os ossos se despedaçavam um bocado para cada lado. Ó
meu Jesus, que dores! E o meu Jesus parecia-me que estava com os pés sobre o meu
coração a esmagar-me fortemente, e dizia-me:
— Paga-Me, paga-Me! Hás-de pagar-Me com duros sofrimentos os
males da tua fraqueza. O que por aí vai! Faz-Me tremer a gravidade, a malícia
com que Me ofendem. Pouco se aproveita. Deito-os numa medida, raso-os no
fim, só os que caem fora Me pertencem”.
No dia 15 de Agosto,
festa da Assunção de Maria, Jesus começa por ralhar, depois chora e fala-lhe
“com mais bondade”:
“Pouco a pouco, senti-me morta e principiou Nosso Senhor a
repelir-me e dizia-me:
— Aparta-te de Mim, não dês mais um passo, não irrites mais a
Justiça Divina nesta tremenda hora em que ela está armada para se vingar de toda
a humanidade!
E Jesus principiou a chorar e, passado um bocadinho, já com
mais bondade, estreitando o meu coração ao d’Ele, dizia-me:
— Hoje o teu coração tão amante do meu está triste e
angustiado e o meu tão amante da humanidade é amargurado; sou crucificado com
tanta maldade e malícia com que Me ofendem”.
A oferta é imediata e
generosa como sempre:
“— Meu Senhor e meu tudo, que eu sofra os mais horríveis
sofrimentos pouco me importa, isso mesmo é o que eu desejo, porque confio em
Vós, que sois a minha força; mas ver o meu Jesus crucificado, ofendido, não, não
posso. O meu coração morre de dor; deixá-lo, quero sofrer tudo por Vós, sois
digno de todo o meu amor.”
Nova acalmia e novas
palavras de reconforto.
Na carta de 18 de
Agosto, podemos ler:
“Nosso Senhor, de vez em quando, vai-me deitando a mão. Antes
da crucifixão ainda Ele não me falava e eu já sentia a acariciar-me e a
estreitar o meu coração ao d’Ele.
Depois disse-me assim:
— Vem filhinha, vem minha esposa para os meus Braços Divinos;
é neles que me vais dar a tua esmola: é de superabundância para mim e para os
pecadores, desagravas-me e salva-los. Sofres tudo?
— Já sabeis que sim, meu Jesus. Que me podereis pedir que eu
Vos não faça? Antes quero morrer que negar-Vos a menor coisinha: dai-me força,
meu Jesus, bem sabeis que eu não posso nada.”
Na mesma carta de 18
de Agosto, Jesus continua a confortá-la e a explicar-lhe o que nela se passa e
porquê:
“Nosso Senhor falou-me uma vez durante o Horto. Disse-me
assim:
— Meu amor, meu amor, tem coragem. A tua crucifixão é o
quadro mais vivo da minha paixão que eu podia mostrar as almas.
Na flagelação vi-me tão aflita que disse para Nosso Senhor:
— Agora vejo que não sou eu: ainda que quisesse parar, não
podia.
A fúria era tremenda. Nosso Senhor disse-me:
— Então agora acreditas? Tem coragem e confiança. Eu é que
permito tudo, faço em ti todos os movimentos, é para me desagravar e salvar as
almas.”
Dois dias depois, a 20
de Agosto, ao seu Paizinho espiritual, a Alexandrina confirma os ralhos divinos
e fala novamente do mau cheiro dos pecados. Jesus não só repele a humanidade,
mas ameaça esta de lhe retirar o que sustém o braço de Deus: a sua divina
misericórdia. Leiamos:
“Hoje já não passei sem ralhos de Nosso Senhor. Estava tão
severo! Assustou-me tanto! Oh, como O temia! Foi quase logo que desceu ao meu
coração que Ele me dizia assim ao tempo que me repelia com a sua mão divina:
— Não te aproximes! O cheiro nauseabundo faz deitar tudo
fora, até as fezes. A malícia da carne, a concupiscência, a maldade de todos os
crimes. Pára! Ou paras de Me ofender com tanta gravidade, com tanta malícia, ou
paro Eu com a minha misericórdia, com o meu Amor”.
Quanto mais a data
fatídica se aproxima, mais Jesus ralha à humanidade insensível aos seus pedidos
e às suas admoestações. Em breve vai desencadear-se o ciclo infernal que cobrirá
a Europa e o mundo de milhões de mortos.
Em carta escrita em 21
de Agosto de 1939, a Alexandrina dá conta ao seu Pai espiritual das palavras e
queixas de Jesus:
“A dor, a agonia do meu coração é contínua. Ao ouvir as
palavras de Nosso Senhor, tive que rolar pela cama. Ele dizia-me:
— Miserável, desgraçada, paga-Me a dívida mais penosa e de
maior valor, é a dívida dos sacerdotes, a dívida mais cara: oferecestes-te por
eles como vítima! Paga-me; eles calcam aos pés à minha lei, à minha divina
Carne, ao meu divino Sangue. Paga-Me miserável, paga-Me, desgraçada!”
No dia seguinte ela
envia ao Padre Pinho nova carta e, como sempre, ela informa o santo sacerdote
das queixas e das ameaças de Jesus: a humanidade corre para o abismo, sem pensar
um só momento em arrepiar caminho; é uma corrida vertiginosa e irremediável.
As palavras de Jesus
são sobretudo de tristeza e de dor:
“O meu Jesus continua a ralhar-me; continuo a rolar na cama.
Meu Deus, meu Deus como eu tenho medo! Hoje, dizia-me assim:
— Cruel insensata! De ti esperava tudo; desprezaste-Me,
calcastes aos pés o alimento da tua alma e de todas as almas. Desafias com os
crimes mais horrendos a justiça divina. Criei-te para Mim; desprezaste-Me,
abandonaste o teu Deus, o teu criador; és digna de morte, és digna do inferno!”
As orações e os
sofrimentos das almas-vítimas — e elas são numerosas durante este triste
período! — parecem não ser suficientes para travar a corrida vertiginosa da
humanidade, uma humanidade que parece cega e obstinada não só no seu pecado, mas
até na sua autodestruição. O coração da humanidade tornara-se então em pedra
dura, resistindo a tudo e até mesmo ao amor e ao amor de Deus em particular.
Jesus queixa-se da
impermeabilidade de todos os corações e reitera a sua exigência: arrepiar
caminho!
Mas a pobre humanidade
está surda: surda, porque não quer ouvir a voz do seu Criador; cega, porque não
quer ver a mão de Deus que prefere abençoar a punir. Triste humanidade surda e
cega, para onde vais?
A carta de 23 de
Agosto é bem explícita:
“Sentia que mãos imundas me apertavam a garganta; e Nosso
Senhor dizia-me:
— Maldita, Satanás é o teu senhor; expulsaste-Me a Mim para
ele te possuir! Ele quer instalar-te em corpo e alma no aposento dele, que é o
inferno: és digna dele. As tuas paixões desregradas ta fizeram merecer.
Converte-te, ouve a voz de teu Deus, deixa-me de novo tomar posse do teu coração
para poderes ser digna da minha mansão celeste para que Eu te possa instalar lá:
arrepia caminho!
O meu coração estava duríssimo, eu não queria ouvir a voz de
Nosso Senhor; Ele, irritado contra mim, deixava cair o peso da sua divina
justiça e dizia que me esmigalhava.
— Olha o caminho que trilhas, olha como Me fazes, os
maus-tratos que Me dás. Converte-te, converte-te, porque te quero para Mim!
Todo o meu corpo ficava alanceado: mas não valeu nada o
chamamento de Nosso Senhor: fiquei morta por completo. Meu Jesus, é tudo por
Vós; aceitai a minha desolação e os meus dolorosos e tristes sofrimentos para
conciliar e abrasar no Vosso amor todos os Vossos discípulos: sou vítima deles,
aceitai-me Jesus”.
E mais adiante:
“Nosso Senhor continua a ter-me abandonada, a fazer-me sentir
que não tenho ninguém por mim: que mesmo Ele e a querida Mãezinha me odeiam. Ele
usa comigo com toda a severidade. Hoje, pouco depois que desceu ao meu coração,
senti tanta aflição, faltava-me a respiração e este pobre coração era como um
pau roliço que rolava e rastejava pelo chão e batia nas ladeiras com toda a
força, até que se esmigalhava. Ao ouvir a voz de Nosso Senhor, rolei eu também
com uma força brutal. Ele dizia-me:
— Miserável, desgraçada, paga-Me, paga-Me esta dívida tão
cara em horas tão graves!
E, esmigalhando-me sobre o chão, um peso enormíssimo parecia
prender-me ao soalho. Nosso Senhor dizia-me:
— Estás presa a este leito tão duro como eles estão presos
com as cadeias do inferno. Converte-te, se não és condenada!”
Jesus diz: “Satanás
é o teu senhor”! Grave acusação dirigida à humanidade pecadora!
Mas quem é este
Satanás de quem, em nossos tempos já ninguém ou poucos falam, como se ele
tivesse deixado de existir ou fosse nada mais nada menos do que um mito só bom
para encher páginas de histórias macabras que muitos dos nossos filhos lêem com
grande interesse?
O Papa Paulo VI disse,
numa audiência geral pronunciada a 15 de Novembro de 1972:
“Encontramos o pecado, perversão da liberdade humana e causa
profunda da morte, porque é um afastamento de Deus, fonte da vida (cf. Rm 5,12)
e, também, a ocasião e o efeito de uma intervenção, em nós e no nosso mundo, de
um agente obscuro e inimigo, o Demónio”.
E, como se um auditor
tivesse contestado esta realidade, ou qualquer outro sorrido desdenhosamente, o
mesmo Papa continua:
“O mal já não é apenas uma deficiência, mas uma eficiência,
um ser vivo, espiritual, pervertido e perversor. Trata-se de uma realidade
terrível, misteriosa e medonha. Sai do âmbito dos ensinamentos bíblicos e
eclesiásticos quem se recusa a reconhecer a existência desta realidade; ou
melhor, quem faz dela um princípio em si mesmo, como se não tivesse, como todas
as criaturas, origem em Deus, ou a explica como uma pseudo-realidade, como uma
personificação conceitual e fantástica das causas desconhecidas das nossas
desgraças”.
Categoricamente Paulo
VI afirma:
“Sabemos, portanto, que este ser mesquinho, perturbador,
existe realmente e que ainda atua com astúcia traiçoeira; é o inimigo oculto que
semeia erros e desgraças na história humana”.
Mais adiante, no mesmo
documento, ele reitera:
“Ele é o pérfido e astuto encantador, que sabe insinuar-se em
nós através dos sentidos, da fantasia, da concupiscência, da lógica utópica, ou
de desordenados contactos sociais na realização de nossa obra, para introduzir
neles desvios, tão nocivos quanto, na aparência, conformes às nossas estruturas
físicas ou psíquicas, ou às nossas profundas aspirações instintivas”.
O Soberano Pontífice
termina a sua intervenção com um conselho “prático”, cuja eficácia não deixa
dúvidas ao cristão consciente do perigo que representa para cada um de nós o
“príncipe deste mundo”:
“Conscientes, portanto, das presentes adversidades em que
hoje se encontram as almas, a Igreja e o mundo, procuraremos dar sentido e
eficácia à usual invocação da nossa oração principal: ‘Pai nosso... livrai-nos
do mal’.”
*****
Na Alemanha começam os
preparativos que conduzirão à invasão da Polónia. A França mobiliza tropas,
preparando-as
para
uma eventual declaração de guerra à Alemanha, se esta fizer qualquer acto bélico
contra a Polónia... Estamos nas vésperas do começo das hostilidades que causarão
tantos danos e tantas mortes.
Isso mesmo pressente e
sente a Alexandrina, que o explica ao seu Director espiritual em carta datada de
25 de Agosto de 1939:
“Senti uma tremenda aflição na alma; a desolação, a revolta,
a morte de todas as almas: tudo eram ruínas em minha alma. Que noite triste!
Rolei na cama e Nosso Senhor disse-me, mas não em tom de ralhar, mas com imensa
dor e amargura:
— Salva-Me, salva-Me o mundo. São os momentos de maior
gravidade e deles vêm os flagelos do mundo e das almas: é para mais e melhor se
povoar o inferno. Tem dó de Mim: une-te àqueles que neste momento sofrem. Une-te
a Mim, deixa-Me oferecer-te comigo ao eterno Pai.
Com as Suas Divinas Mãos cruzadas no Seu Santíssimo Peito,
com que dor eu sentia que Ele as apertava ao Seu Divino Coração. Condoí-me tanto
da dor de Nosso Senhor que de dor me parecia morrer”.
Na carta de 28 de
Agosto ela explica ainda como ela sentia o “estado” de Jesus: Ele “tremia de
dores e não de frio”... Estava próximo o castigo da humanidade.
“Sentia que Ele tremia em mim ao mesmo tempo que me dizia:
— Que dor, que dor, para o meu Divino Coração ao ver o mundo
incendiar-se nas chamas ardentes das paixões e do vício, ao ver os indivíduos, a
sociedade, em todos os povos, uma guerra feroz! Parece que desencadeou para a
terra todo o inferno. Ai mundo, que não te levantas, ai mundo, que não te
convertes! E está tão próximo o teu castigo! É por isto que Eu tremo de dores e
não de frio”.
E aquilo que devia
acontecer aconteceu...
No dia 1 de Setembro o
ditador alemão, sem qualquer declaração de guerra, invadiu a Polónia e ao mesmo
tempo acendeu o rastilho que iria pôr fogo à pólvora que por sua vez incendiaria
a Europa e o mundo.
Antes que a terrível
notícia chegue aos ouvidos da Alexandrina, Jesus veio consolá-la, confortá-la,
como se nada de novo se passasse:
“— Ditosa hora, minha filha, ditosa hora meu encanto, em que
vais dar a esmola. Tem coragem, meu amor. Olha que cada vez hás-de sofrer mais,
sentir mais medos e mais horror à crucifixão. Todo este sofrimento que já
sentiste faz parte da paixão, mas faz a tua esmola mais meritória, de mais valor
para Eu distribuir. Eu sei que não me negas nada.
— Não nego, meu Jesus, não posso negar-Vos: tomai tudo o que
Vos servir e distribuí.”
Mais adiante lemos
ainda:
“— Coragem, meu amor, confia que sou o teu Jesus, não
duvides. Estou tão deliciado no teu coração. Servi-me da tua generosidade para
salvar o mundo. Faço-te sofrer por amor. Esse abismo que tu vês cheio de
maldade, e de tão horrendos crimes, tudo isto vi também à minha frente .
Agradece ao teu Deus, ao teu esposo assemelhar-te assim tanto a Ele.
Durante a flagelação,
dizia-me Nosso Senhor:
— Coragem, meu amor, coragem te brada Jesus no intimo do teu
coração, e toda a corte celeste lá do alto to brada também. Coragem, coragem, é
para acudir ao mundo!”
Mas, nesse mesmo dia a
Alexandrina foi informada do começo da guerra.
Na missiva desse dia
1º de Setembro escrevendo ao Padre Mariano Pinho, já no fim da carta, ela diz:
“Meu Paizinho, era já noite e surpreendeu-me a triste notícia
que tinha rebentado a guerra. Será verdade? Durante uns momentos fiquei tão
triste e aflita, parece que o meu coração saltava cá fora. Mas depois principiei
a acalmar, confiando cegamente e sem limites no meu Jesus e na querida Mãezinha
que, ainda que verdade seja, ainda podem entrar em acordo e vir a paz. Ai minha
Mãezinha querida, Ela é a Rainha da Paz, é o refúgio dos pobrezinhos: há-de ser
Ela que sem cessar vai obter o perdão e a paz para a pobre humanidade”.
No dia seguinte
escreve de novo ao mesmo sacerdote e explica-lhe a dor de Jesus, uma dor que o
leva às lágrimas.
“E Nosso Senhor com grande dor dizia-me assim:
— Os pecadores não deixam cicatrizar a ferida do meu Divino
Coração; escorre sangue noite e dia sem cessar um momento. Pobres pecadores, que
não cessam de Me ofender! Pobre humanidade que não se quer salvar! Tem dó de
Mim, cura-Me com o bálsamo das tuas virtudes.
Jesus chorava e fazia-me sentir a dor e a amargura que Ele
sentia. O meu coração parece que se partia e morria de dor. Eu dizia:
— Não choreis, Jesus.
Disse-me Ele:
— Deixa-Me chorar, são lágrimas de dor e de amor: purificam o
mundo”
Agora, para que em
breve a guerra termine, é necessário orar, fazer penitência. Desta vez escutarão
os homens a voz de Deus?
A nova situação do
mundo é motivo de novos sofrimentos para Alexandrina, de novas apreensões, de
novos e medos. Ela pensa mesmo que tudo o que acontece é por culpa dela — ela
humanidade —, como está implícito na carta de 3 de Setembro:
“Sofro porque Jesus sofre: sinto a amargura e a dor do seu
Divino Coração. O meu coração não descansa, tem ânsias, mais ânsias, quer a paz
quer o amor e a união de todos os filhos de Deus. Ando a combater sem cessar,
quero ser guerreira contra o pecado porque é ofensa tão grande ao meu Jesus. Meu
Deus, meu Deus que aflição a da minha alma, parece que ando de rastos pela
terra. Levanto-me da terra, ergo os olhos ao Céu a implorar o perdão para a
terra culpada, mas de novo torno a rastejar desanimada, parece que nada consigo.
O demónio bate palmas e dança à minha volta: diz-me que todo o exército é dele.
Ai meu Paizinho, que confusão a minha; parece que está tudo perdido e que fui eu
a causadora; que toda a culpa é minha. Eu quero consolar a Jesus e não sei como
nem com quê. Queria correr o mundo todo de joelhos em sinal de penitência e
falar a todos os corações para se amarem e amarem a Jesus. Que não o ofendessem.
A minha dor é ver que Ele é ofendido.”
Jesus pede e insiste:
orai e fazei penitência, arrependei-vos dos vossos pecados...
A 6 de Setembro
Alexandrina volta a escrever ao seu Pai espiritual e envia-lhe os pedidos de
Jesus: Ele deve pregar para que se ore e se faça penitência, para que os homens
arrepiem caminho...
Jesus
lembra a história de Noé e promete um mundo regenerado, se fizerem o que Ele
pede...
“— Sou o teu Jesus, venho desabafar con-tigo. Olha, escreve já
ao teu Paizinho, quero que ele pregue, mas que diga que sabe a certeza que foi
Jesus quem o disse como se ele o tivesse ouvido dos meus divinos Lábios. Se não
se fizer penitência, se não houver renovação no mundo, corações contritos e
arrependidos, corações puros a principiar pelos meus discípulos de quem tudo
esperava e são os que mais mal Me servem, que vai ser tão grande o castigo,
guerra, peste e fome que hão-de chegar os cristãos a comerem-se uns aos outros.
Não pouparei aldeias, vilas nem cidades: todo o mundo será vítima do meu
castigo. Tremenda vingança, que horas de angústia o esperam! Será quase como no
tempo de Noé, e então principiará um mundo novo. Mas, se fizer penitência e todo
o mundo se renovar e se cumprir os meus Divinos desejos, virá a paz”.
Os anos foram passando
e a guerra continuava, cada vez mais furiosa, cada vez mais mortífera. Vozes se
levantavam para dizer que Portugal deveria respeitar as suas alianças com a
Inglaterra e com a França e que por isso mesmo deveria entrar em guerra, contra
a Alemanha.
Parece-nos aqui
oportuno lembrar o que escreveu o P. Humberto Maria Pasquale, sdb, seu segundo
Guia espiritual:
“A missão da vítima de Balasar, ligada à imolação a que o
Artista Divino a havia destinado, está claramente expressa nas palavras que o
Senhor lhe dizia na Paixão de 20-6-1941: «Une a tua dor à minha dor, o teu
amor ao meu amor: só assim te será suavizado o caminho do Calvário; só assim os
pecadores serão salvos, só assim vem a paz ao mundo e vai vir depressa. Depois,
todo o mundo rejubilará ao ser consagrado ao Coração da tua e minha Bendita
Mãe...»”
Mais adiante, no mesmo
capítulo o douto biógrafo acrescenta ainda:
“Desde este momento, enquanto sofrer a Paixão de Jesus, a
Alexandrina comparecerá, como Ele, diante de Deus, como representante do mundo,
e a Justiça exigirá dela satisfação por todas as maldades que se cometem. Ela
será um mundo que é rejeitado por Deus e será um Jesus que expia e aplaca a sua
justa ira.
Admirável sabedoria e misericórdia divina que, com o dogma do
Corpo Místico, tornou possível esta «mística substituição»!”
Quanto ao seu primeiro
Director espiritual, o Padre Mariano Pinho, na segunda biografia que escreveu,
afirma, para que os leitores tenham uma melhor compreensão de tudo quanto se
passa na Alexandrina:
“Nem é mister chamar a atenção do leitor esclarecido para
estes efeitos de profundíssima humildade que na alma da Alexandrina deixavam as
graças místicas de que foi objecto, efeitos que são ao mesmo tempo prova
irrefutável da autenticidade dessas mesmas graças”
.
Mais adiante o mesmo
biógrafo explica ainda, referindo-se à vida e aos carismas da Alexandrina:
“Participar na morte de Cristo não é só receber as graças que
Ele nos mereceu com a sua morte, mas experimentá-la, ser vítima, estar morto com
Cristo. É experimentar os seus estigmas e a sua morte em nós mesmos, estendendo
até nós, membros seus, os seus sofrimentos:
«Completo na minha carne o que falta aos sofrimentos de
Cristo pelo seu corpo que é a Igreja», ensinava o mesmo São Paulo.
Evidentemente nada falta à Paixão de Cristo quanto ao mérito,
mas quanto à aplicação: para esta quer que colaboremos, com os nossos trabalhos,
sofrimentos, fadigas, orações, vida e morte, transformando-os assim em
instrumentos destes méritos redentores de nós mesmos e dos pecadores.
A vida da Alexandrina é uma realização concreta e eloquente
desta doutrina; desta sua união com Cristo sofrendo, encontramos passagens
inúmeras nas suas cartas e outros escritos e já várias foram aparecendo nos
capítulos precedentes. Mas o ponto é importante, por isso apresentemos mais
algumas a comprovarem expressamente a doutrina que agora nos ocupa”
.
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