1º de
Dezembro – Sexta-feira
Durante
a noite fui assaltada pelas manhas do demónio. Aflige-me muito ;
aterrou-me ; a sua linguagem foi vergonhosa, assim como as acções e
conselhos. Lutei, lutei com as suas artes. Ele afirmou-me bem eu que
pequei. E eu durante a luta dizia para Jesus :
— Como
posso estar eu em tão grande fogo sem ser queimada ? Pecar não
quero, meu Jesus.
Quis de
novo expulsar o demónio, mas não foi para mim ; nem uma só palavra
pude dizer. Ele estava raivoso, com a maior fúria ; não sabia como
libertar-me dele. Jesus não veio, ou antes, não o sentia nem o via.
O que sei é que ele de repente retirou-se enquanto que eu fiquei a
dizer :
— Jesus, pecar, não !
Este
brado moribundo penetrou tanto em meu coração e ecoou em meus
ouvidos, que já lá vão quase 24 horas e ainda ouço e sinto no
coração a dor que me causou. A cada momento passa pelos meus ouvidos
esta voz dorida : — “Jesus, pecar, não !”
Fiquei
num grande desalento, num profundo pesar a parecer-me que tinha
ofendido o meu Jesus. E nesta amargura passei o dia de hoje.
Juntou-se mais a dor de ser sexta-feira. Ó meu Deus, não posso
recordar-me : que medo eu tenho ! Veio a madrugada. Sentia-me numa
prisão, triste, cansada, cheia de medo e vergonha. Mais tarde, de
mãos presas e a cabeça a parecer que sangrava com a dor e ferimentos
dos espinhos, parecia-me que era levada a correr ruas. Grande
multidão de curiosos olhavam-me, uns com dó, outros com desdém.
Ouvia a burburinho do povo ; ruídos enormes. Sentia-me sozinha.
Olhei a Jesus crucificado, julguei-me abraçada à Cruz e disse-lhe :
— Meu
Jesus, que importa que todos me deixem, se me ficais Vós ? Se Vos
possuo e estais comigo, não estou sozinha.
Já de
tarde sentia-me na Cruz ; a alma cravada com o corpo, ambos na mesma
dor e agonia. A alma levantava os olhos ao Céu, nada via a não ser
dor e morte, nada podia dizer a Jesus. Ele veio, e veio cheio de
amor.
— “Vem,
minha filha, louca de dor e amor, ao meu encontro. É dor que salva
as almas, é loucura de amor por mim. Se o mundo conhecesse esta vida
de amor, esta união conjugal de Jesus com a alma virgem, com a alma
que escolhe para sua esposa ! Mas não conhece, e porque não conhece,
calunia-a, despreza-a, persegue-a. Ó minha pomba bela, tu és esposa
e és mãe, mãe que não deixa de ser virgem ; és mãe dos pecadores,
são filhos da tua dor, filhos do teu sangue que vais perdendo gota a
gota, filhos do teu amor. Minha filha, lá do Céu muitas vezes
ouvirás da terra muitos pecadores chamarem-te, aclamarem-te pelo
doce nome de mãe. Aclamar-te-ão aqueles que se virem livres das
garras do demónio e conhecerem que foram livres por ti,
aproximando-se assim do meu divino Coração. Grande amor, ditosa dor
que te levou a mereceres de Jesus tão honrosos e elevados títulos !”
— Meu
Jesus, meu Jesus, que envergonhada e confundida estou. Se eu pudesse
ocultar tudo isto ! Se fosse só para Vós e para mim ! Confunde-me
ouvir isto e ver a minha miséria !
— “Já
sabes que necessito da tua miséria para esconder em ti as minhas
grandezas e omnipotência. Escreve tudo, escreve, minha filha. Se o
que te digo ficasse oculto, de nada valia ao mundo. Mãe dos
pecadores, nova redentora, salva-os, salva-os. És a nova redentora
escolhida por Cristo. Nunca houve nem voltará a haver no mundo
sofrimento que se iguale ao teu. Nunca houve nem voltará a haver
vítima desta forma imolada, porque nunca houve tanta necessidade
como hoje, nunca o mundo pecou assim. Dezanove séculos são passados
que Eu vim ao mundo e trouxe agora a nova redentora escolhida por
mim para relembrar ao mundo o que Cristo sofreu, o que é a dor, o
que é o amor e loucura pelas almas. És a nova redentora que vens
salvá-los, és a nova redentora que incendeias na humanidade o amor
de Jesus. Nova redentora que serás falada enquanto o mundo for
mundo. Minha filha, livro onde estão escritas com dor e sangue
letras de oiro e pedras preciosas todas, todas as ciências divinas !
Coragem, amada, não temas as tempestades, não temas o estrondo do
trovão que traz consigo nuvem que orvalha graças, amor e maná
celeste. Enche-te, minha filha ; é de amor e maná que vives ;
enche-te para dares às almas”.
— Obrigada, meu Jesus !
Senti-me mergulhada no amor de Jesus e com tanta intensidade que
terminado o colóquio pensei não aguentar o fogo que me devorava o
coração. Pensei e cheguei a falar numa toalha molhada em água para
apagar o fogo que tanto me abrasava. Receosa que me fizesse mal, não
o usei. Por vezes parece apagar-se e perder todo o calor ; de novo
volta a incendiar-se, mas com tal viveza que parece destruir-me.
Além do fogo que recebi de Jesus, recebi também um nevoeiro
brilhante que caiu sobre mim em grande abundância. Era doce, era
suave, deu-me vida, senti-me viver, senti-me forte para sofrer.
— Ó meu
Jesus, que doçuras e encantos tem a Vossa vida divina !
2 de
Dezembro – Primeiro sábado
Noite
de dor, noite de tristeza e trevas. Veio o demónio desempenhar o seu
papel infernal. A luta mais violenta durou nada menos duma hora.
Apareceu-me em forma de serpente medonha ; era da grossura de
qualquer uma pessoa, coberta de escama, comprida e feia. Enrolava-se
de tal forma que parecia um monte delas e não uma só. Cheguei a
assustar-me. Com as suas palavras feias, gestos maus, calcava aos
pés as cabeças das pessoas com quem ele diz que eu peco. Fingia
esmagar tudo.
— Estás
condenada ao inferno. Diz que queres o prazer, diz que queres pecar.
Ou desistes da tua oferta de vítima ou te esmago esse corpo e
engulo-te como se fosse um leão.
E fazia
tentativas para me chegar a engolir. Nos momentos mais aflitivos foi
que eu recorri ao Céu ; atormentada com o susto de pecar, chamei por
Jesus aflitivamente. O que se passou, só em confissão o direi. Como
Jesus vela e ampara quem não quer ofendê-lo ! Fiquei libertada,
apesar das ameaças serem do combate durar toda a noite. Não sei se
foi Jesus que o mandou retirar ou se foi ele que assim o quis. Eu
ouvia a afirmação que era eu que não queria por já estar cansada.
Apesar da noite estar luminosa, eu fiquei na maior escuridão e num
tristeza de morte. Uma palavra ou outra a desabafar com e meu Jesus
e com a Mãezinha querida ; pouco podia dizer-lhes, a vergonha não me
deixava. Meu Deus, como posso eu amar-Vos e consolar-Vos desta
forma ? Ó Mãezinha, ao o primeiro sábado, que comunhão a minha !
Passou-me pela ideia pedir a Jesus que não me falasse. Que horror,
que timidez eu tenho aos êxtases. Tive medo de com estes pensamentos
desgostar o meu Jesus. Veio a hora de eu comungar. Momentos depois
principiou Ele a falar-me com a sua costumada doçura e amor :
— “Minha filha, pomba querida, branco lírio, açucena cândida e pura,
vem cá e escuta-me. O Esposo que ama e é fiel desabafa com a sua
esposa as suas dores e mágoas. Olha, Eu estou tão magoado, está tão
ferido o meu divino Coração ! Os pecadores não cessam com os seus
crimes, cada vez me ofendem mais com as suas desonestidades e
impurezas. O goz, a carne, a maldita carne. E pelos sacerdotes sou
também tão ofendido ! E há tantos que não me ofendem na impureza,
mas ofendem-me noutros pontos ; dão tantos estragos, escandalizam
tanto ! Tem coragem ! Desagrava-me com as lutas do demónio. Dá-me,
dá-me esta reparação. Tem coragem, anima-te, dá-me tudo, sofre tudo.
A tua pureza não se mancha, a sua auréola e candura encantam a
Majestade divina, alegram o Céu. Coragem, amada minha, não temas a
guerra desarmada contra ti, não temas porque estou contigo. Não
temas porque é certo o triunfo da minha divina causa. Diz ao teu
Paizinho que lhe dou a afirmação do meu divino amor. Os homens
retiraram-no de ti, mas eu não o retirei ; cada vez vos uno mais
dentro em meu divino Coração. Ele foi e será sempre o teu verdadeiro
director. Os meus breves são sempre assim ; tudo neste mundo é breve
em comparação à eternidade. A afirmação das minhas divinas palavras
para que ele saiba que está na verdade, que as minhas promessas
hão-de cumprir-se. Que o criei para as almas para ele se dar
inteiramente a elas. Dá ao teu médico novos agradecimentos. Diz-lhe
que me alegro ao ver a sua firmeza na minha divina causa. São assim
os amigos do Senhor, combatem sem temor. Diz-lhe que ele em união
comigo estamos a operar milagres em ti conservando-te a tua vida
aqui na terra. Diz ao teu querido P. Humberto que o trouxe aqui para
defender a minha divina causa ; não foi ele que veio. Coragem, e
toda a firmeza. E o meu querido P. Alberto que seja assíduo a teu
lado até que cesse a perseguição e os maus juízos. A dor é filha do
amor. É com dor e amor que dás a vida aos filhos meus. Só esta dor e
este amor podiam ser dados a uma vítima a quem foi dado desempenhar
na terra a mais alta e sublime missão. Os amigos da minha divina
causa ostentam em suas mãos o pendão do triunfo e do reinado divino.
Coragem, minha filha, é Jesus que te pede, coragem, coragem.
Assemelho-te a mim. Eu também fui perseguido. Em todos os tempos a
minha Igreja e tudo aquilo que é meu foram perseguidos também. Como
não há-de ser perseguida agora a minha causa mais rica, a missão
mais dificílima ? Coragem, coragem, amada, amada ! É a raiva de
Satanás”.
No
mesmo tempo veio para o meu lado direito a Mãezinha tomando-me para
os seus braços. Pediu-me coragem em nome do seu divino Filho.
— “Anima-te, minha filha, anima)te, peço-te em nome do meu amor e do
teu e meu Jesus. Aceita, sofre tudo, consola o seu divino Coração
ferido com os pecados do mundo. Olha, filhinha, venho confirmar as
palavras do meu divino Filho. És rainha dos pecadores, és rainha do
mundo. Aceita o meu santíssimo Manto, é teu, faz o meu lugar.
Envolve nele, põe à tua volta os que te são queridos e mais de perto
partilham a tua dor. Os que partilham dela e cuidam da causa do eu
Jesus são queridos do teu coração, do meu e do de meu bendito Filho.
Aqueles que mais associamos ao teu sofrimento são aqueles a quem
mais de perto queremos purificar. Coloca depois em volta todos os
pecadores. Podes cobrir com o meu Manto o mundo inteiro, chega para
todos. Aceita a minha coroa, és coroada por mim ; és rainha”.
Meu
Deus, que vergonha a minha ! Como eu era pequenina, mesquinha ao pé
da Mãezinha. Que vergonha ao sentir Ela colocar sobre os meus ombros
o seu santíssimo Manto e sobre a minha cabeça uma coroa de rainha
que da sua santíssima cabeça tirou para colocar na minha. Mãezinha,
Mãezinha, que vergonha tenho de Vós e de Jesus. Eu não sou digna de
tal. Oh ! que miséria a minha !
— “Coragem, filhinha, não te envergonhes. Estás purificada pelo
sofrimento e pelo Sangue do teu Jesus, que purificou tudo ; tens a
alvura do arminho. O brilho da tua pureza e das tuas virtudes
iluminam o mundo, irradia-o o teu perfume. Enche-te, recebe amor, é
meu, é de Jesus. O amor, carinho e carícias que recebes de nós
atraiem a ti as almas. Dá tudo em nosso nome aos que te são
queridos. Enche-te para salvares o mundo inteiro. Enche-te, é teu,
pertence-te, salva-o”.
A
Mãezinha e Jesus inundaram-me de amor e depois das suas ternas
carícias retiram-se. Fiquei com mais vida e mais alegre.
Á
medida que o tempo vai passando, a alegria foge, a vida vai
falhando. Contudo, grito e gritarei sempre : — “Amo Jesus e a
Mãezinha ; quero o que Eles quiserem !”
4 de
Dezembro
O tempo
não passa, a eternidade não chega. Não poderei, Jesus, ver ainda uns
raiozinhos de luz, viver ainda entre os meus uns momentos de
alegria ?
Vontade
santíssima do meu Deus, quero-te, amo-te com todo o coração e com
toda a minha alma. Ando como um ladrão fugitivo a esconder-me de
tudo e de todos. Mas mesmo assim, mal posso aguentar a dor que me
causa ver a distância que me separa de Jesus : Ele no Céu e eu na
terra. Meu Deus, quando poderei ver-Vos e amar-Vos ? Secou em mim
aquela fonte da qual nasciam em mim ânsias de Vos amar e possuir.
Tudo desaparece, tudo morre, só a dor não. Essa ocupa-me todas as
horas do dia e da noite. Amar não sei ; amor não possuo. A dor sim,
a dor existe com toda a força e agudez. Para onde foi a vida da
minha dor ? Ó meu Deus, como convencer-me da morte da minha alma ?
Horas há que ela vive e sinto-a despedaçar-se uma e milhares de
vezes ; é mais custosa a dor dela do que a do corpo. Tenho tido
fortes tentações contra a fé : não há Céu, não há inferno, não há
santos, não há anjos e Deus não existe. E se Ele não existe, como
posso eu temê-lo ? Sempre a esforçar-me por viver na sua divina
presença e sempre a esconder-me d’Ele. Nem por um só momento quero
separar-me d’Ele, e sempre cheia de vergonha e confundida por Ele
lançar sobre mim os seus olhares divinos. A minha vida são ilusões.
Não vi o Céu, não vi o inferno, não ouvi a Jesus. Isto são momentos
de tribulações aterradoras ; é o demónio que me faz sugerir tudo
isto. Meu Deus, creio em Vós e confesso-me a mais miserável de todas
as criaturas, mas confio na Vossa misericórdia, no Vosso perdão.
XE "Inferno: vi-o
tantas vezes" Sei
que existe o Céu e o inferno, vi-o, vi-o, meu Jesus, por tantas
vezes. Confio que centenas e centenas de vezes tenho ouvido a Vossa
terna e doce voz. Creio, creio, confio em tudo, meu Jesus.
Estas
duas noites passadas Jesus poupou-me aos ataques violentos do
demónio. Hoje fui assaltada por ele fortemente. De dentes
descarnados, em forma de leão, descia uma montanha do meio de negros
arvoredos, a uivar desesperadamente. Ao chegar perto de mim, abriu a
boca para me engolir. A minha alma apavorou-se, sentiu mais ainda do
que o corpo. O corpo mesmo ficou sem poder fazer nem consentir que
me fizessem qualquer movimento ; julgava-me mesmo às portas da
eternidade. Os gestos eram feíssimos assim como os nomes que me
chamava e às pessoas cúmplices do crime, como ele diz. Lançava as
patas sobre as mesmas pessoas, amarrava-as com a sua grande boca
pela cabeça como se fosse para as tragar e engolir. Tremenda
tragédia ! O meu coração, de tanto que palpitou, quase perdia a vida
de cansado. Chamei por Jesus e pela Mãezinha tantas, tantas vezes !
Mas ele, com a sua voz aterradora abafava tudo, dizendo-me :
— Pecaste, pecaste, estás cansada de pecares.
Fiquei
tão desanimada ! Que triste vida ! Triste com o receio de ofender o
meu Jesus. Que horror ! Que horror ! Só vejo lama e sou lama, lama
que todos calcam com nojo e aborrecimento ; lama que nenhuns olhos
querem ver, caminhos que ninguém por aborrecimento quer trilhar.
Jesus, quero seguir-Vos, quero tudo por amor de Vós. Aceitai o meu
desfalecimento e a minha desconsolação para só Vós serdes consolado,
para só Vós serdes amado !
7 de
Dezembro
Grande
sofrimento, triste e doloroso. Ai, meu Jesus, não sei exprimir
quanto sofro, não compreendo tal dor. Choro, choro sempre a perda do
meu corpo, a morte da minha alma. A cada passo sinto em mim como que
uma bomba que vai explodir tudo. Tremo apavorada. Prenderam-me os
voos ; estou como a pombinha na escuridão, sem ver caminho, batendo
as asas no ar sem poder descer, sem poder subir, de asas presas,
temerosa de cair desastradamente.
— Ó meu
Jesus, que será de mim ? Vede bem o meu sofrimento, tende compaixão,
compadecei-Vos de quem só confia em Vós.
Hoje de
manhã cedo era tal a dor que sentia em mim, era tal a repugnância e
a vergonha que me causava o ver que todo o povo se preparava e
esperava novos acontecimentos. Parecia-me ver grupos aqui e acolá
fazendo comentários. Meu Deus, espera-me a sexta-feira ! Que medo !
Tudo isto que eu sinto vejo, por Vós passou, meu Jesus. São
sofrimentos Vossos, que tanto sofrestes por meu amor. Os meus olhos
parecem penetrar no íntimo de toda a multidão que ocupa as ruas. A
minha alma sente tudo. Ao lado de uma montanha, perto de entrar numa
cidade, a figueira amaldiçoada por Jesus. Mais abaixo alguém traz à
cabeça uma bilha de água. Há encontros, falam, preparam-se para
novos acontecimentos. Vi tudo, senti tudo. Oh ! quanto sofria em
silêncio. A figueira de que acima falei, tive o conhecimento que a
vi verde, florescida ; e hoje já seca, como lenha velha para o lume.
Eu não pensava em nada disto, antes pelo contrário ; quando
principiava a sentir estes sentimentos de alma, esforçava-me por me
distrair e fazer de conta que nada sentia. O meu esforço era inútil,
de cada vez se avivavam mais estes sentimentos de alma. Este meu
esforço de nada querer sentir não é para fugir ) dor nem à vontade
do meu Jesus, mas sim o receio de ser confusão minha ou ilusão.
Estou convencida que não é. Nosso Senhor, ao ver tal receio e medo
de engano não podia deixar-me enganar. Ninguém como Ele sabe que não
quero enganar ninguém. As manhas do maldito continuam cada vez mais,
parece que a sua malícia refina. Diz-me o que há de pior. Ai, meu
Deus, que coisas tão feias ! Blasfema contra Nosso Senhor, acusa-o
como réu de culpa e faz que eu diga tudo, ou parece-me que digo e
depois afirma-me que sou eu e deixa-me quase nessa persuasão. Só com
Nosso Senhor a alma e o pobre corpo pode resistir a tanto. O coração
de aflito faz ruído enorme, com a receio de pecar e dizer tantas
coisas contra o meu Jesus. Na última luta fiquei quase sem vida.
Murmurava :
— Ó meu
Jesus, ó minha querida Mãezinha ! Meu Deus, que triste vida a
minha ! Que será de mim ?
Não
podia mover-me e necessitava de alívio. Veio Jesus com as suas
santíssimas mãos, colocou-me na posição que eu desejava, cobriu-me
de carócoas e como a mãe que se deita ao pé do filhinho para o
adormecer, disse-me :
— “Descansa comigo. Não é triste a tua vida, filhinha, é vida de
reparação e sacrifício. Alegra-te comigo, com a consolação que me
dás. Não pecas, não, minha amada”.
Senti
logo paz na minha alma. Muito chegadinha a Jesus, depressa pude
adormecer, coberta com as suas carícias, abrasada no seu amor.
8 de
Dezembro – Sexta-feira
Longe
de raiar o dia — dia que para mim não raiou — principiei a fazer as
minhas orações e a preparar-me para a visita do meu Jesus. Não podia
rezar, cheia de pavor, sobrecarregada de vergonha; dor e
humilhações. Era levada de casa em casa, de rua em rua ; sofria no
mais íntimo da minha alma. Chorava para dentro ; para dentro
suspirava. Os meus lábios não podiam ter uma palavra de queixume.
Esmagava-me o peso das humilhações. Meu Deus, que dor tão íntima e
tão profunda ! Era uma dor sem fim. Não era capaz de ver onde ela
podia parar. Jesus, como poderei suportar tão grande martírio ? Se
me faltais, não resisto, morro, morro depressa. Com esta dor não
pude ter um momento de alegria, nem podia lembrar-me que era o dia
da Mãezinha, dia tão predilecto para mim, dia da Imaculada
Conceição. Nem ao menos podia respirar. Jesus, pobre de mim, não
posso estar aqui ! Veio Jesus. Aqueceu-me logo com o calor do seu
Amor divino ; acariciou-me e disse-me :
— A tua
dor, minha filha, é dor de salvação. Esse mar imenso de sangue que
continuamente derramas do teu coração, é onde são mergulhados os
pecadores. É nesse sangue da tua dor que eles são purificados, é
sangue da nova redenção. Tu és a segunda arca de Noé. Em ti guardo
os pecadores ; em ti, como nessa arca, guardo tudo para a vida de
novo mundo. A tua dor, a tua imolação é dor e imolação de vida mais
para as almas do que para os corpos. Coragem, filhinha, nada temas.
A chuva que sobre a nova arca cai não é condenação, é de salvação. É
chuva de humilhações, desprezos e sacrifícios. A arca não tem
perigo, navega nas alturas. Uma vez que baixem as águas da
perseguição, verá o mundo a riqueza que continha, que era de
salvação. Filhinha, amada querida, Eu não estou sozinho, está comigo
minha bendita Mãe. Escuta o que ela te diz”.
Jesus à
esquerda, a Mãezinha, à direita, tomou-me para o seu regaço,
apertou-me fortemente contra o seu santíssimo Coração, cobriu-me de
carícias e disse-me :
— “Minha filha, venho com meu divino Filho fazer-te a entrega da
humanidade e fechá-la em teu coração ; ficam as chaves na posse do
teu Jesus e da tua querida Mãezinha. Deite o meu santíssimo Manto e
a minha coroa de Rainha ; foste escolhida por mim. És rainha dos
pecadores, és rainha do mundo, escolhida por Jesus e Maria. Hoje,
dia da minha Imaculada Conceição fazemos-te a entrega do teu
reinado ; principia desde hoje, é teu, governa-o, guarda-o. Guarda-o
na terra assim como o guardarás e governarás depois no Céu. Escolhi
este dia que em minha honra é guardado para que em união comigo seja
festejado o dia em que te foi entregue o reinado da humanidade.
Quando o mundo disto tiver conhecimento, comigo serás louvada”.
Senti
como se me abrissem o peito e dentro o coração ; foi aberto por
Jesus e pela Mãezinha. Depois de depositarem nele alguma coisa,
fecharam-no novamente. Fechou-o à chave a Mãezinha e depois Jesus.
Bafejaram-no e acalentaram-no docemente. Depois fiquei entre Jesus e
a Mãezinha como no meio de uma prensa. De tanto que me estreitavam
entre os seus corações divinos, parecia-me não poder resistir a
tanto amor, ir morrer naquelas chamas divinas. Uma vez a Mãezinha,
outra vez Jesus, uniam seus lábios aos meus, bafejam-me e davam-me a
sua vida divina. E a Mãezinha continuou :
— “Filhinha amada, querida do meu Jesus, recebe a vida de que vives,
recebe a vida do Céu, recebe-a e dá-as às almas”.
E
continuou Jesus :
— “Minha pomba bela, branco lírio, pura açucena, estrela cintilante
que cintilarás noite e dia para luz e guia dos pecadores, para luz e
guia de quantos me quiserem seguir e amar com o amor mais puro e
mais forte. Coragem filhinha, coragem, amada, não temas a guerra do
mundo ! Espera-te o Céu para te abraçar, espera-te o Céu para nele
guardar o maior tesouro que tenho na terra. És de Jesus, és da
Mãezinha. Espera-te toda a corte celeste”.
Ó
Conceição pura, ó Mãe de Jesus
Guarda o meu corpo cravado na Cruz
Cravado na Cruz, à Cruz abraçado
Guarda-o, Mãezinha, ó Conceição pura,
Mãe do meu Esposo amado !
Recebi
novas carícias de Jesus e da Mãezinha, fiz-lhe a entrega de mim
mesma e de todos os que me são queridos e por fim do mundo inteiro,
incluindo também os que mais me fazem sofrer.
— Mãezinha, faço-Vos eu entrega da humanidade, guardai-a que é
Vossa, salvai-a, só Vós podeis. Envergonho-me por ter recebido de
Vós a entrega do mundo. Que pode esta miséria sem a Vossa
protecção ? Ó Jesus, ó Mãezinha, a Vós me entrego como o soldado que
quer combater e defender o Vosso reinado. Quero lutar, quero
obedecer : mandai ; eu com a Vossa graça tudo cumprirei, serei
forte. Com a graça e força do Alto será salvo o mundo.
Desprendi-me de Jesus e da Mãezinha com grande custo. Unida a Eles,
vencia o mundo, nada temi. Agora tudo temo, nada posso. Ai que
saudades tenho do Céu. Quando irei para lá ?
9 de
Dezembro
Na
manhãzinha de hoje não podia fazer as minhas orações nem preparar-me
como devia para receber o meu Jesus. É indizível a minha dor. As
lágrimas por vezes tentaram deslizarem-me nas faces. Parava de orar
e dizia :
— Ó meu
Deus, ó meu Deus ! A alma rasgava-se como um trapo velho, fio por
fio, esmigalhava-se, derretia-se. Jesus, como hei-de viver assim ?
Veio a hora de comungar. Nem a visita de Jesus me deu alívio nem
alegria ; fiquei no mesmo estado de alma. Dei-lhe graças o melhor
que me foi possível. Pus-me depois a ler a correspondência que me
entregaram. A segunda carta que li fez brilhar uns raiozinhos de luz
na minha alma. Levantou-se de mim o peso esmagador que despedaçava
todo o meu ser. Sem faltar a santa obediência, já o Sr. P. Humberto
podia escrever-me para assim aliviar um pouco a minha dor e dar-me
luz no meio de tantas trevas. Sem saber como, a um impulso de amor,
pude ajoelhar-me na minha cama, levantar as mãos, rezar o
Magnificat, coisa que costume rezar sempre quando recebo miminhos de
Jesus, quer venham ferie-me, quer suavizar o meu sofrer. Entoei
louvores a Jesus Sacramentado e ao seu santíssimo Coração
testemunhando-lhe a minha confiança n’Ele assim como à Mãezinha, a
quem com minha irmã e primas entoei um cântico de amor. Depois dum
muito obrigada ao Céu, caí sobre a minha cama, ficando logo na minha
tão amada cruz. A minha alegria logo morreu. Eu não costumo
entregar-me a ela, aceito tudo como Jesus quer, mas se me entregasse
à alegria, bem pouco tempo me alegrava. Depressa nasce, depressa
morre. Até os êxtases com o meu Jesus morrem como se por mim não
passassem. Passei o resto do dia mergulhada no sofrimento a sentir
na minha alma a grande humilhação que os Rev.mos Senhores Padres
Salesianos passaram por minha causa, coitadinhos ! Por fazerem bem e
aliviarem uma pobre alma, sofrem também. Oh ! como é doce o
sofrimento levado por amor de Jesus e das almas ! Ofereci a Jesus e
à Mãezinha a consolação que eu podia sentir com esta boa nova.
Disse-lhes que era para os seus santíssimos Corações a consolação
que eu devia sentir assim como a alegria. Tirai, Jesus, de tudo isto
proveito para as almas. São elas e o Vosso amor o único fim da minha
vida.
11 de
Dezembro
A minha
alma espera novas provas, o meu coração novos golpes que o venham
ferir. Estou cheia de medo. O que me espera ! Que mais virá, meu
Jesus ? Estou cansada de tanto sofrer. O corpo desfalece, mas a
vontade está pronta, suspira e só quer a Vossa vontade divina,
Senhor.
Ontem
principiei a sentir e hoje ainda mais posso dizer que me parecem
mais insuportáveis, as ânsias de salvar o mundo. É tal a loucura e o
amor que sinto pelas almas, que me queria dar toda a elas. Quero
todo o sacrifício e de boa vontade me deixo imolar para as salvar.
Queria um punhal em minha mão para com ele abrir o coração numa
chaga tão profunda que me desse sangue para escrever por toda a
terra : “Convertei-vos, pecadores, não ofendais mais a Jesus ! O Céu
é tão lindo ! E Ele a todos criou para lá”.
Eu
queria ir de joelhos ou de rastos por toda a parte do mundo deixar
bem vivas estas palavras escritas por mim e com o meu sangue. Nem um
palmo de terra queria que ficasse sem estas letras : “Convertei-vos,
convertei-vos, pecadores”. Não sei o que mais hei-de fazer, meu
Jesus, por Vós e pelas almas.
Durante
a noite fui assaltada pelas manhas do manquinho. Ouvia os seus
assobios desesperados, ranger de dentes e uivos. Depois gestos,
palavras feias e maliciosas. A meu lado e até debaixo de mim,
abriram-se grandes barreiras, abismos sem fim. Nuns escombros
feíssimos estavam grandes serpentes e enormes crocodilos que serviam
de tormento e terror para uma massa que penso ser a almas que neles
estavam. Cansada da luta e a parecer-me que caía naqueles abismos,
não podia chamar por Jesus. E o maldito dizia-me :
― Chama
por mim, diz-me que é a mim que me queres, que não queres Deus, que
queres o pecado, que queres gozar.
E
procurava instruir-me com as suas feias lições. Nos momentos mais
tremendos, ao terminar a luta, foi que eu pude recorrer ao Céu,
chamar por Jesus. E já a chorar, dizia-lhe : ― Que é isto, meu
Jesus ? Enquanto que o maldito em forma de leão dizia-me :
― Pecaste ! Pecaste !
O mais
que se passou tenho necessidade de o dizer, mas só em confissão e
com muito custo.
A minha
dor e lágrimas pareciam-me ser duradoiras, mas não foram. No mesmo
lugar onde estavam os abismos, apareceu-me um formoso jardim cheio
de flores. Lírios, açucenas e mais variedades. Que lindas, que
belas ! Por entre elas sobressaiam raios, muitos raios mais
brilhantes que o oiro. Contemplei tudo sem saber o seu significado.
No mesmo instante disse-me Jesus :
― “As
flores deste formoso jardim são as tuas heróicas virtudes. As suas
pétalas são tenras, finas, delicadas ; o seu aroma é atraente. Os
raios são do meu divino Amor. Não chores, filhinha, a tua pureza não
se mancha nos combates do demónio. Sais deles cada vez mais pura,
mais encantadora. É a reparação que de ti exijo. Se não fosse esta
reparação, caiam nos abismos que agora viste tantas e tantas almas,
ficando lá eternamente”.
Ao
deixar de ouvir Jesus, vi de novo o demónio em forma de leão, de
dentes descarnados, lá de longe, mas fazia tentativas para me
engolir, e insultava-me ao mesmo tempo. Eu já não chorava e estava
em paz, naquela paz que só de Jesus vem. Com a sua força divina,
nesta ocasião não temi o demónio. Compadecida das almas que podiam
cair em tão tremendos abismos, aceitava e sofria tudo o que Jesus
quisesse. As minhas lágrimas eram de dor, receosa de ter pecado.
Depois de ouvir a Jesus, sosseguei e fiquei em paz, sequiosa do seu
Amor, ansiosa por lhe dar almas.
XE "Amar Aquele que não é
amado" Não quero
estar na terra senão para as salvar e amar Aquele que não é amado.
14 de
Dezembro
O meu
corpo e o meu espírito são assados em grelhas vivas ; não sei dizer
a minha dor, dor que sinto sem saber de que é, nem a quem pertence.
Que fogo consumidor ! Parece-me enlouquecer com a dor que ele me
causa. Ouço ao longe grandes ruídos, faz-me lembrar um tremor de
terra quando se faz ouvir ainda sem se sentir. Mas a minha alma ouve
e sente. Foi tempestade que passou e deixou tantos estragos que
muito tempo serão lembrados e falados. Ao longe, muito ao longe, há
comentações, o meu nome é falado, enxovalhado, envolto em lama como
folha que nela apodrece. Estou envergonhada ; a minha alma sente
tudo e desfaz-se em dor.
― Ó meu
Jesus, eu quero que estas manchas, esta lama que sobre o meu nome
cai, sirvam para lavar as almas dos pecadores para que delas
desapareçam os crimes com que Vos ofenderam para se poderem salvar.
Quero sofrer inocente e não culpada, Jesus. Ó Jesus, que vida a
minha, envergonho-me dos homens, envergonho-me de Vós. Por graça
Vossa, dos homens sou vítima inocente ; por minha culpa e miséria,
de Vós, meu Jesus, sou vítima culpada. Devo sofrer, quero sofrer
porque Vos ofendi. Perdoai-me, perdoai-me, Jesus, valei-me,
valei-me, só de Vós posso esperar, só em Vós posso confiar. Dos
homens já vejo que nada posso receber. Tudo me roubam, todo o alívio
humano desaparece como o fumo, leva o seu caminho. Caiu sobre mim a
guerra do mundo e a guerra do inferno. O demónio apareceu-me na
figura de um grande cão. Lembrei-me dos cães que se atiram para
morderem sem darem sinal. Ele queria morder-me, ou melhor,
engolir-me. Quando não me ataca violentamente, atormenta-me sempre :
― Pecas
quando queres. Não pecaste hoje, nem pecas agora porque estás
cansada.
Na
noite passada veio fortemente acompanhado de muitos demónios em
forma de negros esqueletos. Formaram à minha frente bancadas e camas
pretas. ― “São bancadas e camas de delícias”, dizia ele, enquanto
que os outros, junto delas, se entretinham. Dizia-me coisas
feíssimas e parecia-me que me obrigava a repeti-las.
― Não
chamas por Deus.
E
parece-me que muitas vezes não chamava, que obedecia às suas ordens.
De novo voltei a passar pelo que aqui não digo. Nos momentos de
maior transe sei que fiquei como que moribunda repetindo só com o
pensamento muitas vezes : “Ó meu Deus, ó meu Deus, ó meu Deus !”
Debaixo
de mim estavam esses medonhos abismos de que já tenho falado ; e eu
suspensa sem estar amarrada a nada, a ver quando caia neles. À voz
de Jesus, os demónios fugiram e os abismos desapareceram. Jesus
mudou-me de posição e disse-me :
― “Minha filha, sobre estes abismos estão as almas ; o que as sustém
de caírem neles para sempre é a tua reparação nunca sentida, nunca
experimentada, nunca vista. Dor, imolação sem igual. Diz-me, minha
filha, pombinha amada, diz-me, desabafa comigo ; confias que não me
ofendes ?”
― Ai,
meu Jesus, meu Jesus, quero confiar e confio, mas custa-me tanto
convencer-me de que não peco, que não Vos ofendo no meio de tão
grande perigo !
― “Sossega, sossega, meu anjo, só me dás consolação, reparação e
provas a grandeza do teu amor ao meu divino Coração”.
Fiquei
por algum tempo unida a Jesus, cheia de mimo como a criancinha junto
de sua mãe, dorida apenas da dor que tinha sentido.
Novo
tormento para a minha alma, tormento que deveras me faz sofrer e não
me deixa sossegar. Queria esconder-me dentro dum cofre do qual
ninguém pudesse nem soubesse abri-lo. Quero abraçar o meu peito num
abraço que ninguém pudesse arrancar. Quero guardar não sei o quê que
me foi entregue e tenho que velar e vigiar. Não sei como, meu Deus,
conseguir guardar, guardar bem, guardar tudo. Fujo, Jesus, fujo para
o Vosso divino Coração : seja Ele o cofre bendito que me guarde para
sempre a mim e a esta entrega que me foi feita, a que tantos
cuidados me sujeita. Aí estou bem, aí estou segura, não corro perigo
eu nem aquilo que tenho que olhar e vigiar. Guardai-me, sim ?
Guardai-me para sempre.
É
quinta-feira, é já noite. Grande tormento ! Ó meu Deus, cada
sexta-feira que se aproxima é uma morte para mim. Sinto como se
estivesse num convívio de alegria e eu falasse com os que falavam e
sorrisse com os que sorriam. E a minha alma em grande agonia deixa a
terra, sobe ao Céu para só exclamar : ― “Meu Deus, meu Deus, o que
me espera !” Enquanto que esse convívio de alegria dura, o coração
lá fora é esmagado, maltratado, escarnecido e desprezado. Todos
sorriem de escárnio, á espera de novos acontecimentos. Jesus, sou a
Vossa vítima e nada mais !
15 de
Dezembro
Cedo,
ainda sem raiar o dia, despertei dum leve sono. Ó meu Deus, é
sexta-feira ! Caiu sobre mim uma noite escura. Jesus, a cada momento
que passa parece-me caminhar para a morte, não como quem caminha por
amor e alegria, mas como quem tem à morte o maior horror e
repugnância. Sepultada nesta dor, chegou a hora de receber o meu
Jesus. Fiz-lhe os meus pedidos. Ao fazer-lhos recordei-lhe algumas
coisas.
― Confio, confio, meu Jesus ! Para não confiar nisto tinha que não
acreditar em nada.
Disse
isto para desabafar e ao mesmo tempo mostrar a Jesus a minha
confiança, longe de pensar obter d’Ele uma resposta. Mas Ele deu-ma.
― “Assim é, minha filha, é mesmo assim. Confia, são palavras de um
Deus, são palavras do teu Esposo Jesus que te ama e não permite, não
consente que te enganes”.
Animei-me mais, ganhei mais força para resistir à dor e aguentar com
os empurrões, gracejos e escárneos que recebia. Tinha que sofrer
tudo em silêncio, de lábios cerrados. Sentia a dor de alguém que
chorava ao ver quanto eu sofria e esse alguém era amor de mãe. Em
silêncio uni a minha dor a essa dor. Veio Jesus com a sua terna e
doce voz e disse-me :
― “Minha filha, une a tua dor à minha, suaviza-a no amor do meu
divino Coração : Eu suavizo a minha no teu. Ama-me, és por mim
amada, és cofre de riqueza, depositária dos dons divinos. Minha
filha, anjo querido, a tua dor foi adornar o manto e a coroa que a
tua Mãezinha te entregou. Que brilho, que brilho com ela foi dado. É
dor de glória, é dor de salvação. É mar de martírio, é mar de
imolação. Minha filha, jardim celeste de flores divinas, prado
mimoso que apascentas os pecadores. Apascenta-los de graça, pureza e
amor ; guarda-os, guia-os, pastorinha divina, pastorinha escolhida
por Jesus. Purifica-os, purifica-os para mim ; guia-os, encaminha-os
ao meu divino Coração. Minha filha, mestra das ciências divinas,
guarda o que há oito dias em teu coração foi depositado por mim e
minha bendita Mãe : é o mundo, são os pecadores. É valor infinito, é
o meu divino Sangue. São almas salvas pela tua dor. Esse anseio de
quereres guardar e não saberes como, é tormento que vai consumir-te
até à tua morte ; dia a dia aumentará mais. Minha filha, onde está
escrito tudo o que é divino. Em ti aprenderão a amar, em ti
aprenderão a sofrer, em ti aprenderão a conhecer como Eu me comunico
às almas. Não o sabem, não o estudam. Fazem com isto sofrer tanto o
meu divino Coração ! Tem coragem ! Quem comigo sofre, comigo vence.
Quantas lágrimas de arrependimento chorarão ao verem que o teu nome
agora tão manchado é comigo e minha bendita Mãe na terra e no Céu
glorificado ! Vem, minha bendita Mãe, vem confortar a minha e tua
filhinha, vem cobri-la das tuas carícias”.
Veio
logo a Mãezinha, tomou-me para o seu regaço, apertou-me com ternura
de amor, beijou-me, acariciou-me e disse-me :
― “Minha filhinha, rainha escolhida por mim e meu divino Filho,
estarás no Céu a meu lado e do meu divino Filho em trono de rainha,
Eu como Rainha do Céu e tu como rainha da terra”.
― “Minha Mãe ― disse Jesus ― alimenta-a, dá-lhe a tua vida, a vida
da alma de que viveu sempre e vive, a vida do corpo de que
necessita”.
Principiou a Mãezinha a bafejar com os seus santíssimos Lábios
unidos aos meus. Senti-me forte na alma e no corpo. Jesus fez o
mesmo, bafejou-me, acariciou-me. E continuou Ele :
— “Estou, minha filha, com minha bendita Mãe a dar-te aquele
conforto que dos homens devias receber. Quando há anos te dizia que
seria Eu o teu director, referia-me a estes tempos, não era para pôr
de parte o teu director. Sim, precisava dele em união comigo para te
guiar e lavar às alturas que o meu divino Amor exige. Eu já via a
crueldade e perseguição dos homens. Coragem ! O teu nome que sentes
enxovalhado, em breve será falado com respeito e comigo louvado”.
— Obrigada para sempre, meu Jesus. Quantas mais coisas me dizeis,
mais miserável e mesquinha me sinto diante de Vós.
O teu
caminho, Mãe de Jesus,
Dá-me conforto para levar a Cruz.
Para levar a Cruz nesta amargura
Por entre trevas, em tanta secura.
Ó Mãe de Jesus, dá-me o teu amor
Para amar com ele o teu e meu Senhor !
18 de
Dezembro
Valei-me, Jesus, da terra não posso esperar auxílio. Sinto-me de
todos abandonada e como se todos se revoltassem contra mim. Ai de
mim sem Vós um momento só ! Sempre, sempre rumores de tempestade,
sempre, sempre uma dor quase insuportável, uma dor sem fim. Não
posso estar aqui, meu Jesus, consomem-me as saudades do Céu. Não
posso ver e sentir a distância que me separa de Vós. Um fogo por
vezes insuportável abrasa o meu coração, vem-me à boca, parece
queimar-me os lábios. De nada vale a água com que os refresco por
algum tempo para depois deitar fora. É fogo, fogo, sempre fogo. E
sinto que não Vos amo e que não conheço o amor. Pobre de mim, não
sei viver. Estou cansada de tanto esforço fazer para guardar em mim
o que Jesus e a Mãezinha me entregou. Sinto como se estivesse sempre
de braços cruzados sobre o peito com toda a força possível a
defender, a guardar em mim. Outras vezes vou louca a fugir dum
grande assalto. Vem sobre mim não sei quem, uma multidão sem conta,
quer roubar-me o que tenho em meu coração e eu fujo numa corrida
doida para esconder tudo. Quero enrolar à volta de mim cadeias,
fortes cadeias, prisões, grossas prisões para nada me poder ser
roubado. Duro tormento para a minha alma, nada consigo. Nas horas
que assim sofria, tive um terrível assalto do demónio. Senti então
como se ele me roubasse tudo ; fiquei sem coração, sem peito, sem
nada. Era uma simples casca de ovo que dentro em si nada tem. Sentia
que o roubo me foi levado tanto para longe ! Obrigava-me a dizer :
— “Não quero guardar dentro de mim nada, quero pecar, quero gozar”.
Afirmava-me que eu pecava com muitos demónios, com certas pessoas e
nomeava-as, dizendo delas e de mim as coisas mais feias. Estava
desesperado. Blasfemava contra Jesus e acusava-O réu de crimes,
fazia-me tremer de medo ao ouvir o que ele dizia a Jesus. Raras
vezes consegui pedir socorro ao Céu. Estava num banho de suor, num
cansaço que não sei explicar. Sempre disse, sem querer
dizer : — “Meu Jesus, não posso mais”. Cessou o ataque e eu sem
poder mover-me. Tristíssima por me ver privada daquele tesouro
imenso que dentro em mim possuía e com o receio de ter pecado,
murmurava sozinha :
— Meu
Deus, meu Deus, eu sem luz, sem guia, sem um sacerdote com quem
possa desabafar tudo isto. Ó Céu, ó Céu, ó Jesus, ó Mãezinha. Os
abismos tinham desaparecido, mas os meus ouvidos ainda ouviam ao
longe os ruídos do demónio. Sentia fortemente a sua raiva. Nesta
amargura, em posição violenta passou-se um bom pedaço. Se Jesus não
me acode, quem poderá valer-me ? Ó meu Deus, por Vosso amor e pelas
almas. Ouvi então Jesus :
— Não
pecaste, minha filha, não pecaste, confia, deste-me a maior das
consolações, deste-me toda a reparação possível. Olha, filhinha, o
teu Anjo da Guarda, encarregado de te guardar, recebe agora missão
de velar mais por ti mudando-te de posição quando necessitares
nestes combates. Anima-te, Eu estou contigo”.
Fiquei
logo na posição do costume. E após uns momentos, principiei a sentir
que ainda tinha em mim aquele rico tesouro que o demónio me tinha
feito desaparecer. A minha alma sentiu tanta alegria ao ver que
possuía aquela riqueza e eu queria abraçar o rico tesouro, queria
beijá-lo. Senti a alegria de uma mãe que tendo perdido o seu filho,
de novo voltou a encontrá-lo. Não sei dizer a alegria da minha alma.
Não sei dizer os cuidados que isto me dá, estou sempre receosa que
alguém possa roubar-mo. Tudo quero fazer, tudo quero sofrer para que
não corra perigo. Ontem, sem reflectir, disse uma palavra que me
pareceu desgostar a Jesus. Fiquei tristíssima. Humilhei-me diante de
Nosso Senhor, estava envergonhada.
— Perdoai, meu Jesus. O que sou eu sem Vós ?
Esta
dor acompanhou-me o resto do dia e a maior parte da noite. Na
madrugada, ao fazer a minha preparação para a vinda de Jesus, não
pude resistir à dor. Chorei, chorei ; que pena eu tinha de ter
magoado o Coração divino de Jesus. Queria um sacerdote que com a
santa absolvição purificasse a minha alma.
— Purificai-me, Jesus, purificai-me Vós. Vede a dor que tenho de Vos
ter desgostado. Estou sozinha, sem nenhum conforto da terra. Não me
falteis Vós. Perdoai-me, perdoai-me ! Aceitai a dor que tenho de Vos
desgostar por todos os que pecam gravemente e não a têm.
Esta
dor continuou no decorrer do dia e sempre a vigiar o que tenho
guardado em meu coração. Umas ânsias destruidoras de possuir mundos,
milhares deles e bradar-lhes sempre : “Amai, amai Jesus !”
— Meu
Deus, não sei se vencerei, não sei se resisto a tanto sofrimento.
Quero ver-Vos por todos amado e não quero saber-Vos ofendido. Não
posso sentir a Vossa dor. Ó pecado, triste pecado, que tanto feres a
Jesus. Ó Amor, ó meu Amor, que espécie de miminhos tendes próximo
para me dardes. Eu espero-os, eu pressinto-os. Tenho medo. Se me
ferirem muito, amo-Vos. Quanto maior for a dor, com a Vossa graça,
maior será o meu amor. Ó Céu, vale-me, acode-me.
21 de
Dezembro
O tempo
não passa, tenho já neste mundo a eternidade. Quando verei a Deus ?
Quando sairei da morte para ressuscitar para a vida ? Ó meu Deus,
que pavor estar aqui ! Só ruídos de grande vendaval se fazem sentir
na minha alma. Que peso esmagador de humilhações, calúnias e
desprezos. Ó Jesus, aceitai este abandono que sinto, para Vos
consolardes do abandono em que Vos deixam os homens. Aceitai toda a
prova, todo o meu penoso calvário para vos salvar almas, para Vos
ama como mereceis e sois digno. Ó meu Jesus, para onde hei-de fugir
eu ? Onde posso esconder-me para não poderem roubar a riqueza que
dentro em mim depositastes ? Jesus, vede o meu cansaço. Queria
guardar em muitas casas de ferro nas quais não houvesse entrada,
queria viver debaixo do chão para não poder ser assaltada. Parece
que o inferno vem sobre mim, não sei como defender-me ; dai-me
abrigo no Vosso divino Coração, guardai-me nele e guardai o que em
mim depositastes. Sinto que tudo me querem roubar ; e depois, Jesus,
que contas poderei eu dar ? Ó vida, ó vida minha ! Que medo eu tenho
da minha vida que não é vida, é só morte, tremenda morte. Parace que
não posso respirar ; que grande é o meu desfalecimento. Que
tremendas trevas e securas. Desejava o meu confessor para meu
conforto e purificação da minha alma. Ele veio, usou para mim de
muita caridade, esforçou-se por me animar, mas em vão : Sinto-me
pior ainda. Da terra não me vem conforto. Ó meu Deus, que será de
mim ? Estou parada na encosta da subida, não posso nem sei caminhar.
Nem um passo para a frente, não vejo. O demónio cai sobre mim, se
não é ele são as suas malditas manhas. Pega por todas as coisas. Num
ataque mais violento tentou fazer-me como me fez Jesus e a Mãezinha,
entregar-me o mundo, mas um mundo de gozos e de prazeres. Gozar,
gozar, pecar.
— Pecas
com todo o inferno, pecas com toda a terra.
E
fazia-me sentir como se assim fosse, queria convencer-me disso.
Tantas vezes quero recorrer ao Céu e não posso. Depressa cedo às
suas ordens. Ouço os insultos de palavras criminosas e parece-me
repetir com ele e muitas vezes eu sozinha aquilo que ele quer. Ao
terminar o maior perigo é que do fundo da alma posso bradar ao Céu
para assim depois ser maior o meu tormento ; para ele mais e melhor
poder dizer-me que pequei. Jesus não veio dizer-me nada ; senti
apenas como uma aragem suave que me levou à minha posição do
costume. A minha tristeza era de morte e um desânimo sem igual. Meu
Jesus, se eu não pecasse ! E eu Vos amasse por mim e por todos ! Se
eu Vos salvasse as almas ! Se Vos desse toda a consolação ! Não sei
falar-Vos, meu Amor. Vede o que me vai na alma, nada sei dizer-Vos.
Tenho desejos de dizer-Vos tudo, para Vos dar tudo, tudo sofria.
Tenha tanto que Vos agradecer ! Gosto tanto de Vos dizer : “Doce
Coração de Jesus, sede o meu Amor”. Só o consentires-me de poder
dizer-Vos que sois o meu Amor e a Mãezinha que é a minha salvação,
sinto que não me chega a eternidade para dizer-Vos : “Muito
obrigada”.
Recebi
ontem muitos miminhos Vossos, uns doces, outros espinhosos,
fizeram-me sangrar o coração. Foram mais humilhações que recebi para
mim e para os meus. A minha alma sentiu a sua chegada ; já os
esperava assim, como ainda espero mais. Oh ! como é bom sofrer, ser
pequenina, desaparecer por Vosso amor ! Morra o meu nome para reinar
o Vosso, meu Jesus. Desapareça eu esmagada pela dor, para só Vós
aparecerdes nas almas louvado e glorificado com amor. Obrigada, meu
Jesus, por tufo o que me alegra e faz sofrer. Obrigada, meu Jesus,
pelo santo médico que me destes. O que seria de mim neste caminho
tão espinhoso do Calvário ? Vejo que sois Vós a confortar-me, a
animar-me em seus lábios. Quantas horas gastas junto de mim ! E
apesar de tudo, quando está ausente, tenho dele um medo
atormentador ; medo que não tem razões de ser. É assim com todas as
pessoas que eu mais estimo : apesar da sua estima, sinto-me separada
delas. Estou sozinha, tenho que estar sozinha. Ó meu Jesus, quando
me dais o meu Paizinho ? Que ânsias eu tenho que ele me seja dado !
Que necessidade tem dele a minha alma ! E mesmo assim, temo vê-lo,
tenho medo, horroroso medo. Meu Jesus, é quinta-feira, caminho morta
para a morte. O meu coração está tão ferido, é tão maltratado ! A
minha alma vê todos os sofrimentos que a esperam. O meu espírito
está no Senhor, os meus olhares n’Ele estão. E em silêncio vou
exclamando : “Meu Deus, meu Deus, meu Pai, meu Pai !”
22 de
Dezembro
O
demónio desempenha o papel de um grande ladrão ; faz tremendos
assaltos ao meu coração. Quer entrar mesmo dentro dele, roubar-lhe a
riqueza que lhe foi depositada. Como não pode conseguir roubar-ma,
enraivecido, tenta estrangular-me. Parece-me que estou em sua boca
de leão retalhada entre os dentes. Mas não é só a raiva do demónio,
não são só os seus assaltos, sinto-me assaltada pelo mundo. Ó meu
Deus, o mundo a roubar o mesmo mundo ! Sinto um cansaço tal que me
deixa prostrada. Quero guardá-lo, quero escondê-lo. Tenho uns
desejos mais do que imensos de purificar este mundo como a mim
mesma. Quero ser pura, pura, e quero que ele seja puto. Quero amar a
Jesus com um amor louco, apaixonado, e quero-o a ele também no mesmo
amor. Quero banhar-me no Sangue de Jesus para transformar-me no
mesmo Jesus, e quero o mundo em igual banho, na mesma transformação.
Quero-lhe como a mim mesma ; não o posso amar mais. Que fazer para
ele, meu Jesus ? Fazei Vós o que eu não posso nem sei.
Nesta
manhã, ainda cedo, ao lembrar-me o dia que era, exclamei : “Meu
Deus, é sexta-feira ! Silêncio e dor profunda ! Se existisse o meu
querer e eu pudesse fazer desaparecer do mundo este dia !” Jesus,
perdoai-me, nas Vossas mãos me entrego ; a Vossa divina vontade, só
ela se faça. Não é para fugir à dor, bem o sabeis ; é o medo de mim
mesma, de me enganar.
Senti-me sozinha na prisão, enquanto que tudo descansava. Que dor de
alma e lágrimas silenciosas ! Recebi grande lição de Jesus. Ele, que
via e sabia tudo, enquanto que a alma chorava de dor e amargura,
pedia para todos perdão. O seu divino Coração compadecido, a todos
queria possuir ; parecia esquecer-se da sua dor, para só nos amar.
Depois, senti-me na cruz, e o sangue a cair das mãos e pés com
abundância. Com o estremecer da cruz, avivaram-se mais as feridas
dos espinhos, e uma chuva de sangue caia deles, banhavam-me o rosto.
Ó Jesus, tudo por vosso amor ; nem força tenho para respirar. A
pouco e pouco, perdi todo o sangue : parecia-me estar moribunda.
Principiei a sentir na minha alma uma paz suave e doce ; era paz
celeste. Parecia-me deixar o mundo, ir gozar o Céu. Fiquei por muito
tempo como que a dormir um sono terno, aquecida por um calor, que me
queimava o coração e irradiava todo o peito. Principiou Jesus a
falar-me :
— “Minha filha, não vives a vida do mundo, desprendeste-te de tudo o
que é dele. Vives no Céu, vives do que é divino. Os teus caminhos
são caminhos de Cristo ; é por isto que não és compreendida. Olha,
meu anjo, é sublime a tua missão ; é a mais rica das missões. Eis a
razão porque és odiada e perseguida ; odiada por Satanás, pelas
almas que lhe roubas. Perseguida pelo mundo, porque não compreende a
vida que vives, o que é a minha vida nas almas. Não temas, filhinha,
não te é roubado o tesouro imenso que com minha Mãe te entreguei. É
só para teu maior martírio, proveito para as almas e grande glória
para Mim. Fechei-o com Minha bendita Mãe com chaves de oiro ;
selámos-te o coração com selos divinos. Que dor para o Meu divino
Coração ao ver a tua dor. É preciso estudar, aprofundar, para
compreender a vida de Cristo nas almas. Quando te criei, criei-te
com tal perfeição, perfeição que só podia purificar e desempenhar a
missão que há de mais sublime. Assim como já destinei as almas que
te haviam de guiar, almas que compreendem, almas que só vivem a
minha vida, a vida íntima comigo. Os que cuidam de ti, cuidam de
Mim. Era Meu desejo que todos os meus discípulos estudassem estas
ciências divinas. Não as estudam, não as compreendem. Dou-lhes as
luzes precisas ; tentam apagá-las. Em vão : nada conseguem. Em todos
os tempos necessitei de vítimas, agora mais do que nunca necessito
delas. Já te destinei, minha redentora, para nesta época vires ser
imolada, época em que a humanidade se mergulhou num mar imenso e
lodaçal de vícios. É o que sentes a roubar o mundo. É o vício que
pode mais que o homem ; é o vício ladrão de tudo o que é meu. Ó
pastorinha divina, rainha do mundo, sou Eu, Jesus, que te elejo, que
te elevo às alturas. Guarda, salva o que te entreguei. Apascenta o
rebanho no prado da pureza, no prado da caridade; da humildade e
sobretudo no do amor. Quem ama, e ama deveras, não ofende o seu
Amado. Ó lírio perfumado, açucena pura, irradia o mundo com os teus
aromas, com as tuas virtudes que são aromas celestes, aromas que
atraem a ti o rebanho que te confiei e que por ti vem a Mim e por ti
sobe ao Céu. Coragem ! Nada temas. A glória é Minha, o triunfo é
Meu. Em todo o tempo, foi a minha Igreja perseguida, como não há-de
ser agora aquilo que a Ela pertence, o que há de mais rico e de
maior nobreza ? Nunca assim imolei nem imolarei outra vítima ; nunca
recebi de nenhuma tantas almas nem volto a receber. És mãe, mãe dos
pecadores, rainha deles. Depois de Mim e minha bendita Mãe não há
como tu quem tenha sobre eles tanto poder. Coragem, minha estrela
cintilante, farol de toda a humanidade”.
Tudo
ouvi de Jesus sem dizer palavra. Ele a falar e eu a arder em fogo,
fogo consolador, fogo que me prendia mais ao Seu divino Coração. Ao
mesmo tempo, recebi um conforto que me levantava as forças que tanto
precisava para aguentar com a minha cruz. Ó meu Jesus, o que hei-de
eu dizer-Vos ? Quanto mais falais, mais se apodera de mim a minha
pequenez. Humilho-me, humilho-me, Jesus, tenho vergonha da minha
miséria, tenho vergonha de Vos utilizardes de mim para tão altos
fins. Trabalhai Vós, falai Vós, tudo Vos pertence e falais das
Vossas grandezas.
— “Ó
vilota querida, puro asilo onde habito ; habito em ti na terra, como
no Céu habitarás com meu Eterno Pai. És a minha Alexandrina
transformada em Cristo, só em Cristo”.
— Obrigada, meu Jesus, meu Rei de Amor !
24 de
Dezembro
Será
possível com este cansaço, com este sofrimento demorar neste exílio
muito tempo ? Meu Deus, se assim o quereis, a tudo resisto. O meu
cansaço é de sofrer, é de querer abraçar o mundo, apertá-lo num
abraço eterno. Queria vê-lo todo num hino de louvor a Jesus, num só
fogo de Amor divino. Não sei mais o que hei-de desejar, não sei onde
esconder-me com ele. Queria voar para o Céu e comigo levar o mundo,
todo o mundo, não deixar aqui criatura alguma mas não sei o que é :
quero subir com ele e uma força invencível, ou que me parece
invencível, arrasta-me para baixo, tenta roubar-mo. Ó meu Jesus, que
contas Vos darei eu do tesouro que me entregastes ? Nestas ânsias
dolorosas, mas de querer purificar-me e purificar o mundo, de amar o
meu Jesus e fazer que todo o mundo o amasse, sem saber como
consegui-lo para mim, quanto mais para a humanidade inteira,
principiei a chorar ; chorei lágrimas amargas, lágrimas que só o Céu
as via. Ofereci de novo o meu coração a Jesus, pedi-lhe que viesse
nascer a ele. Enquanto isto se passava, eu não via, mas a minha alma
sentia que o demónio bailava à minha volta. De longe a longe ouvia
alguma palavra feia das dele. Apavorisei-me. Vinha vindo a noite ;
para a minha alma não tinha havido dia. Enquanto que o demónio ao
longe me ameaçava e o medo mais se aproximava de mim com receio que
ele viesse fazer das dele, ouvi Jesus muito no íntimo do meu
coração.
— “Minha filha, não temas, tu não pecas, Eu não te deixo pecar ;
dá-me esta reparação, dá-me esta consolação que só de ti posso
receber. Combate com Satanás. Repara-me pelos crimes que na noite
que se aproxima vão praticar. Noite que devia ser tão santa e sou
nela tão ofendido ! Oh ! quanta inocência perdida !”
Jesus
dizia-me isto com muita dor e mágua. Deixei de O ouvir ; senti-me
mais forte. Passaram-se alguns minutos, não sei quantos, principiei
a ouvir o demónio com sua voz infernal a convidar todos os seus
camaradas para virem pecar comigo. Senti que eles obedeceram, vieram
todos desempenhar o seu papel. Pensei bem na morte. O coração não
tinha força para mais ; só por Nosso Senhor não morri. Custou-me
muito os nomes e palavras vergonhosas que ele me disse, mas
sobretudo o que me causou maior dor, foi o receio de pecar e as
blasfémias que ele disse contra Jesus e acusá-Lo como criminoso ;
isso é que eu não podia ouvir. Até tinha medo de ele dizer tais
coisas do meu Criador. Se não fosse o amor do meu Jesus e o amor às
almas; dizia-lhe um não. Sofrer, está bem, mas ver que Jesus ao eu
combater com o demónio também ouve dele coisas aterradoras. Oh !
quanto me custa ! Ai, a quanto se sujeitou Jesus por meu amor e por
todas as almas !
25 de
Dezembro
Os dias
de festa são sempre para mim de profunda tristeza. Esforço-me sempre
para consolação dos que me rodeiam mostrando-me alegre : a minha
alegria é fingida. Fito Jesus, a Mãezinha, elevo o meu pensamento ao
Céu e por amor aceito a dor. É por amor que a tristeza para mim é
alegria. Não olhando a terra, firmo no Céu, só no Céu, os espinhos
são rosas, a dor é doçura. À meia noite do dia de natal, não falando
da noite que me ia na alma, dores agudíssimas pareciam retalhar-me
todo o corpo. Não chorava, mas gemia ; só Jesus sabe quanto eu
sofria. Principiei a ouvir fogo e repique de sinos. Pedi que me
trouxessem imas imagensinhas do Menino Jesus. Colocadas sobre o meu
peito queria aquecê-las. O calor que lhe dei não era o que eu queria
dar-lhes ; queria queimá-las com fogo de amor. Queria dizer-lhes
muitas coisas e não sabia. Estreitei-as ao meu peito docemente e
continuei os meus gemidos. — Estou certa que Jesus os aceitou e não
ficou triste. Ninguém como Ele via quanto eu sofria ; ninguém como
Ele sabe que mesmo gemendo é por amor que gemo e quando mais não
posso. Não sei os minutos que se passaram, o que sei é que passei a
outra vida e ouvi Jesus no meu coração.
— “Nasci no presépio do teu coração, minha filha. É o Esposo que vem
à sua esposa, é o Rei que vem à sua rainha. Sou Rei do Céu e da
terra. Como estou bem aqui, ó rainha do amor. O presépio que Me dás
não é áspero como o de Belém, é fofo com as tuas virtudes. No te
presépio não sinto os rigores do frio ; sou aquecido com o amor mais
puro e abrasado. Tu és a minha estrela, estrela que guias o mundo
como outrora guiou os Reims Magos no caminho de Belém. Diz, minha
filha a todos os que cuidam de ti, aos que te são queridos, amam e
rodeiam que lhes dou abundância das minhas graças, um enchente do
meu divino Amor, um lugar reservado em meu divino Coração com a
promessa do Céu”.
Não vi
o Menino Jesus, mas enquanto que Ele me falou estava junto a mim uma
grande palmeira de Anjos, centos ou milhares de Anjos, muitos deles
com seus instrumentos desciam do alto e rodeavam-me. Tinha graça a
pressa com que desciam. No meio deles estava uma grande escada ; de
todos os degraus desciam para mim numerosos raios dourados. Eram
como setas a penetrarem no meu peito e Jesus dizia-me :
— “São
as tuas virtudes, são raios de amor divino. Recebe, é a tua vida”.
Aqueles
raios fortaleceram-me, davam amais luz do que o sol mais brilhante.
Vi tudo claramente. Não sei o tempo, mas foi demorada esta visão.
Desprendi-me a custo, ia como os que caminham e olham para traz,
dando a conhecer que querem alguma coisa. Eu desejava voltar ao
mesmo. Não voltei à visão, mas voltei à dor.
Veio o
dia ; dia sem luz e vida sem vida. Sempre a querer guardar com toda
a segurança o mundo dentro em mim continuei a minha alegria fingida.
Todos os mimos que recebi e carinhos de pessoas de tanta estima
passavam como se não fossem para mim. Ao terminar o dia disse para
mim : “Onde passei este dia ? Parece-me que estive morta para Jesus
e para todos quantos me rodeiam. Vivi mas não senti a vida. Sofri,
mas não foi minha a dor. Não vivi para Jesus, não senti que O
amava.”
Não sei
dizer melhor e nada digo do que me vai na alma. Ó minha triste vida
tão mal compreendida !
28 de
Dezembro
Sorrio
à minha cruz, mas ó meu Deus, com quanta agonia de alma. Vejo o
tempo da minha vida todo perdido. Parece-me que não vivi para Deus
nem para as almas ; passei no mundo como se não passasse. Que contas
darei ao meu Deus ? Anseio por sair deste exílio. E como hei-de
aparecer diante do meu Jesus de mãos vazias ? Sinto que nada fiz por
Ele nem para Ele. Estou mais gelada do que o gelo.
Depois
da Sagrada Comunhão, ao sentir-me assim tão gelada, ao ver-me tão
longe de Jesus apesar de O receber, a minha alma chora de tristeza e
dor. Sou como um cadáver que nada sente, pois a dor que sinto não é
minha, as lágrimas que choro minhas não são. O cadáver não ama nem
sente o amor com que é amado. Ó morte, ó morte, que tremenda és. Que
tristeza ! Morte do corpo e morte da alma. Por tudo sou esmagada,
esmaga-me o peso das humilhações, esmaga-me o peso do abandono e
desprezo, esmaga-se a dor angustiosa de guardar o mundo, de o não
deixar cometer nem um só pecado, de fazer com que todo ele ame a
Jesus com toda a graça e pureza. Esmaga-me o peso da ânsia sem fim
de entrar no Céu com o Universo inteiro a entoar a Jesus um hino de
louvor, um hino eterno. Ai meu Jesus, o que me espera ! Ouço ao
longe a tempestade que se espalha ao largo e outra que se aproxima.
A sua fúria vem ferir meu coração. Deixá-lo, deixá-lo sangrar. Tomai
conta Jesus, tomai conta do sangue que dele correr, é sangue
derramado por Vosso amor, é sangue que corre à procura das almas.
Quero salvá-las todas, todas. Ó prova, dura prova, mas amada prova ;
em ti vejo Jesus, em ti vejo a salvação das almas. Ai, tanto quero
ver junto de mim os que me são mais queridos e tanto medo tenho
deles. Estou sozinha, vivo sozinha. Ó meu Jesus, e quando me dais o
meu Paizinho espiritual ? Quando realizais as Vossas divinas
promessas ? Vivo da esperança e da confiança em Vós. Confio no Vosso
amor e na Vossa misericórdia infinita. É quinta-feira, triste
quinta-feira. Caminho morta para outra morte. Que medo, que pavor. É
já noite. A minha alma apavorada fugiu para um ermo, quer-se
sozinha ; está envergonhada fugiu para a solidão para aí chorar
lágrimas de maior agonia. Oh ! quantos sofrimentos ela vê para ela e
para o corpo, vê tudo, nada lhe é oculto. O demónio anda como os
ladrões a formar os seus assaltos, atormenta-me se dó nem piedade.
Nem posso pensar nas coisas que ele me diz, tão feias, tão
criminosas, contra mim, contra pessoas da minha maior estima e
contra Jesus que é o que mais me aflige. Afirma-me descaradamente
que ofendo a Deus e nesse ponto perece-me ele falar verdade. Chama
todos os demónios para virem pecar comigo e eles vêem com toda a
manha infernal. Que triste e doloroso penar. Parece-me que chego a
ir às portas da eternidade. Não sei como o coração não me abre o
peito com tanta força que bate. Quando me parece morrer é que eu
chamo mais facilmente por Jesus e pela Mãezinha : se não é com os
lábios é com o coração e com o pensamento. Mas é ao terminar da
luta, ao fim do perigo, pois antes o maldito raras vezes me deixa.
Quem poderá acudir-me ? Que socorro posso esperar a não ser do Céu ?
pobre de mim.
29 de
Dezembro
Não
desaparecem do mundo as sextas-feiras ! Ó meu Deus, corro para a
morte e a morte para mim ! Que dor esta tão angustiosa ! A minha
cabeça está dilacerada. O meu corpo com os maus tratos despedaçado ;
é só sangue, é uma chaga viva. É tal a aflição e dor da minha alma
que sinto e parece-me ver nela o desespero duma criatura. Por graça
e grande misericórdia do Senhor não estou desesperada ; sinto o
efeito da desesperação, mas estou calma e serena, sequiosa de mais
dor, sequiosa de mais purificação e mais amor. Só com isto o mundo
será salvo ; só com estas cadeias fortes o poderei prender. O sangue
corre, a vida vai fugindo ; foge para dar a vida, vai louva a salvar
o mundo Meu Jesus, dai-me a dor que eu tanto amo, dai-me a
purificação que eu tanto desejo. Guardai-me em Vós e na Vossa e
minha querida Mãezinha. Ouvi a minha alma num brado contínuo de
agonia pela dor que sente e de ânsias de Vos entregar o mundo.
Queria-o ver nas minhas mãos para vo-lo oferecer como o sacerdote vê
em suas mãos a Sagrada Hóstia e a oferece ao Eterno Pai.
— Jesus, olhai para mim, vede as ânsias tão agoniosas e imolai-me
como Vos aprouver para Vos dar amor e com ele a humanidade. Queria
dizer-Vos muito, mas como nada sei, nada Vos digo.
No meio
destas ânsias veio Jesus :
— “Minha filha, anjo da terra, flor mimosa, flor cândida do Paraíso.
Vem minha filha recolher mais uma prova do meu esposório contigo, da
minha união conjugal”.
Neste
momento Jesus tomou a minha mão beijou-me e acariciou-me e
estreitou-me docemente e Ele. Fiquei como que a nadar num mar de
gozo, num mar de amor. Jesus continuou :
— “Recebe a efusão do meu amor divino, recebe-o porque é a tua vida
e tu és a vida das almas. Coragem minha filha, mais um pouco, o teu
Céu está perto, agora está perto. Em breve a tua alma desprendida da
terra voará ao Céu como a pomba branca e pura voa ao seu ninho. O
teu ninho é o Céu junto do trono da Majestade divina ao lado da
minha bendita Mãe. Voa a rainha da terra para o seu esposo celeste,
para junto do Rei do Céu. É junto a Mim, minha filha, que tu vais
continuar a vigiar, a governar o teu reinado na terra. Não fica nela
herdeiro da tua coroa nem do teu reinado. A ti entreguei o reinado
do mundo, do Céu governarás. Quanto te deve o mundo por e que por
ele tens feito e por Eu o ter guardado no cofre riquíssimo do teu
coração. És um mar de dor, és um mar de amor. Estás transformada no
infinito, tens sobre as almas poder infinito. Quanto te é devedora a
humanidade, quanto te é devedor Portugal. O mundo devia estar
destruído. Foi para evitar males maiores que permiti haver ainda os
males presentes. Pede, pede de novo muita oração e penitência.
Coragem, minha querida jardineira, jardineira do jardim celeste,
agricultora divina. Semeia, colhe para Jesus. Semeia graça, semeia
pureza, semeia amor. O amor é a mais bela flor. Quem ama é puro, não
ofende O seu Amado. Quem ama sofre por amor. Ó filhinha amada, a tua
dor tem sido a salvação das almas, guia e amparo dos pecadores.
Escuta, filhinha, escuta os anjos a entoarem-me louvores e um Te
Deum de acção de graças pela vítima que escolhi, pela redentora que
ao mundo dei. Todo o Céu vê a glória que me deste, todo o Céu vê o
valor da tua dor. Escuta, escuta as vozes celestes. Este louvor é ao
terminar o ano. Este louvor é dado em teu nome e em nome dos que
sofrem contigo, dos que cuidam de ti e da minha causa divina. Dá a
todos o meu agradecimento divino. Olha o que te digo na última
sexta-feira deste ano, na última que te falo e renovo a tua
crucifixão : não te enganas, nunca te enganaste. Anima-te, tem
coragem para a luta. Antes da tua morte todas as minhas divinas
promessas serão compridas. O esposo que ama a sua esposa não a
engana nem a deixa enganar”.
Quando
Jesus me mandou escutar ouvi as vozes celestes dos anjos, vozes tão
harmoniosas que arrebatavam a alma ao Céu. Só a alma podia ouvir, só
ela podia gozar. Jesus disse-me :
— “É
neste arrebatamento, num êxtase de amor saído por entre a dor que
voarás ao Céu”.
— Obrigada, meu Jesus, abençoai esta pobrezinha que tão miserável e
pequenina à vista da Vossa grandeza desaparece. Dai-me força, dai-me
amor.
31 de
Dezembro
Quase
todos os dias ora dum lado ora do outro vêm espinhos, por vezes bem
agudos, cravarem-se em meu coração. Recebo-os sempre com alegria
embora com custo : manda-os Jesus ; sejam bem-vindos ; são mimos do
Senhor. São mimos que ferem ! Também eu, por minha miséria, cravo em
Jesus espinhos muito mais dolorosos e Ele é inocente eu não sou.
Estes pensamentos animam, dão-me coragem para abraçar por amor tudo
o que de Jesus vem. Que vida tão dolorosa a minha ! Meu Deus, como
são variados os sofrimentos que me dais ! Passo horas do dia e da
noite em ânsias dolorosas de guardar o mundo. Jesus modificou agora
estas ânsias. Umas horas quero gradá-lo, mas é como se fosse
obrigada. Não sei pelo quê, não sei o que é : quero prendê-lo e não
sei de onde me vem a força para o fazer, não é por mim, alguma coisa
me obriga ; parece-me ser o amor que se sujeita a prendê-lo. Ao
mesmo tempo faço-o com repugnância, parece-me que ele era digno de
esquecimento e desprezo. Vêm outras horas que tenho tanta pena de
sentir pelo mundo a repugnância e o aborrecimento e avivam-se em mim
vivos desejos de o conquistar e de o possuir, enlouqueço-me tanto de
amor por ele que me faz lembrar um pai a quem lhe fugiu o filho e
voltando a casa o pai em vez de o castigar abraça-o e cobre-o de
carícias. Eu louca de alegria a querer abraçar toda a humanidade
chego a exclamar “Ó mundo, estou louca de ti ; ó como eu te quero,
como eu te amo. Em ti vejo Jesus”.
Tantas
coisas queria dizer destas ânsias que me consomem. Como pode ser
isto, amar o mundo, aborrecer o mundo, querer possuí-lo se eu quero
deixá-lo.
— Ó meu
Deus, ó meu Jesus, ponde em mim os Vossos olhares, ampara-me, assim
vencerei !
Durante
a noite fui assaltada, mas assaltada tormentosamente. Já durante a
tarde a minha alma sentia que ele andava a rodear-me. De longe a
longe ouvia dele palavras de ameaça. Veio então não sei a que hora
nem o tempo que ele demorou. Sei que foi muito. Convidou o inferno
para vir atormentar-me. Dizia-me o que há de feio, feio e horroroso.
Durante a luta passei por vários abismos ; uns mais espaçosos,
outros mais fundos. Mas apesar de muito feios ainda sobressaiam
neles uns raiozinhos de luz. O último foi o mais aterrador ;
fantasmas negros o rodeavam. Eram tantos, tantos demónios, mais
negros que o carvão, em várias formas e caras tão feias. E eu
prestes a cair neles. Parecia-me perder a vida, o coração batia
aflitivamente. O suor banhava-me o corpo. O maldito afirmava-me
pecar e que gostava de pecar. A hora era grave. Meu Deus, que tanto
perigo. Pelos meus lábios saíam zunidos como tempestade furiosa. Eu
mesma dizia coisas. Ai que raiva a do maldito. Ouvia o ranger dos
dentes e querer-me estrancinhar. Só então eu repetia :
— Ó
Jesus, ó Mãezinha, ó Mãezinha, valei-me, sou a Vossa vítima, sou a
Vossa escrava. Ouvi então Jesus :
— “Desempenha ó anjo do Céu a missão que te confiei. Toma em tuas
mãos a minha esposa querida, o meu anjo em carne, leva-a, coloca-a
no seu lugar. Não pecaste, minha filha, convence-te, não pecaste.
São altos os juízos divinos. Escolhi-te para reparares por todos os
pecados. Se não fosse a tua reparação quantas almas se perderiam. As
que caíssem neste último abismo nunca mais de lá saiam. São os que
preferem o pecado Deus ; pecam com toda a malícia, com todo o
conhecimento. Antes querem o prazer do que possuir a Deus. Eis a
razão porque não querias nas tuas mãos o terço”.
Por um
acaso, quando principiou a luta possuía nas mãos o terço da
Mãezinha. Durante o combate não o quis, arrumei-o. Continuou Jesus :
— “Os
abismos que ainda possuíam luz são aquelas almas que pecam por
fraqueza, mas temem o pecado, querem vencer-se. Em ti vence o amor,
a tua loucura por elas. Não pecaste, anima-te, minha pomba bela”.
Terminado isto, estava já na minha posição, confiei em Nosso Senhor,
mas fiquei muito dorida do que se tinha passado. Sempre a causa do
meu sofrimento é o medo de pecar.
Logo
que pude, cedo ainda, principiei as orações da manhã. Sentia que
Jesus não me ouvia palavra, mal as pronunciava logo morriam. Via
todos os sofrimentos passados durante o ano sem nenhuns me
pertencerem nem nenhumas orações, se me pertenceram, mal nasceram
morreram. Estava a terminar o ano e eu sem nada ter que dar a Jesus.
Principiei a ver de tal forma a minha miséria, o meu nada !
Recordava o meu Pai espiritual prisioneiro e a sofrer tanto por
minha causa ! Pensava em todas as luzes que me foram tiradas e que
tanta falta me fizeram para me guiarem e aproximarem de Jesus.
Pensava no meu médico assistente e pessoas queridas que tantos
cuidados, carinhos e amor me têm dispensado. E eu assim, tão nada e
miserável ! Não pude resistir, principiei a chorar.
— Ó meu
Jesus, ai, tantos cuidados e passos perdidos por minha causa ! Ai, o
que eu sou e a quem eles pensam fazer as coisas. Recompensai-os, meu
Deus, enchei-os de Vós, do Vosso amor.
Foi um
dia cheio de amargura. Recebi alguns mimos que me deram alegria.
Quando a alma principiava a senti-la, a saboreá-la, logo vinha Jesus
com um corte separar tudo. Faça-se a Vossa vontade, ó meu Amor, por
Vosso amor.
À meia
noite agradeci a Jesus todos os benefícios recebidos durante o ano e
tudo o que me tinha feito sofrer. Pedi para que rezassem comigo um
“Te Deum” em acção de graças. Terminado ele, acrescentei :
— Obrigada por tudo, meu Jesus, por toda a dor e por toda a alegria.
Perdoai as minhas ingratidões para convosco. Que me espera agora no
novo ano ? Mandai-me o que quiserdes, Jesus, que tudo aceito, mas
não me falteis com a graça precisa e dai-me todo o Vosso amor. |