1 de Novembro – Dia de todos os Santos
Logo de
manhãzinha ao preparar-me para receber o meu Jesus encarreguei-os de
amarem por mim a Jesus, à Mãezinha e toda a Santíssima Trindade.
Duvidosa de ter ofendido o meu Jesus pedi-lhe muito perdão de todos
os meus pecados e pedi à Sãozinha que lhe pedisse também perdão porá
mim. Queria fazer uma comunhão muito fervorosa e santa. Veio Jesus,
avivou em mim os desejos de mais e mais amor. Envergonhadíssima da
minha miséria não podia fitar os meus olhos em Jesus nem sabia
conversar com Ele. Meu Deus, meu Deus, que vergonha ! Queria
esconder-me de baixo de todas as montanhas. Assim o fiz : corri para
elas e todas caíram sobre mim. Então pude dizer : Ó meu Jesus, o meu
amor não tem outro fim senão o de amar-Vos ; quero amar-Vos, quero
amar-Vos, mas não com o fim de parecer bem, nem de agradar às
criaturas. Clamei sempre o amor de Jesus debaixo do peso esmagador
de tão tremendas montanhas. Queria viver a vida do Céu, recordar o
que ia lá em cima em tão grande dia, queria festejá-los e com eles
louvar ao Senhor, mas não podia, só clamava : quero armar-Vos Jesus.
O meu brado não se fazia ouvir, não ecoava cá fora, perdia-se,
abafava-se debaixo dos rochedos. Que fazer meu Deus! Aceitar com
alegria tudo o que vem das Vossas benditas mãos. Sou Vossa e tudo é
para Vós. De vez em quando entremeavam-se por entre estes desejos de
amor ameaças do demónio.
Chegou
a noite, veio ele todo furioso. Usou de todas as manhas : nomes,
feios nomes e lá arranjou de me fazer sentir na minha alma os
desejos de pecar. São coisas dele porque eu pecar não quero, antes
milhões de infernos do que a mais leve falta ! Eu parecia-me sorrir
de contentamento ao que ele me dizia ; mas não, meu Jesus, não ! O
caso era só para lágrimas, muitas lágrimas.
Prolongou-se a luta ; já não podia mais. Bradava ao Céu sempre que
podia. Queria ter sempre em meus lábios o nome de Jesus e da
Mãezinha e a oferta de vítima, mas não tinha forças para o fazer
continuamente. Ainda ele estava furioso abriu-se à minha frente um
medonho abismo. Ao mesmo tempo ouvi a voz de Jesus, mas com tanta
doçura que fez desaparecer o cansaço do meu corpo e tudo o que era
dor da minha alma.
— “Vês
minha filha, liste abismo ? Se não fosse a tua reparação tinham
caído nele muitas, muitas almas ! Coragem com o sacrifício que te
peço. Aparta-te maldito para o inferno, deixa descansar a minha
virgem inocente, a minha vítima amada. Não pecas minha querida, não
pecas minha pomba bela; Descansa inclina-te para mim”.
Tomou-me Jesus em seus Santíssimos braços uniu o meu rosto ao d’Ele,
cobriu-me de caricias, fiquei sossegada e sem sentir nenhum cansaço.
O maldito lá se foi desesperado. O que seria de mim se Jesus não
vinha em meu auxilio.
2 de
Novembro
Lutei,
lutei sempre, clamei, bradei ao Céu. Que triste dia ! No cimo da
mais alta montanha bradava por socorro com toda a dor da rainha
alma. Parecia-me que cá de baixo toda a humanidade me fitava,
fitava-me sem compaixão. Não houve quem se compadecesse da minha
dor. Clamei por Jesus e pela Mãezinha : nem ao menos do Céu me veio
conforto. Parecia-me a minha alma rasgar-se em pedacinhos. A dor
destruía-a assim como destruía todo o ser que não me pertencia. Ó
meu Deus, não posso viver aqui. Ó Jesus , ô Mãezinha revivem em mim
as ânsias de Vos amar, chamo por Vós, não Vos vejo, não Vos ouço,
parece-me que não existis. E eu não conheço o amor. Ó meu Deus, como
posso eu amar sem conhecer o amor, e amar aquilo que não existe ?
Jesus, Mãezinha, creio que existis, confio, confio. Que este
sofrimento sirva para reparar por aqueles que pecam na Vossa divina
presença e com tanta malícia como se Vós não vísseis nem
existísseis. Era já noite ; de um momento para o outro sem nisso
pensar senti-me no Horto prostrada por terra em agonia. Senti então
umas saudades tão grandes da minha crucifixão que mal pude resistir.
Saudades, tristes saudades. Temia aproximar-se o dia da sexta-feira
por causa do êxtase. Mas oh ! que amor à minha crucifixão. Temo os
colóquios com Jesus talvez pelo muito que me têm feito sofrer os
homens não Jesus, mas sinto umas saudades de morrer de tudo o que
Ele me fez passar da Sua santa Paixão. Aquilo que era de horror
quando a tinha é-o agora de saudade por a não ter. O demónio
ameaçou-me muito, mas desta vez não veio com os seus ataques
violentos. Bendito seja o Senhor.
4 de
Novembro – Primeiro sábado
Passei
horas de tremenda luta com o demónio durante a noite. Disse-me tudo
o que há de pior ; afirmou-me que não era amada por Jesus nem por
Maria. Que eu pecava como queria e quando queria ; que era eu que
queria pecar e não ele que me fazia pecar. Fiquei muito triste,
quase que a não acreditar nas palavras de Jesus. Meu Deus se é assim
como podeis falar-me e dizer-me coisas tão lindas ? Novo esforço da
minha parte : confio, confio, meu Jesus, cegamente e sem limites.
Muito tímida principiei cedo a preparação para a minha comunhão.
Chegou Jesus, recebi-o. Ele não se apressou a falar-me. Passaram-se
alguns momentos, depois segredou-me :
— Minha
filha, flor mimosa de pétalas tenras, puras e perfumadas, canteiro
do meu jardim onde estão enraizadas as flores mais aromáticas das
mais heróicas virtudes. São rosas minhas, são flores divinas. Vem
meu anjo, vem descansar no teu Jesus, na tua querida Mãezinha.
Confia, tu não me ofendes, confia, a tua luta é do demónio não és tu
que a queres sou Eu que de ti exijo tal reparação» ; só duma virgem
casta e pura a posso exigir.
Ouvi ao
meu lado direito uma voz muito terna, muito meiga que dizia :
— Dá-me
meu Filho a tua e minha filha para em meus braços descansar.
— Aceita minha Mãe é minha e é tua ; acaricia-a, enche-a do teu
amor.
Jesus
colocou-me nos braços da Mãezinha Ela abraçou-me, acariciou-me tão
meiga e docemente ! O meu rosto unido ao d’Ela, coberto de ternura e
carícias... posso dizê-lo : nunca me senti assim ; gozei já o Céu.
Parecia-me estar envolta numa nuvem. Mãezinha, Mãezinha, que
felicidade a minha o que será gozar de Vós eternamente no Céu !
— Ó
minha filha, ó amada do meu Jesus, confia, confia ! Está para breve,
muito breve o teu Céu, o teu gozo eterno. Confirmo minha filha as
palavras do teu e meu Jesus. Tu não O ofendes. Compadeço-me de ti ao
ver-te em tão tremenda luta por saber quanto amas a pureza ; é por
isso que te amo e te ama Jesus. Ele precisa da tua reparação. Se
soubesses como Ele é ofendido na virtude da santa pureza !
Acariciou-me de novo e Ela mesma me entregou a Jesus.
— Aceita meu Filho a tua filha. Dá-lhe agora o teu amor, acaricia-a
tu.
Jesus
abrasou-me em seu amor, acariciou-me também.
— “Minha filha, tem coragem, enche-te de Mim para lutares. Tenho o
meu divino Coração tão ferido ! Não posso mais com os crimes da
impureza. Olha fulanos e fulanos”.
Nomeou-mos, novos e velhos, mulheres e homens entre eles alguns
sacerdotes.
— “Quando vierem junto de ti diz-lhes que estou ferido, magoado,
muito magoado. Chama-os, atrai-os para Mim. Diz, minha filha, ao teu
Paizinho, ao encarcerado cativo por meu amor e amor das almas, são
espinhos causados por eles, diz-lhe que por ti lhe dou todo o meu
amor, graças e riquezas, que tudo é dele. Diz-lhe que sou o mesmo
Deus, não falto às minhas divinas promessas, que ele vai ser
libertado, de tudo libertado, posto em liberdade. Diz o teu médico
que continue deveras a cuidar de ti, de ti e da minha divina causa.
Dá-lhe os meus agradecimentos, diz-lhe que a vitória é dele e de
todos os que trabalham com ele. Para todos o meu amor, a minha paz e
agradecimentos. Diz-lhe que como prova do seu trabalho incansável
lhe prometo o meu amor e a salvação a todos os que são dele. Maior
prémio ainda : prometo-lhe à hora da morte o arrependimento das suas
faltas, ficará puro, não irá sofrer ao purgatório, passará a gozar o
Céu. Ainda terás esta promessa para mais”.
Acariciou-me de novo a Mãezinha com Jesus. Chamou-me Ela :
— “Ó
estrela luminosa e cintilante, com teu brilho dás luz ao mundo e
guias as almas para mim e para Jesus. Dá em meu nome o meu amor
àqueles a quem tanto amas porque também Eu os amo com Jesus”.
Mãezinha, Mãezinha, Jesus meu Amor, muito obrigada ! Nem com uma
eternidade de joelhos Vos agradecia tão grandes benefícios.
Custou-me tanto a desprender de Jesus e da Mãezinha ! Parecia não
haver nada que cortasse as cadeias de amor que a Eles me prendiam.
Vim para a dor quase logo para a imolação, para o sacrifício. Sou
vítima, sou de Jesus, sou das almas. Morro por não amar, morro
depois de tudo isto por não sofrer. Ó cruz, ó cruz, ó bendita cruz !
7 de
Novembro
Não
falo de mim nem da dor, pois não tenho vida e sinto que a dor não é
minha ; não tenho nada, nada me pertence. Ó minha cruz amada, só
Jesus te conhece ! Ó meu Deus, não posso estar aqui. Que horror, que
tormento este ! Quando chega a hora de receber o meu Jesus é tal a
vergonha que sinto, que nem sei exprimir. Queria recebê-lo, mas que
Ele não soubesse que descia a mim. O horror das minhas misérias, do
meu nada são a causa desta vergonha. Não posso lembrar-me que a
maior grandeza, o amor sem igual desce à maior frieza, ao maior
abismo de miséria, ao nada que não existe. Todo este sofrimento
quase me obriga, quase me convence a não acreditar nos êxtases, nem
em Jesus, nem na Mãezinha. Como pode Jesus e a Mãezinha amarem esta
imensidade de misérias ? Como pode Jesus amar-me com tal excesso de
amor ? Como pode Ele chamar-me poderosa e dizer-me coisas tão
lindas ? Que bondade a de Jesus ! E que confusão a minha ! Quero
olhar para o Coração Santíssimo de Jesus e não posso, vem-me esta
dúvida : se eu estou enganada ? Depois da minha morte, quando todos
estivermos no Céu, todos sabem que nada era como eu dizia. Acto de
fé : Creio, meu Deus, eu creio, eu creio ! Sois Vós, sois Vós que me
dizeis tudo ! Não me deixais enganar assim como Vós não Vos
enganais. Ó meu Jesus, não pode ser como me parece, as minhas
dúvidas me obrigam a crer. O Céu não deixa de ser Céu. Se eu me
sentisse envergonhada, lá por ver que a minha vida tinha sido de
ilusões, sofria, deixava a Vossa Pátria de ser um gozo completo.
Confio, Jesus, eu não me engano. Tende dó de mim. Vede o martírio da
minha alma. Queria olhos para chorar lágrimas de profundo
arrependimento, e não as tenho. Queria vida para só a Vós servir ;
não possuo ; queria coração para Vos amar, e não é meu. Que fazer,
Jesus ? Entregar-me a Vós, à Vossa infinita misericórdia que tudo
perdoa e encarregar todo o Céu de Vos amar por mim. Ó Céu, ó Céu,
ama, ama em meu nome o teu e meu Criador. Ó Jesus, dá-me o teu
bendito amor para que com ele eu te amar e à Mãezinha querida.
No meio
destas ânsias de amor e de dor dolorosa das minhas culpas, bateu
asas o divino espírito Santo no mais íntimo da minha alma. Procedeu
para comigo como as avezinhas para com os filhinhos quando estão no
ninho. Com o seu bico de fogo alimentou o meu coração e depois
escondendo-o dentro em meus lábios, alimentou todo o meu ser. Senti
nova vida, podia amar e servir o meu Jesus. Estes momentos são pouco
duradouros ; depressa volto à minha cruz, depressa deixo de ter
vida. Mas é bem unida à cruz, ferida com os mais agudos espinhos que
eu quero bradar sem cessar : amo-Vos, Jesus, fazei que este brado de
amor ecoe no mundo inteiro para que ele só conheça o amor e dele
desapareça tudo o que é ofensa para Vós. Jesus, valei-me,
defendei-me das lutas de Satanás. Sou por ele tão humilhada !
Trata-me como a criatura mais vil, mais imunda. Que lições tão feias
ele me dá ! Atormenta deveras a minha alma. Diz-me :
— Se
queres consolar Jesus, não faças nenhum tratamento, olha que Ele não
quer. Diz àquele fulano (e chamou-lhe um nome feio) que não queres
que ele venha cá mais.
Uma vez
que o médico veio visitar-me e levou o carro por um caminho que não
era costume, ele conseguiu fazer-me sentir na minha alma um grande
desastre ; o carro destruído e ele sem vida, todo em pedaços. Ele
batia palmas, dançava, dava gargalhadas e dizia-me :
— Olha
a desgraça daquela casa ! Foi a recompensa que ele recebeu das suas
vindas aqui.
Mas
isto misturado com nomes feíssimos. Aproveitava todas as ocasiões de
atormentar a minha pobre alma. Nestes dias que a esposa dele esteve
em perigos de vida, ele encontrou uma boa ocasião de me fazer
sofrer. Dizia-me a noite passada :
— A
mulher daquele (e usava o mesmo nome feio) não tem vida até amanhã.
Olha a recompensa que lhe deste de tanto trabalho. Dizes que és
poderosa : salva-a. Ele agora abandona-te, está convencido da
verdade.
Queria
atirar-se a mim desesperado ; como estava preso, não podia.
Mostrava-se então satisfeito com gargalhadas, gestos maus e com
palavras indecentes. Eu queria convencer-me que era falso o que ele
me dizia, mas era-me quase impossível. Ó cruz do meu Jesus, eu te
abraço e te quero. Ó meu Deus, eu confio em Vós, sou a Vossa vítima.
O demónio não sabe o futuro : como pode ele dizer-me isto ? Confio
em Vós ; o que é dele é mentira. Jesus, é por amor que me deixo
imolar, é por Vós e pelas almas que tudo aceito. Custa muito mais a
Vós verdes as almas irem para o inferno. Dai-me a Vossa força
bendita : com ela não temo o sacrifício.
9 de
Novembro
A
agonia da minha alma é extrema. O demónio não tem vindo com os seus
combates. Foi por obediência que eu disse a Jesus que até nova ordem
não permitisse que ele viesse. Um dia antes de receber este mandato
já ele não veio ; eu não sabia a ordem que vinha, mas sabia-o Jesus,
e obedeceu ― bendito Ele seja ! ― em tudo me dá exemplo ! Oh ! Quem
me dera imitá-lo ! Contudo, não deixa com todos os rodeios o maldito
de ver se consegue tirar-me a paz, levar-me ao desespero. Vem sobre
mim como um ladrão que assalta uma casa ; vem de repente e só para
apanhar o roubo faz barulho. Não me toca, nem usa as manhas do
costume, é só com palavras e bafejos assustadores.
― Pecas
quando tu queres ; queres mostrar-te virtuosa e obediente, e nada
disso tens ; és a criatura mais criminosa, odiada e amaldiçoada por
Deus, condenada ao inferno. Eu cá te espero em breve ; hei-de
destruir-te esse corpo. Impostora ! Queres passar pelo que não és !
― Ó meu
Jesus, só quero a Vossa vontade, tudo me faz sofrer. Que pavor sinto
na minha alma ! A noite em que estou mergulhada não deixa os meus
olhos verem o azul do firmamento. Parece-me não existir céu, nem
Jesus, nem Maria. Ó meu Amor, vede a agonia que sinto. Eu quero
dar-Vos tudo, tudo quanto me pedis, mas ai ! meu Jesus, se eu
tivesse vontade quando exigis de mim alguns sacrifícios, bem vedes
que é verdade o que Vos digo, preferia durante esse tempo estar no
inferno. Não tenho querer, aceito ; o que tu queres, meu Jesus,
quero eu também. Se a minha vontade existisse, não escrevia mais
letra a dizer os sentimentos da minha alma nem de tudo aquilo que me
dizeis. Gostava que morresse o meu nome e tudo aquilo que em existe.
São tantos os espinhos que me ferem ! O peso das humilhações
esmaga-me. É no meio disto que eu quero amar-Vos. Inventai, Jesus,
maios para eu Vos amar. A ciência humana tem para o mundo tantas
invenções, e para o Vosso divino Amor não inventam eles nada !
Jesus, quero amar-Vos : ensinai-me, quero viver sempre no escola do
amor. Aqui não posso, aqui não sei amar-Vos, só no Céu, só no Céu eu
compreenderei tudo, só lá poderei amar-Vos com o amor que desejo.
Quando chegará ele ? Quando será o dia da minha partida ? Quando
será o dia que da morte passo à vida ! Ó Jesus, não vo-lo peço, não
quero faltar ao que prometi ; dai-mo quando Vos aprouver, mas dai-me
já amor, amor, amor que me queime e faça morrer de amor. Meu Deus,
que distância me espera de Vós !... As minhas misérias causam-me
terror. Perdoai-me, dai-me uma confiança ilimitada, deixai-me
esconder para sempre em Vós para só a Vós ver e amar.
14 de
Novembro
Para
ditar os sentimentos da minha alma tenho que fazer violência sobre
mim mesma. Parece-me que vou esforçada para o lugar do martírio, que
deveras me atemoriza. Mande-me a obediência, custe o que custar,
Jesus, aceitai mais este sacrifício.
Que
dias angustiosos tenho passado. Não encontro Jesus nem a Mãezinha,
por mais que os chame e vá à sua procura. São variados os meus
sofrimentos. Em algumas horas anda o meu espírito a vaguear pelos
ares sempre por entre as trevas mais aterradoras sem encontrar onde
poisar para descansar um só momento. Quer subir, subir, chegar ao
Céu, mas não vê, não o encontra, já não existe. Não está lá Jesus
nem a Mãezinha, não ouvem o brado que os chama, não vêem as ânsias
nem o martírio deste pobre espírito. Ó meu Deus, tudo perdido ! Ó
Jesus, para que é tanto sofrer ? Já não há Céu, nem almas para
salvar, tudo deixou de existir. Ó Jesus, sou sempre a Vossa vítima.
Confio na Vossa existência, confio no Céu onde estais e que a mim me
espera para Vos amar e gozar. Tristes horas, tristes dias os do meu
viver. Ó santíssima Vontade do meu Jesus, quero-te, amo-te,
abraço-te num abraço eterno. Transforma-se a minha agonia. Horas
horrorosas de triste confusão. Morre a minha alma. Ó horror, ó
horror, tremendo horror ! Meu Deus, como é isto ! Morreu a minha
alma, morreu tudo o que me pertencia ! Foram as misérias, as
maldades, os crimes vergonhosos do meu pobre corpo que lhe causaram
a morte. Sem alma, sem vida, sem nada como posso eu estar aqui ? A
quem pertence esta dor, esta agonia ? Não sei, Jesus. Ai, que triste
confusão, é quase um desespero. Ó Jesus, ó Mãezinha, o que será de
mim se não vindes em meu auxílio ? Se me faltais Vós, quem poderá
acudir-me ? Sangue de Jesus, dores da Mãezinha, sede a minha força
neste martírio ; estou nele por Vosso amor, estou nele pelas almas.
Não posso conformar-me com a morte da minha alma ; sinto querer
revoltar-me contra Vós. Lembro-me os condenados do inferno. O que
será este martírio toda a eternidade ?
Horas
da noite alerta numa união contínua com Jesus. As suas prisões de
amor são as minhas prisões, sempre consumida em ânsias de o amar.
Tudo em silêncio e eu com Ele. Não estais só, meu Amor, eu estou
convosco, amo-Vos, sou toda Vossa. Com uma lâmpada a arder, fito o
Coração Santíssimo de Jesus e a Mãezinha querida ; peço-lhes
bênçãos, graças e amor para mim, para os que me são queridos, até
para o mundo inteiro, por todos os quero amar. Falta-me a coragem,
não tenho amor, e amar a quem ? Aterram-me as minhas misérias. Que
vergonha, que confusão ! O peso das humilhações cai sobre mim. A
minha alma sente as censuras, os rumores das tempestades lá ao
longe. Caminho a custo, atemorizada. Espinhos sem conta, uma chuva
deles caiem sobre mim. Alma, coração e todo o corpo ficam
dilacerados, banhados em sangue. Olhei para trás, não vi o passado,
todos os caminhos que trilhei desapareceram. Meu Deus, que
destruição ! Á minha frente uma medonha montanha ; impossível, não
posso subi-la, não posso recuar atrás nem ao menos um passo. De
repente, senti-me cair de joelhos, de mãos postas, olhos no alto
invoquei o nome de Jesus e da Mãezinha. Gritei, gritei do íntimo da
minha alma. O meu brado não subia acima, escondia-se por entre os
rochedos da montanha, ensopava-se no meu sangue e nas minhas carnes
retalhadas pelos espinhos para ali morrer comigo. A agonia da alma
aumentou, já não podia bradar. Sem sentir nenhum auxílio, com a
aflição o coração bateu com tanta força parecendo-me ir perder a
vida. Oh ! É bem doce, meu Jesus, morrer por Vós ! Ou amar-Vos ou
morrer. Sofrer, sofre para Vos dar almas ! O divino Espírito Santo,
nas horas mais aflitivas bate as suas asas brancas e grandes como as
de uma águia fazendo-me sentir uma aragem suavíssima e animadora.
Com o bico grande introduze-lo no meu coração como para o retocar e
fortificar. Num destes momentos segredou-me Jesus muito do íntimo :
― “Estou aqui, minha filha, no paraíso do teu coração, no ninho das
minhas delícias. Sofre contente, que é para Mim”.
Reanimei um pouco, parta quase logo desfalecer. As minhas comunhões,
por maior esforço que eu faça, não são aquilo que eu desejo ; não
amo como queria amar, não sei falar a Jesus. Quando dum lado e do
outro vêm novos golpes a ferir-me, quando as provações uma e outra
vez vêm bater-me à porta, caio desfalecida. De repente levanto os
meus olhares para Jesus e digo-lhe :
― É
assim que eu aceito e quero o que Vós quereis. Como sou fraca,
Jesus, tendo dó, a minha grande miséria é digna de compaixão.
Retomo
as forças e dou mais uns passos para diante. O demónio não me tem
atormentado com os seus ataques, mas atormenta-me com as suas
mentiras e com palavras escandalosas. Vem perto de mim como para me
assaltar, ameaça-me :
― Hei-de destruir o teu corpo ― e acrescenta muitas coisas feias.
Pecas como queres e quando queres.
Fingindo-se satisfeitíssimo bate palmas, dança e dá gargalhadas.
― Olha,
fulano e fulano não voltam cá, abandonaram-te ; julgavam-te uma
inocente e és... (e diz-me o que há de pior).
Com
novas gargalhadas diz-me :
― Proibiram-nos de vira aqui.
― Meu
Jesus, não me deixa o pai da mentira ! É meu inimigo, mas também é
Vosso. Necessito de amparo, dai-me coragem, não me deixeis pecar.
Sou pobríssima, dai-me a Vossa riqueza ; sou ceguinha, dai-me a
Vossa luz. Sou Vossa, Jesus, e sou das almas.
15 de
Novembro
Voltaram os ataques do demónio. Nestas noites veio ele com toda a
raiva e furor. Atormentou-me deveras. O que ele me fazia sentir no
corpo não o digo aqui. Dizia-me :
― Olha
como estás, que esposa de Jesus ! Renuncia a isso. Diz-lhe que não
és sua esposa. Olha que Ele tem nojo de ti, não te quer.
Nomeava-me o nome de várias pessoas com palavras muitíssimo feias e
dizia-me que era com elas que eu queria pecar. Queria instruir-me no
pecado.
― Vou
consumir-te durante a noite. Hei-de destruir teu corpo. Podes viver
do prazer como vives do amor. Pecar é muito melhor ! Hei-de levar-te
ao prazer.
A
dançar, a dar gargalhadas, dizia-me :
― Olha,
o Padre Humberto e o médico não voltam cá : foram proibidos de virem
aqui. ― E acrescentava nomes feios.
O
demónio às vezes também fala verdade. O pressentimento do Rev.mo
Senhor Padre Humberto estar proibido de cá vir já eu o tinha há
dias. A luta seguiu-se por espaço de muito tempo. Ele fazia tal
ruído mais forte do que uma tempestade. Assustava-me. Estava cansada
de tanto lutar. Sempre que podia chamava por Jesus e pela Mãezinha e
dizia-lhes :
― Não
quero, não quero pecar !
Veio
Jesus em meu auxílio. Disse-lhe :
― “Aparta-te, maldito, vai para o inferno, deixa a minha vítima, já
estou contente com a sua reparação”.
Ele
fugiu espavorido. De longe a longe olhava para trás, revoltado
contra Jesus. Fiquei tão triste ! Ao principiar a minha preparação
para comungar, veio-me ao pensamento a luta passada. Atemorizei-me.
Ai ! Como hei-de receber o meu Jesus ? De repente, tudo esqueci;
pude recebê-lo e ficar muito unidinha a Ele. Horas depois, ao ver os
meus com alimentos que eu tanto gostava, senti saudades quase
insuportáveis de me alimentar com coisas que me soubessem. Calei-me,
não disse nada, ofereci a Jesus o meu sacrifício e as minhas
saudades para reparar por aqueles que só têm saudades do pecado e se
alimentam com coisas que ofendem a Jesus. Era já quase noite, recebi
notícias que mais me fizeram acreditar nos sentimentos da minha
alma. Meu Deus, que golpe profundo no meu coração. Não me foi dito,
mas levou-me a crer que havia proibição do Sr. Padre Humberto vir
junto de mim. Eu dizia :
― Faça-se a vontade de Nosso Senhor. O que Deus quiser ; bendita
seja a minha cruz.
Pude
erguer as minhas mãos, rezei o Magnifiact em sinal de agradecimento.
― Ó meu
Jesus, aceitai, mais tenho que Vos oferecer.
Senti
uma força em meu coração que não sei explicar. Queria cantar e
entoar hinos de louvor e agradecimento a Jesus. Rezei as orações da
noite com todo o entusiasmo e força. Haviam lágrimas, muitas
lágrimas junto de mim. Disse algumas palavras de conforto sem nada
adiantar; via a meu lado uma sepultura aberta para minha irmã,
parecia-me ter sido eu quem cavei a terra, quem lha abri. Jesus, sou
eu quem estou a sepultar minha irmã, mas é sem querer. O coração
então sangrava de dor, mas sangrava profundamente. Ó Jesus, ó
Mãezinha, tudo por Vosso amor e pelas almas. Fique eu sozinha,
deixem-me todos, mas não me deixeis Vós. Confio, confio.
16 de
Novembro
Ó meu
Deus, que tremendas são as minhas lutas com Satanás. Tanto me faziam
sofrer as minhas dúvidas e ainda agora mais outras causadas por ele.
Veio furioso contra mim. Que ruídos assustadores à minha volta. Usou
das suas malícias infernais, fez que eu sorrisse ao pecado e às
pessoas cúmplices nele. Não lhe dei palavra. Chamava por Jesus
sempre que podia, jurei-lhe não o querer ofender.
― Amar-Vos, amar-Vos, meu Jesus, esconder-me em Vós, em Vós
desaparecer para sempre ; sou a Vossa vítima : amar-Vos sempre,
pecar não.
O
cansaço da luta levou-me às portas da morte. E o demónio sem
compaixão usava das suas maldades cada vez mais furioso. Tantas
coisas que desconheço, tantas que nem por um só momento me vieram ao
pensamento. Lança-me tudo em rosto pondo-me por a mulher mais
desgraçada do mundo. Esgotada de tanta luta, senti no coração uma
dor como se me dessem uma facada. O coração que tanto tinha
palpitado de aflição deixou de respirar, ia perdendo a vida. Não vi
Jesus nem o ouvi ; senti na minha alma a sua divina presença. Fez
com toda a autoridade ao demónio sinal para ele se retirar ; e ele a
uivar fugiu desesperado. Ele não chega a tocar-me, ser-se das suas
manhas. São tão grandes e tão graves, meu Deus, se o mundo as
conhecesse não Vos ofendia tão gravemente.
Terminada a luta, ficaram as dúvidas, tremendo receio de ter pecado.
Um susto se apoderou de mim. Com os pressentimentos que tinha que
tanto me faziam sofrer, espero com ansiedade o Sr. Abade, a ver se
ele me dizia que lhe tinham dado ordem para não voltar a dar-me
Jesus. Chegou e nada disse, mas o receio continua. Virá ainda isso,
meu Jesus ? Tudo me roubam, só faltais Vós. Também tentarão
retirar-Vos de mim ?
― Ó meu
Deus, tudo mereço pelas minhas maldades e misérias. Eu estou certa,
meu Jesus, confio que se assim procederem, Vós suprireis por outra
forma ; bem sabeis que só vivo para Vós.
Chegou
o Sr. Padre e uma família de Mogofores. Custou-me muito ; novos
espinhos me feriram ao ver que não vinha aquele que tão bem
compreendia a minha alma. Procurei esconder a minha dor com o
sorriso. Manifestei os meus pressentimentos. Procuraram esconder o
mais que puderam. Compreendi tudo. Na despedida, não sei dizer que
dor, que golpe tão profundo. Senti em mim umas santas saudades pelo
roubo que me tinham feito pela maldade dos homens. Tudo entreguei a
Jesus, para todos pedi perdão e o seu divino Amor. Vontade do meu
Deus, oh ! Como et te quero e te amo ! Senti-me mais forte e assim
pude continuar a encobrir com o sorriso a dor que me ia na alma, que
me fazia despedaçar. Meu Jesus, tudo por Vós ! Vós ainda sofreis
mais !
18 de
Novembro
Se eu
não tenho vida, o que é que sofre ? Se eu não existo, porque me
perseguem ? Meu Deus, meu Deus, sinto que morri e estou aqui. Sinto
que passei para a eternidade e estou no mundo. Ó vida, minha triste
vida. O demónio não me deixa. Neste último ataque parece que
redobrou a sua malícia.
― Pecas
quando eu quero, como eu quero e levo-te aonde quero. Olha que vida
tu tens ! Que vida de sofrimentos, quando podias gozar.
Desengana-te, olha que Deus não te quer, abandonou-te, odeia-te, tu
és minha : podes pecar à vontade.
Dava-me
as suas falsas e vergonhosas lições. Prometia o mundo como
recompensa pelos crimes. Sem lhe dar resposta, eu dizia a Jesus :
― Ainda
que me desse o mundo por um só pecado, não o queria, meu Jesus,
ainda que soubesse que não me condenáveis, que não me pedísseis
conta, não, meu Jesus, nem uma leve falta : o Vosso divino Amor não
o merece. É por amor e não por temor que eu não quero ferir-Vos nem
desgostar-Vos na mínima coisa.
Eu
parecia-me um trapo imundo debaixo das manhas de Satanás. A fúria
atingiu toda a altura. Clamei muitas vezes : Jesus, Jesus,
Mãezinha ! De repente Ele apareceu, serenou a tempestade sem me pôr
a sua divina Mão, senti que foi só o seu Sopro divino que docemente
me levou às almofadas. Uma doçura e suavidade suavizou o cansaço do
meu corpo, a dor da minha alma e deu-lhe uma grande paz. Já muito
calma e serena, na posição de costume, disse-me Jesus :
― “Eu
vi, minha filha, Eu assisti, tu não pecaste, deste-me toda a
consolação. Só dum anjo em carne, só duma virgem pura, pura,
inocente, inocente, inocente posso exigir esta reparação, a maior
das reparações. Amo-te, amo-te, minha pomba querida”.
Fiquei
numa suavidade e par serena. Adormeci por um pouco, parecia-me
dormir com Jesus para agora combater com as minhas dúvidas,
tristezas e amarguras. Ó dor bendita, quanto te amo ! Em ti só vejo
Jesus e as almas !
21 de
Novembro
Vou
ditar o que me vai na alma para obedecer e não para satisfazer os
meus desejos. Tenho sempre diante de mim a enormidade das minhas
misérias passadas e receio sempre novas quedas. Que horror para mim
ver sempre o que tenho sido. Como posso eu, só miséria, dizer alguma
coisa ? Tristes, bem tristes são estes pensamentos e receios. A
minha confusão aumenta por me ver de mãos vazias, sem ver nada de
bem do tempo que já lá vai. Vou para a presença do meu Jesus sem
nada, mesmo nada ! Meu Deus, e sem vida para praticar o bem, e sem
possuir amor para Vos amar. Só para amar e praticar o bem é que a
vida é breve, “ que a não sinto, é que a não tenho. Para ir para
Vós, ó Jesus, para amar-Vos e bendizer-Vos eternamente, uma hora é
uma eternidade. Como posso estar aqui ? A minha vida fugiu para o
alto e de lá contempla o lugar onde deixou este pobre corpo enquanto
que ele pertence não sei a quem, enquanto que ele vai lutando e
sofrendo sofrimentos que só por alto sei exprimir. Vêm de dentro de
mim ondas de fogo, fogo abrasador ; sinto até queimar-me a língua.
Quantas vezes peço para me levarem aos lábios um pouco de água a ver
se consigo saciar minha sede. Impossível : os ardores dela
continuam, e quantas vezes mando retirar a água sem a poder engolir.
Oh ! quanto sofrem os condenados do inferno !
Nestes
três dias, só de domingo para segunda, fui atormentada pelo demónio
violentamente. Usou das maldades e palavras feias do costume. Vi
talvez dúzias deles à minha frente, em forma de esqueletos, e tinham
junto a eles lugares feíssimos do inferno. O malvado para
persuadir-me do que me dizia e fazia sentir, afirmava-me que não era
ele só que fazia mal, mas que eram muitos ; que ia ser uma noite de
pândega e de gozo ; e depois daquele combate seguiram outros, a um
por um. Foi muito demorado : estava banhada em suor. Bradei tanto ao
Céu. Parecia-me tal sofrimento nunca mais acabar ; e assim o diziam
as ameaças que eu ouvia. De repente não sei por ordem de quem,
desapareceram todos. E eu, por espaço de muito tempo, repeti se
cessar :
― Ai
Jesus, ai Mãezinha ! Meu Deus, se aqui me aliviam, ali me ferem ; se
aqui me amparam, ali me deitam por terra.
Sinto
continuar ao longe horrores de tempestade. Sinto corações revoltados
contra mim, tentam matar meu nome, tentam matar tudo que em mim
existe. Enquanto que dentro destas pobres paredes eu sofro a mais
não poder. Anda o meu nome a correr mundo como folha que a
tempestade arrastou. Sou humilhada, sou enxovalhada, sou perseguida
e caluniada. E por quem, meu Jesus ? Bem sabeis por quem. É por Vós,
só por Vós e pelas almas. Sinto este corpo numa massa de sangue,
sinto-o entre duas montanhas no meio das quais é esmagado até
desaparecer reduzido ao nada. E o brado de aflição não sobe ao cimo
das montanhas. Meu Deus, tudo morto, tudo perdido ! E eu sozinha,
sem ter ninguém. Não há um raio de luz que vá penetrar entre essas
duas montanhas no lugar do suplício. Quem poderá valer-me ? Não há
ninguém. Se houvesse e eu pudesse, iria de joelhos a pedir socorro e
que tirassem do cativeiro aquele que tanto sofre e que tanta falta
me tem feito e faz. Ai, quanta luz eu teria recebido e quanto amor
Jesus de mim a mais possuiria ! Se eu pudesse, iria de joelhos junto
daqueles que me fazem sofrer e perguntava-lhes :
― Onde
vos ofendi ? Como vos ofendi ? Dizei-me em quê, e perdoai-me ; e se
não vos ofendi, porque me tratais assim ? Por que razão me feris
tanto ? É preciso não ter coração.
Perdoai-me ó Jesus, e perdoai a todos porque não sabem o que fazem.
Se soubessem, não procederiam assim. Ai, Jesus, tende dó de mim,
parece-me não poder mais.
Há um
mês que não me confesso ; a minha alma tem fome, necessita da graça
da absolvição. Meu Deus, meu Jesus, compadecei-Vos da agonia da
minha alma, compadecei-Vos deste corpo que não é corpo e parece que
não é meu. Mergulhada nesta dor de que dou uma pequenina ideia,
esmagada com o peso de todos os sofrimentos sem poder respirar, num
abatimento que nem podia, nem me lembrava de pedir socorro ao Céu.
Foi de
noite, não sei a hora, vi a meu lado a Mãezinha de Fátima ; nã se
demorou, não me falou. Senti que Ela veio mostrar-me que não estava
sozinha, que Ela estava a meu lado. Libertada destas tristes
amarguras, entrou em mim uma suavidade, pude adormecer. Os homens
podem fazer tudo, podem sentenciar-me conforme os seus juízos, o que
não podem é priva-me destas visães, privarem-me de amar a Jesus,
tirarem-me a minha união com Ele, nem arrancarem-me do meu coração a
união com aquelas que Ele, e só Ele, permitiu, que Ele e só Ele
colocou neste coração tão pequenino no amor, mas tão grande nos
desejos de o amar e nas ânsias de só a Ele pertencer. Todos estes
sofrimentos, que só Jesus conhece a dor imensa que me causam, só Ele
os vê e compreende deveras, fazem nascer dentro em mim novos
desejos, profundas ânsias se só para Jesus viver, de só a Ele
pertencer e a Ele só amar. O peso da dor faz rebentar em meu coração
tão vivos e amantes desejos de caminhar por entre espinhos e
procurar Jesus e as almas como o trovão com o seu estrondo
estremecedor faz rebentar as águas na profundidade da terra. Sofro ?
Não importa. Amo Jesus : isso me basta. Pedi para me colocarem sobre
o meu peito, amparada pela minha mão a açucena que me foi oferecida
para levar para a sepultura. Senti-me tão alegre e ao mesmo tempo
umas saudades quase insuportáveis de ver chegado esse dia, o dia da
minha verdadeira felicidade, da minha verdadeira vida.
Nesta
manhã, ao receber o meu Jesus, senti-me tão abrasada no seu divino
Amor, tão unidinha a Ele e tão a sós com Ele, desabafei as minhas
mágoas. Pedi-lhe, como de costume, que não queria enganar-me nem
enganar ninguém. E Ele tão terno, tão cheio de compaixão por mim,
disse-me muito baixinho :
― “Nunca, nunca, minha filha, consentirei que te enganes. O que te
digo é para vos animar e provar que eram esses os meus desejos. O
meu tempo é breve ; é por isso que te digo ‘em breve’ e é em breve
que as minhas divinas promessas hão-de realizar-se ; o que te digo,
é assim que eu quero : os homens é que vão contra a minha divina
vontade. Eu venço e hei-de triunfar sobre eles”.
― Aceitai, meu Jesus, as minhas lágrimas : hoje não pude vencer-me.
Foram lágrimas de amor e de dor pelos meus pecados. Aceitai a minha
dor por todos os que a não têm, aceitai as minhas lágrimas por todos
os que deviam chorar as suas culpas e não as choram. Entrego-me à
cruz para sofrer e ao Vosso divino Amor para Vos amar.
23 de
Novembro
De
dentro de mim sai um brado de profunda aflição e extrema agonia. Não
sou ouvida. De mãos levantadas ao Céu uma e muitas vezes imploro
socorro. De nada valem os meus brados. Não existe quem possa
compadecer-se da minha agonia. Aterrorizada, louca de dor, sinto-me
no cimo da mais alta montanha, sem ver nada, porque a escuridão é de
densas trevas, continuo : Socorro, socorro ! Socorro de onde, se
nada existe, tudo é morte na terra e no Céu ? A minha alma chora,
chora sem cessar, uma dor indizível que não pode explicar. Fitei o
Coração Santíssimo de Jesus e exclamei :
― Ó
dor, ó dor que não és compreendida ! Mas não me importa, meu Jesus,
basta ser compreendida por Vós, não pelo prémio que me dais, mas sim
para Vos aproveitardes do meu sofrimento para a salvação das almas.
Ao
sentir que o meu corpo já não podia sofrer mais e como sentia a alma
muito ferida pelo muito que me fazem sofrer, tive este desabafo com
a minha irmã :
― É
preciso não terem coração para me fazerem sofrer assim em cima de
tanto sofrer.
Referia-me aos sofrimentos dados à alma em cima de tão grande
martírio do corpo. Meu Deus, que estou eu a dizer ? Como posso falar
da minha alma se ela já morreu ? Como posso falar do meu corpo se
ele já desapareceu, nem cinzas existem ? Quem fala, Jesus ? Quem
sofre ? Quem vive aqui ? Falais Vós, sofreis Vós, viveis Vós, só
Vós, meu Amor. Ai, meu Deus, não posso pensar nisto, não posso
aguentar estes tristes sentimentos. Aguentai, Jesus, aguentai por
mim.
O
demónio trabalha com canseira num ataque aterrador para persuadir-me
que o que sentia era verdade, dizia-me que eram mil demónios num só,
que só assim podia ser. Acrescentava coisas muito feias.
― Não
queiras ser vítima de Jesus, entrega-te a mim por vontade e por
amor. Eu não te faço sofrer como Ele, comigo só terás gozo, sempre
gozo. Olha como tu pecas.
Oferecia-me a Jesus o mais que podia e ele então mais se enfurecia
contra mim. Afirmava-me nunca me deixar, mas sem saber como, fugiu
deixando-me banhada em suor e como que o meu corpo desfeito. O
último ataque terminado quase à meia noite. Eram oito horas e meia,
estávamos a rezar em família ; dum e do outro lado eu ouvia à minha
volta assobios desesperadores. Conheci que eram assobios infernais ;
fiquei assustadíssima. Pouco depois de terminadas as orações,
formou-se à minha frente por entre chamas, uma dança de demónios.
Eram tantos como chuva ; todos dançavam, mas só um falava dizendo-me
o que há de mais feio e vergonhoso. Nas horas dos combates tudo sei,
tudo conheço, tudo é malícia, tudo é horror. Depois desconheço as
coisas, ficando-me o temor de ter pecado, a lembrança da presença de
Deus e de ter de comungar. Meu Deus, e nem um sacerdote para me
ouvir de confissão.
As
manhas de Satanás mudaram-me de posição. Um banho de suor ensopou-me
a roupa, não podia estar mais tempo assim, não tinha força para
pedir que me dessem outra posição.
― Jesus
e Mãezinha, valei-me.
Veio
Jesus e disse-me :
― “Vem
cá, minha filha, Satanás odeia-te, mas Eu amo-te. Satanás
persegue-te, e Eu venho em teu auxílio. Amo-te, és minha filha, és
minha esposa, és minha amada. Sabes porque te odeia e persegue ?
Pelas almas que me dás. Anda, meu encanto, vem descansar”.
Fiquei
na posição do costume por espaço de muito tempo sem poder descansar,
mas com muita paz, unidinha a Jesus e a pedir coisas à Mãezinha.
26 de
Novembro
Que
vida é a minha, Jesus ? É Vossa ou a quem pertence ? Não posso
aguentar o sofrimento que me causa a morte da minha alma ; não posso
estar aqui sem ela : não compreendo, não posso convencer-me desta
separação. Esta perda que eu sinto causa-me uma dor de enlouquecer.
Triste penar o meu ! Corro o mundo por entre trevas a bradar
sempre : Socorro ! Socorro ! Não vejo nada, não encontro ninguém,
não sou ouvida, parece que só eu existo aqui. Tanta vez invoco o
nome de Jesus e o da querida Mãezinha. Tanta vez quero levantar os
meus olhos para o Céu : Me Deus, falta-me a coragem. Jesus não me
ouve.
E como
pode a Mãezinha ouvir-me e atender-me assim tão manchada como
estou ? Posso eu atrever-me a levantar os olhos à Pátria celeste da
sua habitação para de lá receber algum alívio ? Triste confusão a
minha ! Ai, meu Jesus, todo o meu ser é despedaçado. Não tenho
coragem, meu Jesus, ai de mim, não posso estar na Vossa divina
presença, coberta de maldades e crimes como estou. Se uma vez ou
outra de repente me passam pelo pensamento alguns do títulos que me
dais é para meu maior tormento, é só para minha maior vergonha e
confusão. Como, Jesus, como podeis falar assim à mais indigna das
Vossas filhas, a este abismo de miséria ? Quero redobrar a minha
confiança em Vós, confio cegamente. O que eu quero é amar-Vos ; e
confio que Vos amo sem sentir amor, sem sentir um coração para Vos
amar. Creio, creio, meu Jesus ! Vós desprendeis-me de tudo e de
todos. Faça-se a Vossa divina vontade. Deixei de sentir em mim a
presença do divino Espírito Santo. Tudo isto me causa maior horror.
Tudo desaparece, tudo foge de mim, até as próprias criaturas. Quero
resistir a tanta dor, e desfaleço, não posso. Para Vos dar maior
consolação, ó meu Jesus, quero sofrer em silêncio, sozinha, sem
desabafo a não ser convosco. Ofereço-Vos o sacrifício de calar e
sofrer ; fico indiferente a sentir que não Vos dei a mais pequena
consolação. Ó minha vida, ó minha cruz, quero-te, amo-te porque
creio que em ti está Jesus. Jesus, Jesus, vede esta dor, vede este
pobre ser a lutar, a lutar sozinha no meio do mundo. Olhai este
coração que grita e chora, vede esta dor que despedaça mundos e
mundos. Hoje no fim de comungar principiei logo a desabafar com o
meu Jesus. Vede a minha agonia, vede a minha dor, vede este coração
que tanto deseja amar-Vos, vede e compadecei-Vos de mim, meu Jesus.
Dizia isto para desabafar, para alívio do meu penar e não com o fim
duma resposta ; nem nisso pensava. Mas Jesus, primeiro que tudo,
incendiou-me o coração em chamas abrasadoras, parecia-me arder todo
o meu peito ; e logo principiou a falar-me meigamente :
— “Minha filha, a tua agonia é a minha alegria, a tua dor é a minha
consolação, as tuas lágrimas são os meus sorrisos pela alegria e
reparação que me dás. Coragem, filhinha, nada temas. Coragem para
todas as provas que vierem e possam ainda vir. Tens o teu Jesus, que
podes temer ? Tens graça, tens força para combateres e venceres
milhares e milhares de mundos. A vitória é minha, só minha. A glória
é minha e dos que cuidam do que é meu”.
Fiquei
com mais força, com mais alento ma minha alma. Foi pouco duradoira.
Depressa voltei ao mesmo penar. Espinhos dum lado e do outro,
rumores de tempestades, um sentir de alma como se elas nunca
acabassem, ânsias de ir para o Céu e ao mesmo tempo temor à morte.
Não sei, mas parece-me que este medo de morrer é o mesmo que me
causa a lembrança de viver na presença de Deus. Penso se será efeito
dos ataques do demónio. Parece)me mentira ele deixar-me dois dias e
duas noites em paz ; será depois para maior tormento. Seja o que
Jesus quiser : o que eu quero é não pecar.
27 de
Novembro
O dia
de hoje raiou lindo ; só para a minha alma era triste, muito triste.
Que tremenda escuridão ! Tristes lembranças me atormentavam. Os
sentimentos de alma teimosos não me deixavam sossegar, esperava-os
novos acontecimentos. Quando o Sr. Abade me deu Jesus, fitei-o a ver
se ele movia os lábios para me dizer alguma coisa ; a alma
sentia-o : havia alguma (coisa) de novo. Já há dias que eu ocultava
os pressentimentos que tinha, dando por necessidade ao escrever uma
pálida ideia de tudo o que sentia ; fazia assim para não fazer
sofrer minha irmã. Sofria em silêncio, fitando Jesus e a Mãezinha,
desabafando só com eles. O Sr. Abade nada me disse. Dei graças a
Jesus friamente, embora os meus desejos fossem de me abrasar até
morrer queimada no amor de Jesus. Passavam-se as horas e eu sempre
na minha profunda tristeza e amargura. Meu Deus, queria morrer para
tudo. Aí vem a sexta-feira e o primeiro sábado, dois dias em que me
falais. Há tantas almas que nada disto conhecem e ama-Vos, e são
santas ! E eu, meu Jesus, que miséria ! Podia amar-Vos e desconhecer
tudo isto. Ah ! se eu tivesse querer ! Mas não tenho, meu Jesus, nem
o quero. Para mim é um duro tormento Jesus dizer-me quaisquer
palavras para outras pessoas. Tem-nas dito para algumas pessoas, não
para muitas. Eu não sou capaz de as dizer às pessoas a não ser por
escrito e se por algum motivo sou obrigada a fazê-lo, faço-o com
enorme sacrifício. Se não é necessário, nunca digo : Olhe que Nosso
Senhor disse... ou outras frases quaisquer. Nem com minha irmã tenho
essa liberdade ; não a posso ter, tenho vergonha. Quando Nosso
Senhor me diz palavras de queixumes de algumas pessoas em geral, sem
nomear os nomes, quando estou a ditá-las estou tão tímida, queria
ocultá-las, queria dizer menos, assim como quando me diz a mim
palavras de louvor. Que vergonha, meu Jesus, só Vós podeis e sabeis
avaliar quanto tudo isto me faz sofrer.
Eram
duas e meia da tarde, senti passos ; ainda sem ver, conheci que era
o Sr. Abade. Quando o vi sozinho, sem vir apresentar nenhuma visita,
pensei logo que era chegada a hora de novas provas. Entrou no meu
quarto, sentado a meu lado, principiou a interrogar-me quem era o
meu director, etc. Disse-me :
— Faço
isto por ser obrigado, custa-me dizer-to, mas tem paciência, tem que
ser até que sejam dadas novas ordens, até que seja levantado isto.
Não te podes mais confessar ao Sr. P. Humberto, não posso deixá-lo
trazer-te Nosso Senhor sem que ela traga uma licença escrita do Sr.
Arcebispo.
Respondi-lhe serenamente :
— Obedeçamos, Sr. Abade. Louvado seja Deus, bendito Ele seja !
Perguntou-me se eu sabia porque o Sr. P. Humberto aqui tinha vindo.
Respondi-lhe que não sabia.
— Mas
ele é teu director ?
— Confessei-me a ele duas ou três vezes.
Depois
de reflectir vi que tinham sido pelo menos quatro, mas não disse de
menos por maldade.
— Não
costumo fazê-lo, mas vi que ele compreendia muito bem a minha alma,
e confessei-me. Mas o meu confessor, o Sr. P. Alberto, bem sabe eu
que me confessei com ele.
— Mas é
teu director ?
— Tem-me dirigido. Mas disse que não queria de forma alguma
meter-se, pôr os outros de parte. Isto era, o meu director Rev.mo
Sr. P. Pinho e o confessor Rev.mo Sr. P. Alberto e que achava bem
ele saber que eu me tinha confessado com ele.
O Sr.
Abade cheio de caridade para comigo, disse-me :
— Ele
pode vir aqui como visita e aconselhar-te por escrito.
Terminado o interrogatório, retirou-se. Logo alguém da minha família
entrou no meu quarto a perguntar-me o que havia de novo. Respondi a
sorrir :
— São
miminhos de Jesus.
Continuei a sorrir porque durante todo o tempo em que fui
interrogada sentia em mim uma força tão grande que tudo pude recever
com resignação e alegria. Sentia-me tão forte que me parecia não
haver espadas, setas nem espinhos que me pudessem ferir. Bem pouco
tempo durou esta força. Pude com ela ainda dar à minha irmã algumas
palavras de conforto :
— Não
te aflijas, se Deus (é) por nós quem contra nós ? Jesus é digno de
todo o nosso amor ! Seja tudo pelas almas !
A pouco
e pouco fui desfalecendo debaixo do peso da dor ; o coração por duas
vezes me falhou, parecendo-me perder a vida. Algumas lágrimas de
resignação deslizaram pelas faces ; ofereci-as a Jesus como actos de
amor. Meu Deus, eu por graça Vossa não tenho apego a nada do mundo,
nem às criaturas ; o que eu quero é receber-Vos, meu Jesus, mas não
me importa ser este ou aquele sacerdote, Vós sois sempre o mesmo
Jesus, sois Vós sempre o suspirado da minha alma. É verdade que ela
necessita de luz e de quem a compreenda. Tiram-me tudo ! Faça-se a
Vossa Vontade ! Ficai Vós, meu Jesus, e isso me basta.
Chegou
o médico junto de mim ; desabafei com ele. Animou-me muito, como
sempre. Ao despedir-se de mim, disse-me :
— Então, fica com muita coragem ?
— Fico,
sim, Sr. Doutor, mas eu tenho coração para sofrer ; se eu o tivesse
também para amar !
Falei
assim porque sinto não ter coração para amar o meu Jesus a queria
morrer de amor por Ele.
Com o
terminar do dia, rezei por duas vezes o Magnificat ; foram actos de
agradecimento ao meu Jesus por me ter dado um dia cheio dos seus
miminhos, por me ter dado mais meios de o poder consolar e dar-lhe
provas do meu amor para com Ele e para com as almas.
— Sinto, meu Jesus, que não param aqui as minhas provas. Venha o que
vier, sede sempre comigo. Confio, confio, espero em Vós.
30 de
Novembro
Passa
um dia, passa um ano, passa outro e eu cada vez em mais sofrimentos.
Não sei como se pode sofrer assim, como se pode resistir a tanto.
Não quero dizer, nem posso dizer que sofro, pois não sou eu que
sofro, é Jesus que sofre em mim. A minha alma morreu, mas sente a
dor ; sente-se rasgada, ferida e destruída. Morreu, não é minha, não
sei para onde foi. Do meu corpo até as cinzas se apagaram e
desapareceram, mas mesmo assim, sente que o coração está numa bolsa
de espinhos, é um sedeiro deles. O mundo esmaga essa bolsa a tal
ponto que só ficam os espinhos. Nem coração, nem sangue, nem nada.
Ai, meu Deus, quanto custa esta separação da alma do corpo. Quanto
custa não ter vida e sentir dor. Tudo foge de mim, não sinto a
presença do Espírito Santo, não sinto amor a Jesus. De longe a longe
tenho ânsias de O amar ; são ânsias, é um amor que nasce para logo
morrer. É um fogo que destrói amortecido, não se vê sinal de
labaredas.
— Ó dor
que matas o amor ! Ó dor, que quem és tu e por quem sofres ? Jesus,
estou no cimo do Calvário, pregada na cruz.
Não
cessa o meu pavor e o meu brado. Pobre de mim ! Mas não é ouvido, é
abafado pelo zunir dos ventos, pela fúria das tempestades que não
cessam, continuam sempre. É abafado pelos gritos da humanidade que
contra mim se revolta. No alto da cruz não posso levantar os olhos
para Vós, meu Jesus, tenho vergonha e parece-me não ser por Vós
também ouvida. O peso das humilhações tudo abafa e esmaga. Sinto que
perdi na terra toda a alegria e conforto. E do Céu, meu Jesus, sinto
que nada recebo também. Quero confiar, meu Jesus, e confio, mas
parece-me que da minha Pátria nado posso esperar.
Ontem
ao receber-Vos, depois de pedir-Vos tantas coisas, ia a pedir-Vos
também o alívio da minha dor ; recordei-me a tempo : não pedi. Vós
que me dais o sofrimento não podeis faltar-me com a força e graça
precisa. Consolai-Vos, então, Jesus, consolai-Vos sempre. Ó meu
Deus, perdoai-me os meus desabafos. Num desânimo cheguei a pedir ao
meu médico se podia fugir daqui para fora, para onde nunca mais se
soubesse de mim. Meu Jesus, não queria sair para fugir à dor, bem o
sabeis, queria fugir para ficar esquecida, para não ser estorvo das
almas, para as não trazer em desassossego como alguém afirma. Eu não
peço vingança para os que me fazem sofrer, eu desejo para todos o
que desejo para mim : a maior graça, o amor maior. Não são palavras
saídas só dos meus lábios, saiem-me do coração e da alma. Sofro da
parte dos homens, sofro da parte do demónio. Que violento combate.
Apareceu-me de noite na figura de bichos aterradores que eu
desconheço. Apareceu-me também na figura duma serpente medonha, de
boca aberta, a língua fora rastejando pelo chão. Veio até perto de
mim, ficou retirado talvez dois palmos de distância. A par comigo
abriram-se barreiras fundíssimas, negras, assustadoras. De entre
elas abriam-se também vulqueirões de fogo, labaredas negras subiam a
grande altura. No meio delas estavam muitos demónios atormentando as
almas, dando-lhes maus tratos que o maldito na mesma ocasião com
suas manhas me dava a mim. Ele afirmava tocar-me, mas parece-me que
posso jurar que não : eram só as suas manhas infernais. Falo assim
agora, mas no momento da luta parece-me ser verdade tudo quanto ele
diz. Por obediência quis expulsá-lo, tinha licença do confessor para
o fazer. Lembrar-me, bem me lembrei, mas fazê-lo, não foi para mim.
Parecia-me que ele me obrigava a dizer : — “Quero pecar, quero
gozar”. Mostrando-me a luta das almas no inferno, dizia-me :
— É ali
que estás condenada, é ali o teu lugar. Agora pecas com esta e com
aquela pessoa.
Passado
algum tempo, já nomeava outras pessoas sempre no meio de nomes feios
e palavras escandalosas. Terminada a luta, já quando eu podia
recorrer ao Céu, chamar por Jesus e pela Mãezinha e renovar a oferta
de vítima e dizer : — “Não quero pecar, não quero pecar”, ele
dançava, batia palmas e às gargalhadas dizia :
— Não
queres pecar desde que já pecaste ; desde que estás satisfeita “ que
recorres a Deus.
Eu sem
lhe dar atenção repetia sempre : — “Não quero pecar ! — Disse-me
Jesus :
— “Não
pecas, não, minha filha. Posso lá consentir ser ofendido por uma
esposa minha ? Alegra-te, não me ofendes, isto é a reparação que te
peço ; diz que a quero, que necessito dela”.
Com a
voz de Jesus o demónio desapareceu e eu fiquei em paz, muito em paz.
Hoje
vieram novos espinhos ferir-me. Ó meu Deus, quantos estragos deu a
tempestade que me tendes feito sentir. Vi ao longe, vi tudo. Tanta
maldade ! Mas talvez sem querer, irreflectida. A minha amargura
chegou ao extremo : queria respirar, e não podia. Tanta calúnia,
tanta perseguição, uma humilhação contínua. Voltada para o Sagrado
Coração de Jesus, já não o via porque era noite e se não fosse,
talvez o não visse, com as lágrimas que me bailavam nos olhos e
deslizavam pelas faces. Chorei, chorei, ao mesmo tempo que lhas
oferecia, disse-lhe ;
— Ó meu
Jesus, nunca, nunca procurei enganar criatura alguma, nunca me veio
ao pensamento fazer o bem para lhes agradar ou passar por ser boa.
Nunca me veio ao pensamento a tentação de enganar-Vos, meu Jesus.
Sei que era impossível, mas bem sabeis que nunca tal me lembrei ;
não quero passar pelo que não sou. Por graça Vossa conheço a minha
miséria, sou má por minha culpa, só por minha culpa, e por Vossa
misericórdia confesso humildemente que o sou. Nunca veio ao meu
pensamento servir-me de Vós para remediar os meus males ou os dos
meus, a não ser implorar o Vosso auxílio e confiar sempre que tudo
remediáveis. Jesus, vede a agonia da minha alma. Estou em paz porque
tudo o que Vos digo é verdade, bem o sabeis. É a Vós que hei-de dar
contas e não ao mundo ; a sentença dele só serve para fazer-me
sofrer, mas não para condenar-me. Se eu pudesse, meu Jesus, se eu
pudesse descer da minha cama, passar a noite no chão do soalho duro
para fazer penitência e implorar as Vossas divinas graças para todos
aqueles que sofrem por minha causa ! Se eu sofresse sozinha !
Custa-me tanto sofrerem aqueles que me são tão queridos e a quem eu
tanto devo pelo que têm feito por mim. Parece-me uma ingratidão, meu
Jesus. Remediai Vós tudo isto e compadecei-Vos da minha dor ; estou
louca com ela, banhada em sangue, despedaçada. Nestas horas de tanta
angústia, posso dizê-lo, é bem verdade : venceis Vós, vence o Vosso
amor. Por mim não podia, desesperava. Já só com o pensamento pude
rezar o Magnificat. Tinha tanto que agradecer ao Senhor ! Foram
tantos e tão grandes os miminhos ! Aceitei-os por Jesus e a Jesus os
ofereci. As almas, as almas têm que ser salvas. Quero dar ao meu
Amado esta consolação. |