Alexandrina de Balasar
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CAPÍTULO 40Prossegue na mesma matéria dizendo as grandes mercês que o Senhor lhe fez. Dalgumas delas se pode tirar muito boa doutrina. Conforme tem dito, o seu principal intento, depois de obedecer, tem sido de escrever as mercês que são para proveito das almas. Com este capítulo acaba a narração que escreveu da sua vida. Seja para glória do Senhor. 1. Estando uma vez em oração, era tanto o deleite que em mim senti que, como indigna de tal bem, comecei a pensar que muito mais merecia estar naquele lugar que eu tinha visto preparado no inferno para mim, pois, como tenho dito, nunca esqueço o modo como ali me vi. Com esta consideração, começou a inflamar-se mais a minha alma e veio-me um arrebatamento. de espírito, de modo que o não sei dizer. Pareceu-me que o meu espírito estava metido e cheio daquela Majestade que tenho entendido de outras vezes. Nesta Majestade deu-se-me a entender uma verdade que é complemento de todas as verdades; mas não sei dizer como, porque nada vi? Disseram-me, sem ver quem tinha sido, mas bem entendi ser a mesma Verdade: Não é pouco isto que faço por ti; é uma das coisas em que muito me deves; porque todo o dano que vem ao mundo é de não se conhecerem as verdades da Escritura com clara verdade, da qual não ficará um til por cumprir. Pareceu-me, a mim, que nisto sempre eu tinha acreditado e que todos os fiéis o crêem. Disse-me porém: Ai, filha, quão poucos me amam com verdade. Se Me amassem, não lhes encobriria eu meus segredos. Sabes o que é amar-Me com verdade? É compreender que. tudo quanto Me não é agradável a Mim é mentira, Com clareza verás isto que agora não enten des, pelo fruto que sentires em tua alma. 2. E assim o tenho visto, seja o Senhor louvado, que então para cá, parece-me tanta vaidade e mentira tudo o que eu vejo que não vai dirigido ao serviço de Deus, que eu não saberia dizer até que ponto o entendo, e a lástima que me fazem os que vejo em trevas a respeito desta verdade. Com isto vieram-me outros lucros que agora direi, ainda que muitos não saberei dizer. Disse-me aqui o Senhor uma particular palavra de grandíssimo favor.' Eu não sei como isto foi, porque nada vi; mas fiquei de sorte que tão pouco sei dizer, com uma grandíssima fortaleza, e isto muito deveras, para cumprir com todas as minhas forças a mais pequena parcela da Escritura divina. Parece-me que nenhuma coisa se me poria diante que eu não padecesse por isto. 3. Desta divina Verdade .que se me representou, sem saber como nem quê, ficou-me impressa uma verdade que me faz ter um novo acatamento a Deus, porque dá um conhecimento de Sua Majestade e do Seu poder e isto de uma maneira que não se pode dizer. Sei somente entender que é grande coisa um tal dom. Ficou-me uma grandíssima vontade de não falar senão em coisas muito verdadeiras que estejam acima do trato que se usa aqui no mundo; e assim comecei a ter pena de viver nele. Deixou-me esta mercê com grande ternura, deleite e humildade. Parece-me, sem entender como, que o Senhor me deu aqui muito. Não me ficou suspeita alguma de que fosse ilusão. Nada vi, mas compreendi o grande bem que há em não fazer caso de coisa que não seja para nos achegarmos mais a Deus, e assim entendi o que é andar uma alma na verdade diante da mesma Verdade. Isto, que entendi, é dar-me o Senhor a entender que Ele é a mesma Verdade. 4. Compreendi tudo isto que tenho dito, falando-me Ele algumas vezes, e outras sem me falar, deram-se-me a entender algumas com mais claridade do que as que se me diziam por palavras. Aprendi grandíssimas verdades sobre esta Verdade, até mais do que se muitos letrados mo tivessem ensinado. Parece-me que de nenhum modo eles mo poderiam imprimir assim no espírito, nem tão claramente se me daria a entender a vaidade deste mundo. Esta Verdade, que digo se me deu a entender, é em si mesma verdade e não tem princípio nem fim, e todas as demais verdades dependem desta Verdade, como todos os demais amores deste Amor e todas as demais grandezas desta Grandeza. Isto vai, no entanto, obscuro em comparação da claridade com que o Senhor quis que se me desse a entender. E como resplandece o poder desta Majestade, pois em tão breve tempo deixa tão grande lucro e tais coisas impressas na alma! Oh! Grandeza e Majestade minha! Que fazeis, Senhor meu Todo-poderoso? Vede a quem fazeis tão soberanas mercês! Não Vos recordais que esta alma foi um abismo de mentiras e um pélago de vaidades, e tudo por minha culpa; e apesar de me terdes dado por natureza de aborrecer o mentir, eu mesma me forcei a tratar em muitas coisas com mentira? Como se sofre, Deus meu, como se compadece tão grande favor e mercê com quem tão mal vo-Lo tem merecido? 5. Estando uma vez nas Horas com todas as irmãs, de pronto se recolheu minha alma, e pareceu-me ser toda ela como um claro espelho. Não havia costas, nem lados, nem alto, nem baixo que não fosse tudo claridade; e no centro dela se me representou Cristo Nosso Senhor, como O costumo ver. Parecia-me que em todas as partes da minha alma O via tão clara- mente como num espelho, e esse espelho - não sei dizer como - também se esculpia todo no mesmo Senhor por uma comunicação muito amorosa que eu não saberei explicar. Sei que esta visão me serve de grande proveito de cada vez que dela me recordo, em especial quando acabo de comungar: Deu-se-me a entender que, estar uma alma em pecado mortal, é cobrir-se este espelho de densa névoa e ficar muito negro, e assim nele não se pode reflectir, nem ver este Senhor, embora esteja sempre presente dando-nos o ser. Com os hereges é como se o espelho, estivesse quebrado, o que é muito pior que obscurecido. É muito diferente, o como se vê, do como se diz, porque mal se pode dar a entender. Mas tem-me feito muito proveito e grande pesar das vezes que, com minhas culpas, obscureci a minha alma de modo, a não ver este Senhor. 6. Parece-me proveitosa esta visão às pessoas que, se dão ao recolhimento, para as ensinar a considerar o Senhor no mais íntimo da sua alma. Esta consideração prende mais e é muito mais frutuosa do que considera-1'O fora de si, como de outras vezes tenho dito. Nalguns livros de oração está escrito que é onde se há-de buscar a Deus; em especial o diz o glorioso Santo Agostinho, que nem nas praças nem nos conventos, nem em parte alguma onde O buscava, O encontrava, como dentro de si. E isto é claramente o melhor, pois não é necessário ir ao Céu, nem procurar mais longe nem fora de nós mesmos; porque é cansar o espírito e distrair a alma, e não com tanto fruto. 7. Uma coisa quero advertir aqui, para se alguém a tiver, que acontece nos grandes arroubamentos.. Passado aquele momento em que a alma está em união (que tem as potências totalmente absortas, e isto dura pouco como tenho dito), acontece ficar a alma recolhida e até sem poder voltar a si no exterior, mas as duas potências, memória e entendimento, ficam quase com frenesim, muito desatinadas. Isto, digo, acontece algumas vezes, especialmente nos princípios. Penso que isto procede de não poder sofrer a nossa fraqueza natural tanta força de espírito e enfraquece a imaginação. Sei que isto sucede a algumas pessoas. Parecer-me-ia bom que se esforçassem a deixar, por então, a oração e a tivessem em outra altura, recuperando assim aquele tempo de oração que perdem, mas que não seja por junto, porque daí poderá advir muito mal. Disto há experiência e de quão acertado é olhar ao que pode a nossa saúde. 8. Em tudo é preciso experiência e mestre porque, chegada a alma a estes termos, oferecer-se-ão muitas coisas em que é mister ter com quem o tratar. E, se buscando mestre não o achar, o Senhor não lhe faltará, pois não me faltou a mim sendo eu a que sou. Porque creio haver poucos que tenham chegado a ter experiência de tantas coisas; e se não a têm, debalde dão remédio à alma sem a inquietar e afligir. Mas isto também tomará o Senhor em conta, e assim o melhor é tratá-lo (como já tenho dito de outras vezes, e, até mesmo tudo quanto agora digo, que não me lembro bem se já o disse porquanto, vejo que importa muito), em especial se são mulheres que tratem estas coisas com o confessor. E há muitas mais mulheres de que homens a quem o Senhor faz estas mercês, e isto ouvi ao santo Frei Pedro de Alcântara (e também o tenho visto eu) que dizia que, neste caminho, aproveitavam elas muito mais que os homens, e dava disto excelentes razões, que não há para que dizê-las aqui, todas em favor das mulheres. 9. Estando uma vez em oração, representou-se-me muito brevemente (sem ver coisa alguma formada, mas foi representação feita com toda a clareza) como se vêem em Deus todas as coisas e como Ele as contém todas em Si. Saber escrever como isto foi, eu não sei, mas ficou muito impresso na minha alma, e é uma das grandes mercês que o Senhor metem feito e das que mais me fizeram confundir e envergonhar, recordando-me os pecados que cometi. Creio que, se o Senhor fosse servido de que eu visse isto noutros tempos, e que o vissem os que O ofendem, não teriam coração nem atrevimento para o fazer. Pareceu-me [ter, visto o que, segue] sem eu poder, no entanto, afirmar que vi alguma coisa; digo-o desde já. Qualquer coisa sé deve ver porém, pois eu poderei dar esta comparação; mas é por modo tão subtil e delicado, que o entendimento não o deve alcançar, ou será que eu não me sei entender nestas visões, que não parecem imaginárias, e em algumas, alguma coisa de imagem deve haver. Mas, como é estando a alma em arroubamento, as potências não o sabem depois reproduzir como ali: o Senhor lho representa e quer que o gozem. 10. Digamos, pois, que a Divindade é como um muito claro diamante, muito maior que todo o mundo, ou como um espelho ― conforme disse da alma na outra visão, à excepção de ser por um modo tão sublime; que eu não o saberei encarecer ― e que tudo o que fazemos se vê neste diamante, sendo ele de maneira que encerra tudo em si, porque não há nada que saia fora desta grandeza. Coisa espantosa foi para mim ver, em tão breve espaço, tantas coisas juntas neste claro diamante, e lastimosíssima coisa é, cada vez que me recordo, ver que coisas tão feias; como eram meus pecados, se reflectiam naquela límpida claridade. E assim é que, quando me recordo, não sei como o posso suportar, e fiquei então tão envergonhada que me parece não sabia onde me meter. Oh! quem pudesse dar isto a entender aos que muito desonestos è feios pecados fazem, para que se lembrem que não são ocultos e que, com razão, os sente Deus, e pois tão em presença de Sua Majestade eles se fazem, e tão desacatadamente nos havemos diante d'Ele! Vi com quanta razão se merece o inferno por um só pecado mortal; porque não se pode entender quão gravíssima coisa é cometê-lo diante de tão grande Majestade, e como são alheias, a quem Ele é, coisas semelhantes. E assim se vê mais a Sua misericórdia, pois conhecendo nós tudo isto, Ele nos sofre. 11. Isto tem-me feito considerar que, se uma visão como esta assim deixa espantada a alma, o que será o dia do juízo, quando esta Majestade claramente se nos mostrar e virmos as ofensas que Lhe temos feito? Oh! Valha-me Deus, que cegueira, esta que eu .tenho trazido! Muitas vezes me tenho espantado disto que tenho escrito, e não se espante V Mercê, senão de como ainda vivo vendo estas coisas e vendo-me a mim. Seja bendito para sempre Quem tanto me tem sofrido. 12. Estando uma vez em oração com muito recolhimento, suavidade e quietude, parecia-me estar rodeada de anjos e muito perto de Deus. Comecei a suplicar a Sua Majestade pela Igreja. Deu-se-me a entender o grande proveito que, nos últimos tempos, há-de fazer uma Ordem e a fortaleza com que seus filhos hão-de sustentar a Fé. 13. Estando uma vez rezando perto do Santíssimo Sacramento, apareceu-me um Santo cuja Ordem tem estado um tanto decaída: Tinha nas mãos um grande livro, abriu-o e disse-me que lesse umas letras, que eram grandes e muito legíveis e diziam assim: Nos tempos vindouros florescerá esta Ordem; haverá muitos mártires. 14. Outra vez, estando no Coro em Matínas, representaram-se-me e se puseram diante dos olhos seis ou sete religiosos que me parece seriam desta mesma Ordem; com espadas na mão. Penso que nisto se dá a entender que hão-de defender a Fé; porque, de outra vez, estando em oração, se me arrebatou o espírito e pareceu-me estar num grande campo onde muitos combatiam, e estes, os desta Ordem, pelejavam com grande fervor. Tinham os rostos formosos e abrasados e deitavam muitos por terra, vencidos, e a outros matavam. Parecia-me que esta batalha era contra os hereges. 15. A este glorioso Santo tenho visto algumas vezes, e tem-me dito algumas coisas, e agradecido a oração que faço pela sua Ordem e prometido de me encomendar ao Senhor. Não declaro as Ordens, para que não se agravem outras; se o Senhor for servido que se saiba, Ele o declarará. Mas cada Ordem, ou cada membro de per si, havia de procurar que, por seu meio fizesse o Senhor tão ditosa a sua Ordem que, em tão grande necessidade, como agora tem a Igreja, a servissem. Ditosas vidas que nisto se acabarem! 16. Pediu-me, uma vez, uma pessoa, que suplicasse eu a Deus lhe desse a entender se seria do Seu serviço aceitar um bispado. Disse-me o Senhor, acabando eu de comungar: Quando entender com toda a verdade e clareza que o verdadeiro senhorio é não possuir coisa alguma, então o poderá aceitar, dando a entender que, quem tiver de ter prelazias, há-de estar muito longe de as desejar e querer, ou, pelo menos, não as há-de procurar. 17. Estas mercês e outras muitas tem feito o Senhor e faz mui de contínuo a esta pecadora que, parece-me, não há necessidade de as dizer, pois pelo já dito se pode conhecer minha alma e o espírito que o Senhor me tem dado. Seja bendito para sempre, que tanto cuidado tem tido de mim! 18. Disse-me Ele uma vez, consolando-me com muito amor, que não me afligisse, pois nesta vida não podíamos estar sempre num mesmo estado. Umas vezes teria fervor e outras vezes estaria sem ele; umas com desassossego e outras com quietude e tentações, mas que esperasse n'Ele e não temesse. 19. Estava eu um dia pensando se seria apego o gostar de estar com as pessoas com quem trato da minha alma e ter-lhes amor, e aos que vejo muito servos de Deus, pois me consolava com eles. Disse-me o Senhor que, se a um enfermo, que está em perigo de morte, julga que lhe dá saúde um médico, não é virtude deixar de lhe agradecer e de não lhe ter amizade. Que teria eu feito se não fosse pela ajuda destas pessoas? A conversação dos bons não danifica, mas que as minhas palavras fossem sempre pesadas e santas, e não deixasse de tratar com eles, pois antes me seria de proveito que dano. Consolou-me isto muito, porque algumas vezes parecendo-me apego, quereria não os tratar de todo. Sempre, em todas as coisas, me aconselhava este Senhor, até dizer-me como me havia de haver com os fracos e com algumas pessoas. Jamais se descuida de mim. 20. Algumas vezes estou aflita de me ver de tão pouco préstimo em Seu serviço e de ver que, por força, hei-de ocupar mais tempo do que queria, com corpo tão fraco e ruim como é o meu. Estava eu uma vez em oração e chegou a hora de ir dormir. Estava com muitas dores, esperava pelo vómito do costume. Como me vi tão atada por mim mesma e o espírito, por outra parte, querendo tempo para si, vi-me tão atribulada, que comecei a chorar muito e a afligir-me. Isto não foi só uma vez, mas muitas ― como digo ― que me dava, me parece, uma tal zanga contra mim mesma, que então me aborreço em forma. Mas o normal é entender de mim que não tenho aborrecimento nem falto ao que vejo me é necessário. E praza ao Senhor que não tome muito mais do que é preciso, que é o que eu farei. Desta vez que digo, estando nesta pena, me apareceu o Senhor e me consolou muito e me disse que fizesse eu estas coisas por amor d'Ele e passasse por elas, pois a minha vida era agora necessária. E assim me parece que nunca me vi em pena, depois que estou determinada a servir com todas as minhas forças a este Senhor e Consolador meu, que, embora me deixasse padecer um pouco, não me consolasse, de maneira que não faço nada em desejar trabalhos. E assim, agora me parece que não tenho razão para viver senão para isto. E é o que de melhor vontade peço a Deus, e digo-Lhe, algumas vezes, com toda ela: Senhor, ou morrer ou padecer; não Vos peço outra coisa para mim. Dá-me consolo ouvir o relógio, porque me parece que isso me aproxima um pouquito mais de ver a Deus, pois vejo já passada aquela hora da vida. 21. Outras vezes estou de modo que nem me sinto viver, nem me parece ter vontade de morrer. Mas estou com uma tibieza e escuridão em tudo, como disse, que tenho muitas vezes, por causa de grandes trabalhos. E tendo o Senhor querido que se saibam em público estas mercês que Sua Majestade me faz, como me disse há alguns anos, que haviam de ser, isto me afligiu muito e até agora não tenho padecido pouco, como V. Mercê sabe, porque cada um o toma como lhe parece. Consolação me tem sido, todavia, o não ser por minha culpa; porque, em não o dizer senão a meus confessores ou a pessoas que eu sabia por eles que o sabiam, tenho tido grande e extremo cuidado. Não por humildade; senão porque, como tenho dito, até aos mesmos confessores me dava pesar dizê-lo. Agora, graças a Deus, embora muito de mim murmurem com bom zelo, outros temam tratar comigo, mesmo confessar-me, e outros me digam muitas coisas, como vejo que por este meio quis o Senhor dar remédio a muitas almas (porque isto tenho eu visto claramente, e me recordo do muito que por uma só passaria o Senhor) muito pouco se me dá de tudo dó que de mim dizem. Não sei se para isto contribuiu o ter-me Sua Majestade metido neste rincãozito tão encerrado e onde já pensei que, como de coisa morta, não haveria mais memória de mim. Mas não tem sido tanto como eu quisera; pois forçoso é ter de falar com algumas pessoas; porém, como estou onde me não vêem, parece que foi o Senhor servido de me trazer a um porto, que espero em Sua Majestade, será seguro. [22]. Por estar já fora do mundo, e entre pouca e santa companhia olho como de alto e já bem pouco se me dá do que,digam ou se saiba. Em mais teria eu, se uma alma aproveitasse um pouquito, do que tudo quanto de mim se possa dizer. Depois que estou aqui, tem o Senhor sido servido que todos os meus desejos parem nisto. E tem-me dado como que uma espécie de sono na vida, que quase sempre me parece que estou sonhando o que vejo. Nem contentamento, nem pena, que seja muita, vejo em mim. Se algumas coisas me dão alguma pena, passa com tanta brevidade que, eu me maravilho e o sentimento que deixa é como uma coisa que se sonhou. E isto é pura verdade, porque, embora eu depois me queira alegrar com aquele contento, ou ter pesar daquela pena, não está na minha mão; assim como não estaria na de uma pessoa discreta o ter pesar ou glória dum sonho que sonhou. É que o Senhor já despertou a minha alma daquilo que, por eu não estar mortificada e morta às coisas do mundo, me tinha feito sentimento, e Sua Majestade não quer que ela se torne a cegar. 23. Desta maneira vivo agora, Senhor e Padre meu. Suplique V. Mercê a Deus que me leve para Si ou me dê em que O sirva. Praza à Sua Majestade que isto que aqui vai escrito faça algum proveito a V. Mercê, pois, pelo pouco tempo que tenho, foi feito com trabalho. Mas ditoso trabalho, se acertei a dizer alguma coisa pela qual uma vez se louve o Senhor; que com isto me daria por paga, embora V. Mercê logo o queime. 24. Não quereria, no entanto, que o fizesse sem que isto vissem as três pessoas que V. Mercê sabe, pois são e têm sido confessores meus. E se isto vai mal, é bem que percam a boa opinião que têm de mim. Se vai bem, são bons e letrados; sei que verão de onde me vem è louvarão a Quem por mim o disse. Sua Majestade tenha sempre a V. Mercê de Sua mão e o faça um tão grande santo que, com sua luz e espírito, alumie esta miserável, pouco humilde e muito atrevida, que ousou determinar-se a escrever coisas tão subidas. Praza ao Senhor não tenha eu nisto errado, tendo intenção e desejo de acertar e obedecer e que, por meu intermédio, se louvasse em alguma coisa ao Senhor, que é o que há muitos anos Lhe suplico. E, como me faltam para isto as obras, atrevi-me a pôr aqui por ordem esta minha desbaratada vida, embora não tenha empregado nisto mais cuidado, nem mais tempo do que tem sido preciso para escrevê-la, pondo apenas o que por mim tem passado com toda a lisura è verdade que tenho podido. Praza ao Senhor, pois é poderoso e, se quer, pode, querer que em tudo eu acerte a fazer a Sua vontade, e não permita Sua Majestade se perca esta alma que, com tantos artifícios e maneiras, e tantas vezes, tem tirado do inferno e trazido a Si. Amen. ***** J. H. S. Carta epílogo remetendo a «Vida». 1. O Espírito Santo seja sempre com V Mercê. Amen. Não seria mau encarecer a V. Mercê este serviço para o obrigar a ter muito cuidado de me encomendar a Nosso. Senhor, pois segundo o que tenho passado em me ver descrita e trazer à memória tantas misérias, bem o poderia fazer; embora com verdade possa dizer que tenho sentido mais em escrever as mercês que o Senhor metem feito, do que as ofensas que eu fiz a Sua Majestade. 2. Eu fiz o que V Mercê me mandou em alongar-me, com a condição de que V Mercê faça o que prometeu de rasgar o que lhe parecer mal. Não tinha acabado de o ler, depois de escrito, quando V Mercê o manda buscar. Pode ser que algumas coisas vão mal declaradas e outras ditas duas vezes; porque tem sido tão pouco o tempo que tenho tido, que nem podia voltar a ver o que escrevia. Suplico a V. Mercê que o emende e mande copiar, se o tiver de mandar ao P Mestre Ávila, porque poderá ser que alguém conhecesse a letra? Eu desejo muito que se faça de modo a que ele o veja, pois com esse intento o comecei a escrever; porque, se a ele lhe parece que vou por bom caminho, ficarei muito consolada, pois já nada mais, me fica para fazer da minha parte.. Em tudo faça V. Mercê como lhe parecer e vê que está obrigado a quem assim lhe confia a sua alma. 3. A de V Mercê encomendarei eu toda a minha vida a Nosso Senhor. Por isso, dê-se pressa a servir a Sua Majestade para me fazer a mim mercê, pois V. Mercê verá, pelo que aqui vai, quão bem se emprega a vida em dar-se tudo, como V. Mercê o tem começado a fazer, a Quem tão sem medida se nos dá. Seja Ele bendito para sempre, que eu espero em Sua misericórdia nos veremos onde V. Mercê e eu mais claramente vejamos as grandezas que fez connosco e para sempre jamais O louvaremos. Amen. Acabou-se este livro em Junho, do ano de 1562. |
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