Alexandrina de Balasar
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CAPÍTULO 17Prossegue na mesma matéria deste terceiro grau de oração. Acaba de expor os efeitos que produz. Diz o dano aqui causado pela imaginação e a memória. 1. Fica razoavelmente dito este modo de oração e o que há-de fazer a alma ou, para melhor dizer, o que nela faz Deus, pois é já Ele quem toma o ofício de hortelão e quer que ela folgue. A vontade só tem de consentir naquelas mercês que goza, e de se oferecer a tudo quanto nela quiser operar a verdadeira Sabedoria. E de certo que é preciso ânimo, porque já é tanto o gozo que parece algumas vezes não faltar nada para a alma acabar de sair deste corpo. E que venturosa morte seria! 2. Aqui me parece ser bom, como disse a V. Mercê, a alma abandonar-se, de todo em todo, nos braços de Deus. Se a quiser levar ao Céu, vai; se ao inferno, não tem pena, logo que vá com o seu Bem; que se acabe de todo a vida, isso quer; se há-de durar mil anos, também. Disponha dela Sua Majestade como de coisa própria; já não é senhora de si mesma; está dada de todo ao Senhor; despreocupe-se, pois, de tudo. Digo: quando Deus dá tão alta oração como esta, a alma pode fazer tudo isto e muito mais ― pois estes são os seus efeitos ― e entende que o faz sem nenhum cansaço do entendimento. Somente me parece que está como que espantada de ver como o Senhor faz tão bem de hortelão, não querendo que ela tenha trabalho algum, senão o de se deleitar em que comecem as flores a dar perfume. Num contacto destes - por pouco que dure ― é tal o Hortelão que enfim, como Criador da água, dá-a sem medida. O que a pobre da alma, com trabalho e cansaço do entendimento, não pôde porventura conseguirem vinte anos, fá-lo este Hortelão celestial num instante; e a fruta cresce e amadurece de maneira que a alma se pode sustentar do seu horto, querendo-o o Senhor. Mas não lhe dá licença de repartir a fruta, até que esteja forte com o que dela tenha comido. Não se lhe vá tudo em a provar. E não lhe dando nada de proveito, nem lha pagando aqueles a quem a der, os mantenha e dê de comer à sua custa, e fique, porventura, morta de fome. Isto, bem entendido, vai dirigido a tais entendimentos que o saberão aplicar melhor de que eu o saberei dizer, por muito que me canse. 3. Enfim; as virtudes ficam agora mais fortes que na passada oração de quietude. E isto de modo à alma não as poder ignorar, porque se vê outra e, sem saber como, começa a obrar grandes coisas com o perfume que as flores dão de si. Quer o Senhor que estas se abram para que ela veja que tem virtudes, embora veja muito bem que não as podia ganhar nem o tem podido em muitos anos e, naquele breve espaço de tempo, lhas deu o Celestial Hortelão. Aqui é muito maior e muito mais profunda que no passado a humildade que fica na alma, porque vê mais claramente que de si não fez nem pouco nem muito, a não ser consentir que o Senhor lhe fizesse mercês e as abraçasse a vontade. Este modo de oração parece-me união muito evidente de toda a alma com Deus. Mas dir-se-ia que Sua Majestade quer dar licença às potências para que entendam e gozem do muito que Ele ali opera. 4. Acontece algumas vezes ― e até muitas ― estando unida a vontade que se vê e se entende claramente que está presa e gozando e em muita quietude. Digo que isto se vê claramente, mas só quanto à vontade, pois, por outro lado, o entendimento e a memória ficam tão livres que podem tratar de negócios e atender a obras de caridade. A mim, pelo menos, isto trouxe-me tonta e por isso o digo aqui para que V. Mercê veja que pode ser e o entenda quando o tiver. Isto, que agora disse, ainda que pareça tudo uma e mesma coisa é, em parte, diferente da oração de quietude. É que ali a alma está que nem se quereria mexer nem menear, gozando naquele ócio santo de Maria. Nesta oração pode também ser Marta, e assim quase que está trabalhando a um tempo na vida activa e contemplativa. Pode atender a obras de caridade e a negócios que convenham ao seu estado, e ler, embora o entendimento e a memória não estejam de todo senhores de si e entendam bem que a melhor parte da alma está em outro lugar. É como se estivéssemos falando com alguém e, por outro lado, nos falasse outra pessoa: nem bem estaríamos com uma nem com outra. É coisa que se sente muito claramente e dá muita satisfação e contento quando se tem e é muito boa disposição para que, em achando tempo de solidão ou de desocupação de negócios, a alma chegue a mui sossegada quietude. É um andar como uma pessoa que está em si satisfeita, que não tem necessidade de comer, sente o estômago satisfeito, de maneira que não se poria a comer qualquer manjar, mas não está tão farto que, se os vir bons, deixe de o fazer de boa vontade. Assim não quereria então a alma contentos do mundo, porque tem em si o que mais a satisfaz. Maiores contentamentos de Deus, desejos de satisfazer Seus desejos, de gozar mais, de estar com Ele, é isto o que quer. 5. Há outro modo de união, que ainda não é perfeita união, mas que é mais do que esta que acabo de dizer, embora não o seja tanto como a que se disse desta terceira água. Quando o Senhor lhas der todas ― se não as tem já ― gostará muito V. Mercê de encontrar tudo escrito e entender o que é. Uma coisa é dar o Senhor a mercê; outra, entender qual é a mercê e qual a graça; e outra, o sabê-la dizer e dar a compreender como é. Pois, embora pareça não ser mister mais do que a primeira para a alma não andar confusa e medrosa e prosseguir com mais ânimo no caminho do Senhor, calcando debaixo dos pés todas as coisas do mundo, contudo é grande proveito e mercê entendê-lo. Por cada uma destas graças, é motivo para que louve muito ao Senhor quem a tem. Quem a não tem, louve-O igualmente por Sua Majestade a conceder a alguns dos que vivem para que nos aproveitasse a nós. Ora, acontece muitas vezes esta maneira de união que agora quero dizer (pois a mim, em especial, tem-me Deus feito esta mercê não poucas vezes) apodera-se Deus da vontade e também do entendimento, a meu parecer, porque este não discorre, mas está ocupado gozando de Deus, tal como quem está olhando e vê tanta coisa que nem sabe para onde olhar, perde-se-lhe a vista por um e outro objecto, e não sabe dar conta de coisa alguma. A memória permanece livre e unida à imaginação e, como se vê só, é para louvar a Deus a guerra que ela faz e como procura desassossegar tudo. A mim, traz-me cansada e me aborrece, e muitas vezes suplico ao Senhor que, se tanto me há-de estorvar, ma tire nestas alturas. Digo-lhe algumas vezes: quando, meu Deus, há-de estar já toda unida a minha alma no Vosso louvor e não feita em pedaços sem poder valer-se a si mesma? Aqui, vejo o mal que nos fez o pecado, pois assim nos sujeitou a não fazer sempre o que queremos, ou seja, de estar sempre ocupados em Deus. 6. Digo que me acontece às vezes, ― e hoje tem sido uma delas e assim tenho-o bem na memória ―, que vejo desfazer-se a minha alma com o desejo de se ver toda ela unida onde tem a maior parte de si mesma e ser-lhe impossível, pois dá-lhe tal guerra a memória e imaginação que o não pode conseguir. E como a estas lhes falta a ajuda das outras potências, de nada valem nem mesmo para fazer mal. Muito fazem em desassossegar. "Para fazer mal" digo, porque não têm força nem sabem estar quietas. Como o entendimento não ajuda pouco nem muito no que lhe representa a memória, esta não pára em nada, anda dum lado para o outro, que não parece senão destas borboletas da noite, importunas e irrequietas. Muito a propósito, me parece vir esta comparação, porque ainda que não tenha força para fazer nenhum mal, importuna aos que a vêem. Para isto não sei que remédio haja, pois até agora não mo fez Deus entender; de boa vontade o tomaria para mim, pois me atormenta, como digo, muitas vezes. Apresenta-se-nos aqui a nossa miséria, e mui claramente o grande poder de Deus; pois esta potência, que permanece à solta, tanto nos danifica e nos cansa, e as outras que estão com Sua Majestade, tão grande descanso nos dão. 7. O último remédio que encontrei ao cabo de me ter afadigado muitos anos, é o que disse na oração de quietude:zz que não se faça mais caso da imaginação que dum louco; é deixá-la com seu tema, que só Deus lho pode tirar. Enfim, aqui fica por escrava. Temos que a sofrer com paciência, como fez Jacob a Lia; pois bastante mercê nos faz o Senhor permitindo que gozemos de Raquel. Digo que fica escrava porque, afinal, não pode, por muito que faça, trazer a si as outras potências. Antes, são estas que, sem nenhum trabalho, a fazem ir muitas vezes a elas. Algumas vezes, é Deus servido de se compadecer, ao vê-Ia tão perdida e desassossegada com o desejo de estar com as outras, e consente-lhe, então, Sua Majestade que se queime no fogo daquela vela divina onde ás outras já estão feitas em pó, perdido o seu ser natural, tornado quase sobrenatural, gozando de tão grandes bens. 8. Em todas estas modalidades, desta última água da fonte de que falei, é tão grande a glória e descanso da alma, que o corpo participa muito sensivelmente daquele gozo e deleite. E isto claramente se vê e as virtudes ficam tão crescidas, como tenho já dito. Parece que o Senhor quis declarar-me estes estados de oração em que a alma se vê, tanto quanto aqui se pode dar a entender, segundo julgo. Trate disto, V. Mercê, com pessoa espiritual que tenha chegado aqui e tenha letras. Se lhe disser que está bem, creia que lho comunicou Deus. Tenha-o em muito apreço e agradeça a Sua Majestade. Com o andar do tempo ― como tenho dito ― folgará muito de assim entender o que é, enquanto não lhe é dada a graça para compreender, por si mesmo, embora lhe seja dado de o gozar. Uma vez que Sua Majestade lhe tenha concedido a primeira, com o seu entendimento e letras, logo entenderá, pelo que ficou aqui dito. Seja Ele por tudo louvado por todos os séculos dos séculos. Amen. |
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