Alexandrina de Balasar

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CAPÍTULO 16

Trata do terceiro grau de oração e vai declarando coisas muito elevadas, e o que pode a alma que aqui chega, e os efeitos que fazem estas mercês tão grandes do Senhor. É muito para elevar o espírito em louvores a Deus e para grande consolação de quem aqui chegar.

1.  Falemos agora da terceira água com que se rega esta horta: é a água corrente de rio ou de fonte, e rega-se com muito menos trabalho, embora algum dê o encaminhar a água. Quer aqui o Senhor ajudar o hortelão, de maneira que quase é Ele o jardineiro e quem faz tudo.

É um sono das potências em que nem de todo se perdem nem entende como operam. O gosto, suavidade e deleite são, sem comparação, maiores de que o passado. É a água da graça que chega à garganta desta alma, de modo que já não pode ir para diante, nem sabe como, nem como tornar atrás; quereria gozar de grandíssima glória. É como alguém que está com a vela na mão,' por lhe faltar pouco para morrer da morte que deseja. Está gozando naquela agonia com o maior deleite que se pode dizer. Não me parece outra coisa senão um morrer quase de todo a todas as coisas do mundo e estar gozando de Deus.

Eu não sei outros termos para o dizer ou declarar, nem sabe então a alma o que fazer; porque nem sabe se há-de falar, calar, rir ou chorar. É um glorioso desatino, uma celestial loucura; onde se aprende a verdadeira sabedoria, e é deleitosíssima maneira de a alma gozar.

2.  E é assim que o Senhor me deu em abundância e muitas vezes esta oração, creio que há cinco ou até seis anos; mas eu nem a entendia nem a saberia dizer; e assim tinha para mim ser melhor dizer muito pouco ou nada, em chegando aqui. Que de todo em todo não era união de todas as potências e que era mais que a passada, bem o entendia eu e muito claramente; mas confesso, não podia determinar nem perceber como era esta diferença.

Creio que pela humildade que V. Mercê tem tido em se querer ajudar de uma simplicidade tão grande como a minha, em acabando hoje de comungar, deu-me o Senhor esta oração sem eu poder ir adiante; e inspirou-me estas comparações e ensinou a maneira de o dizer e o que há-de fazer aqui a alma. Certo é que me espantei e o entendi num momento.

Muitas vezes estive assim, como desatinada e embriagada neste amor, e jamais tinha podido entender como era. Bem via eu ser obra de Deus, mas não podia compreender como operava aqui; porque, embora as potências estejam de facto e em verdade quase de todo unidas a Ele, não estão contudo tão engolfadas que não operem. Gostei em extremo de tê-lo agora entendido. Bendito seja o Senhor que assim me regalou!

3.  Só têm habilidade as potências para se ocuparem todas em Deus. Nem parece que alguma se ouse mexer, nem que a possamos fazer mover, a não ser que, com muito trabalho, nos quiséssemos distrair; e ainda assim não me parece que isso se pudesse então conseguir. Dizem-se aqui muitas palavras em louvor de Deus, sem ordem nem concerto, se o mesmo Senhor as não concerta. Pelo menos o entendimento não vale aqui nada. Quisera a alma dar vozes em louvores e está que não cabe em si; um desassossego saboroso. Já se abrem as flores, já começam a dar seu olor. Aqui quereria a alma que todos a vissem e entendessem a sua glória para que á ajudassem nos louvores a Deus e quisera comunicar e dar-lhes parte do seu gozo, porque não pode com tanto gozar. Parece-me ser como a que diz o Evangelho que queria chamar ou chamou as suas vizinhas. Isto, a meu parecer, devia sentir o admirável espírito do real profeta David quando tangia a harpa é cantava os louvores de Deus. Deste glorioso Rei sou eu muito devota e quereria que todos o fossem, em especial os que somos pecadores.

4.  Oh! Valha-me Deus! Como fica uma alma quando está assim! Toda ela quereria ser línguas para louvar ao Senhor! Diz mil desatinos santos, atinando sempre em contentar a Quem a tem assim. Eu sei duma pessoa que, sem ser poeta, lhe acontecia fazer de repente coplas muito sentidas, declarando bem a sua pena, não tiradas do seu entendimento, senão que, para mais gozar a glória que tão saborosa pena lhe dava, dela se queixava a seu Deus.

Todo o seu corpo e alma quereria se despedaçassem para mostrar o gozo que sente com esta pena. E, que tormentos se lhe poderiam pôr então diante dela que lhe não fosse saboroso passá-los por seu Senhor? Vê claramente que não faziam quase nada de sua parte os mártires em os passar, porque bem conhece a alma que a fortaleza lhe vem de outra parte. Mas, que sentirá por ter razão, a fim de viver no mundo e voltar aos cuidados e cortesias que nele há?

Não penso, porém, ter encarecido coisa alguma que não fique baixa em relação a este modo de gozo que o Senhor quer neste desterro dar a gozar à alma. Bendito sejais para sempre, Senhor, e louvem-Vos todas as coisas eternamente. E pois que ao escrever isto não estou fora desta santa loucura celestial ― de que tão sem méritos meus e por Vossa bondade e misericórdia me fazeis mercê ― eu Vos suplico, meu Rei, que tenhais agora por bem que todos aqueles com quem eu tratar estejam ou loucos de Vosso amor ou permiti que eu não trate com ninguém. Ordenai, Senhor, ou que eu não tenha já em conta coisa que seja do mundo, ou tirai-me dele. Não pode já, Deus meu, esta Vossa serva sofrer tantos trabalhos como tem por se ver sem Vós e, assim, se há-de viver, não quer descanso nesta vida, nem que Vós lho deis. Quereria já esta alma ver-se livre do corpo: o comer, a mata; o dormir, a atormenta; vê que se lhe passa o tempo da vida vivendo em regalos e que nada já a pode regalar afora Vós. Parece que vive contra a natureza, pois já não quereria viver em si, senão em Vós.

5.  Oh! Verdadeiro Senhor e glória minha, que ténue e pesadíssima cruz tendes preparada para os que chegam a este estado! Ténue, porque é suave; pesada, porque vezes há que não há sofrimento que a sofra. Jamais queria, no entanto, ver-se livre dela, se não fosse para ver-se já conVosco. Quando se recorda que não Vos serviu em nada e que, vivendo, Vos pode servir, quereria carregar-se com muito mais pesada cruz e nunca, até ao fim do mundo, morrer. Tem em nada o seu descanso a troco de Vos fazer um pequeno serviço; não sabe o que desejar, mas bem entende que não deseja outra coisa senão a Vós.

6.  Oh! filho meu! (que é tão humilde que assim se quer nomear aquele a quem isto vai dirigido e mo mandou escrever), sejam só para si algumas coisas em que V. Mercê vir que saio dos limites. É que não há razão que baste para não me tirar dela quando o Senhor me põe fora de mim, nem creio sou eu a que falo desde que comunguei esta manhã. Parece-me sonhar o que vejo e não quereria ver senão enfermos do mal com que eu agora estou. Suplico a V Mercê que sejamos todos loucos por amor d'Aquele a Quem por nós assim chamaram. Diz V. Mercê que me quer bem, pois em dispor-se para que Deus lhe faça esta mercê quero eu que mo mostre, porque vejo muito poucos que os não veja com senso demasiado para o que lhes diz respeito. Bem pode ser que o tenha eu mais que todos. Não mo consinta V. Mercê, meu Padre, pois também o é, assim como é filho, pois é meu confessor e a quem confiei a minha alma. Desengane-me com verdade, que se usam muito pouco estas verdades.

7.  Este contrato quisera eu que fizéssemos os cinco que, ao presente, nos amamos em Cristo. Como outros que nestes tempos se juntavam em.segredo para ir contra Sua Majestade e ordenar maldades e heresias, procurássemos nós juntarmo-nos alguma vez para nos desenganarmos uns aos outros e dizerem que nos poderíamos emendar e contentar mais a Deus. Não há quem tão bem se conheça a si mesmo como nos conhecem os que nos estão olhando, se é com amor e cuidado do nosso aproveitamento.

Digo "em segredo", porque já não se usa esta linguagem. Até os pregadores vão ordenando seus sermões de modo a não descontentar. Boa será a intenção e a obra também; mas assim emendam-se poucos. Mas, como é que não são muitos os que, por meio dos sermões, deixam vícios públicos? Sabe o que. me parece? Têm muito senso os que pregam. Não estão sem ele, com o grande fogo de amor de Deus como estavam os apóstolos, e assim aquece pouco esta chama. Não digo que seja tanta como eles tinham, mas quisera que fosse mais do que vejo. Sabe V. Mercê o que deve fazer muito ao caso? Em ter já aborrecimento à vida e em pouca estima a honra. Nada se lhes dava - a troco de dizer uma verdade e de a sustentar para glória de Deus - de perder tudo ou de ganhar tudo; porque, quem deveras tudo tem arriscado por Deus, com igual ânimo suporta tanto uma como outra coisa. Não digo que sou destas, mas quereria sê-lo.

8.  Oh! grande liberdade, termos por cativeiro o ter de viver e tratar conforme às leis do mundo! Como esta se alcance do Senhor, não há escravo que não arrisque tudo para se resgatar e voltar à sua terra. É, pois, este o verdadeiro caminho; não há que parar nele, porque nunca acabaremos de ganhar tão grande tesouro, até que se nos acabe á vida. O Senhor nos dê para isto o Seu favor.

Rasgue V Mercê isto que tenho dito, se lhe parecer, e tome-o como uma carta para si e perdoe-me por ter sido muito atrevida.

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