Alexandrina de Balasar

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Alexandrina Maria da Costa

SENTIMENTOS DA ALMA

1947

I
 

3 de Janeiro de 1947 – (sexta-feira)

Onde estais, meu Jesus? Para onde fugistes de mim? Eu não posso passar sem Vós, meu Jesus. Vede que estou sozinha; vede quanto sofre a minha alma. Ela está cega e muda, não vê nem sabe dizer o que tem. Tremo de pavor e temo vacilar. Não posso dar um passo que não caia num poço sem fundo; este poço dá-me a morte. Mais um ano é passado, meu Jesus, e eu não posso olhar para trás, não vejo outra coisa senão treva atrás e à frente de mim. Como passei o meu tempo? Como o empreguei ao vosso serviço? Que mal, que mal, meu Jesus! Ó vida, ó vida que eu não soube nem sei viver! Que pobre, que miserável, e nada sou! Ah, se eu visse, mesmo muito ao longe, uma luz que me guiasse para vós! Se eu tivesse no meu pobre coração um pouquinho do vosso amor! Nada, nada, meu querido Jesus. São as trevas a luz que eu tenho; é o gelo o meu amor; é a morte que fala, é o silêncio da morte a voz, o brado da minha alma. E o Céu, o Céu, morro de saudades, morro, morro, Jesus. Nada faço para o merecer, nada sofro por vosso amor. A minha oferta, Jesus, a minha entrega a Jesus na noite de Natal foi para mim mais um fogo de vistas e não um amor sincero a Jesus, nem o fim de O consolar. Não sei o que me levou a fazer tal entrega; nem compreendo o que Jesus quer com estes sentimentos da minha alma. Seja o que for, lancei-me nos seus braços divinos como a criancinha sem olhos, sem pernas, sem vontade, sem entendimento. É em espírito, nos seus santíssimos braços que me conservo, com o coração, a cabeça e todo o corpo em sangue, dilacerado pelos espinhos. É nele e com Ele que a alma, momento a momento, vai agonizando. Que me importa não ter luz se a razão e a fé me afirmam que ela existe? Por vosso amor, meu Jesus, deixo passar sobre mim toda a tempestade. Ao terminar os últimos momentos do ano com as luzes acesas rezei o “Te Deum”. Foi o meu acto de acção de graças a Jesus por tudo o que Se dignou enviar-me que me causasse dor ou alegria; por tudo O bendisse pela grande prova do seu amor. Que ignorância a minha! Não soube dizer-Lhe mais nada. Principiei o novo ano tirando à sorte os meus protectores. Calhou-me S. José e Santa Teresinha. Fiquei contente pela sorte que me caiu. Que eles sejam os meus guias por entre as trevas que tanto pavor causam à minha alma. Convidei todo o Céu a interceder por mim e a ensinar-me a amar a Jesus e à Mãezinha. Queria só viver a vida do amor.

Passou no dia 2 o quinto aniversário em que Jesus me disse: «Prepara-te para a luta, que tens que combater aparentemente sozinha». E que luta foi esta, meu Deus! Oh, como esta data me mostrou, por entre as trevas, os caminhos espinhosos que pisei! Ao principiar o ano, principiei a sentir cair sobre mim uma chuva torrencial; esta chuva para desfazer e queimar o meu corpo, sinto-o mesmo como se ele ardesse em chamas, parece que me deixa toda em cinzas de fogo. Estou cansada de tanto sofrer. Mas a alma está como de braços abertos para receber tudo o que Jesus quiser dar-lhe.

Tive um combate tão grande, tão grande com o demónio! O coração, de aflito, bateu tanto e tão fortemente que por último acabou por não viver; fiquei quase morta no pecado. E na morte que me senti não tinha força para sair do pecado nem tinha coração que me levasse ao arrependimento. Mergulhei-me no lodo e nele tinha que morrer. O demónio continuava com as suas feias palavras e indecentes lições. Senti dentro de mim alguém que com todo o rigor lhe fez sinal para se retirar. Retirou-se, ou retiraram-se, porque eram mais que um; fugiram espavoridos. Eu fiquei abismada na minha dor. Não há sofrimento que me lembre tanto de dizer a Jesus que não como os combates do demónio, quando sinto ele a aproximar-se.

Ontem já de noite, quanto mais me esforçava por desviar do Horto o meu pensamento, mais o coração dele se aproximava. O solo do Horto e a justiça de Deus eram para mim as pedras dum moinho. O meu corpo era o grazino de trigo que entre elas era esmagado e moído. O coração, à semelhança duma nuvem que se abre para descarregar a água, abriu-se para descarregar amor e receber toda a dor. Aquela dor fez-me sentir como se o meu corpo suasse água, suasse sangue. Prostrada por terra numa gruta retirada, senti e a minha alma viu um anjo levantar-se. Fiquei mais forte para o que me esperava. Hoje, logo de manhã, estava Jesus no meu coração com a sua santa cabeça cercada de tão agudos espinhos que me feriam também a mim toda quando Jesus Se inclinava sobre mim. E as carnes divinas de Jesus caíam dentro do meu corpo aos pedaços. Ele era açoitado dentro em mim; eu era a coluna, eu fui a cruz. E assim passei o Calvário e cravada nele senti bater brandamente, mesmo a agonizar, o Coração divino de Jesus. E senti que Ele no alto da cruz, no meio da mais dolorosa agonia, nos últimos momentos da sua vida espalhava amor, só amor. o amor estendia-se a todo o mundo como o perfume se espalha. E eu com Ele, por seu amor e pelas almas, agonizava. Fiquei como morta um bom pedaço. Sentia uma vida vinda muito do alto como que a contemplar a morte do meu corpo, mas não era a vida que a ele pertencia. Veio o meu Jesus.

― Minha filha, aos corações que se amam com o amor puro e santo nada há que os separe. Os nossos corações estão unidos: o meu e o teu, no maior amor, no amor divino, no amor de Deus. Não há nada, querida filha, não há nada que nos separe. Mas Eu quero, ao principiar do ano, na primeira sexta-feira, dedicada ao meu divino Coração, uni-los e enleá-los novamente. Quem vem deitar-lhes esses novos enleios é a tua e minha bendita Mãe.

Jesus tomou em suas mãos divinas o seu divino Coração e o meu; uniu-os tanto, tanto! Veio a Mãezinha, enfaixou-os, enleou-os bem com fios finíssimos doirados e conservou-se ao nosso lado. Jesus continuou:

― É um só coração, é um só amor nos nossos corações. É como uma sala com dois compartimentos com a entrada livre. Ambos têm o mesmo poder, o mesmo encanto, o mesmo Céu. Passei para o teu toda a riqueza que o meu contém. Queres saber, filha querida, o significado disto? Entreguei-te o mundo e hoje mesmo renovo a entrega. É por ti, pelo poder e missão que te confiei que este mundo vem a Mim. Passa livre do teu coração para o meu. Tui não podes ver, minha filha, nem sentir com consolação as graças e maravilhas com que te enriqueci; não convém à tua alma e é mais proveitoso para as almas dos pecadores. Enriqueci-te, elevei-te tanto as alturas como é alta a missão que te dei. Enchi-te do eu divino amor e da minha vida divina, para venceres e suportares todos os espinhos que ainda hão-de ferir-te. Não esperes consolações e alegrias: és a minha vítima. Não esperes luz, mas sim conforto e toda a abundância de amor, com a certeza de Eu sempre estar contigo e sempre em ti vencer. Sou o teu Jesus, confia em Mim. Tem coragem, que depressa vai acabar na terra a tua missão. Estou contentíssimo, minha filha, afirmo-te: foi grande a consolação que Me deste, foi grande o número de almas que salvaste com o amor com que suportaste todo o sofrimento que te dei no ano que terminou. Aqui não podes sabê-lo, no Céu o verás.

― Meu Jesus, tudo isso me humilha, mas ainda quero ser por Vós mais humilhada; falai-me dos meus pecados, porque até aqui só falastes do que é vosso. O que tenho eu de bom que não fosse vindo de Vós?

― Eu não quero falar dos teus pecados, porque nas tuas faltas escondo a grandeza e a riqueza que só no Céu será conhecida e verdadeiramente compreendida. E não falta na terra quem te humilhe. Mas coragem, essa humilhação exalta-te e também Eu fui humilhado. Não quero, minha filha, terminar este colóquio sem te prevenir, sem dar ao mundo este aviso: a chuva de fogo que sentes sair sobre ti é por seres a minha vítima; é a chuva que depressa cairá sobre o mundo, se ele não se converter; é o castigo que apenas deixará um pequeno número dos seus habitantes.

― Ó meu Jesus, e não haverá remédio? Que posso eu fazer por ele, para o salvar?

― Sofre, sofre, não é as almas que queres salvar? Os corpos nada vale. Eu te prometo: com os teus sofrimentos e o poder da minha bendita Mãe, as almas serão salvas; os corpos, a sua emenda de vida o fará. Se a vida for pura, se fizerem penitência, são poupados ao castigo. Diz, diz, minha filha, que é Jesus que chama, que é Jesus que pede, que é Jesus que convida: é o Pai que quer salvar os seus filhos. Vem, minha bendita Mãe, cingir os espinhos e a cabeça da vossa vítima.

Vi a Mãezinha com uma coroa de espinhos em suas santíssimas mãos; não sei de onde pegou nela. Em todo o tempo que esteve com Jesus não A vi com ela. Colocou sobre a minha cabeça, senti-me quase morrer.

― Coragem, minha filha, sou Mãe de Jesus, sou tua Mãe também. É com estes espinhos que ainda falta ferir-te que vais acudir às almas. Eu quero estar unida ao Coração do meu Jesus e ao teu, quero comunicar-te o meu amor, a minha ternura e doçura, para melhor poderes atrair as almas a Jesus.

― Vai em paz, disse Jesus. Leva contigo toda a confiança: nada temas: Eu não te falto. Leva a minha riqueza, leva o meu amor, leva as riquezas da tua Mãezinha querida e vai salvar o mundo. Coragem! Avizinha-se o Céu.

― Obrigada, meu Jesus; obrigada, Mãezinha. Vinde comigo, sede a força da minha alma.

4 de Janeiro de 1947 – (1º sábado)

Durante a noite senti-me atormentada pelo medo pavoroso com o receio dos sofrimentos que virão de encontro aos meus caminhos. Sentia que sofria, senti ao pavor, mas não via outra coisa a não ser um mundo de trevas ladeado todo de espinhos, o meu corpo rolava neles doidamente, quase desesperadamente estava louca pela dor. Aqueles espinhos punham-me o corpo e a alma numa só chaga e em sangue. De hora para hora ia desfalecendo e morrendo como uma lâmpada a apagar-se. Veio o momento da Sagrada Comunhão. Tinha sido grande o meu esforço para preparar-me bem, para bem receber o meu Jesus. Não me foi possível afervorar-me, nem abrasar-me de amor. Recebi-O friamente. Passaram-se uns minutos e eu no mesmo abatimento, na mesma cegueira e dor. Falou-me Jesus:

― Coragem, minha filha! Pouco depois de raiar o dia, vem o sol com os seus raios a espalharem-se pela humanidade, para aquecerem a terra. O dia já raiou: os raios do sol, sol doirado, vão aparecer, não para aquecerem a terra, mas sim as almas; não para te consolar e alegrar, mas para honra e glória minha e grande triunfo da minha divina causa. Tem coragem, não te atemorizes! A vida da vítima tem sempre espinhos. Os teus espinhos, as tuas trevas são a salvação do mundo, são a luz das almas. A nova redentora assemelha-se ao seu Redentor. Os espinhos, as chagas, o sangue e a dor acompanharam-Me até ao último momento. Assim serás tu também. Eu estarei sempre contigo; a tua morte será de amor.

Coragem! O teu temor, o temor de to mesma não Me desgosta. Pelo contrário, consola-Me, contanto que ao temor juntes sempre a confiança em meu divino Coração, que é louco de amor por ti.

Confia, confia. Vem comigo, minha bendita Mãe, levantar do seu desfalecimento a nossa filhinha. Vem com as tuas ternuras, vem com o teu amor. Neste desfalecimento o seu coração não pode bater asas, não pode levantar para Nós o seu voo de amor. Vem já, vem já, Mãe bendita, dar-lhe comigo a nossa vida divina.

Veio a Mãezinha, tomou-me em seus braços; oh, como Ela me acariciou e me apertou ao seu peito.

― Tem coragem, minha filha! Eu serei contigo na hora da tua dor até ao último alento; expirarás em meus braços. Qual é a mãe que não cuida da sua filha, quando a vê com o seu corpinho em sangue, numa só chaga? Eu cuido de ti, para que possas salvar os filhos meus.

Com as carícias da Mãezinha eu fiquei quase a dormir. Jesus, à volta de mim, como quem queria acariciaram-me, caminhava, pé ante pé, como se não quisesse acordar-me. Passou-se assim algum tempo; a minha alma enfortaleceu com este descanso suave e doce. Jesus continuou:

― Diz, minha filha, ao teu Paizinho, diz-lhe, quero que lho digas: que a alvura da sua alma não se mancha; o que é branco, branco fica por mais que teimem deitar-lhe nódoas, manchá-lo. É com essa alvura e com a abundância do amor do meu divino oração que Eu derramo sobre ele que ele há-de atrair para Mim as almas e levar ao mais lato grau d e perfeição algumas das que lhe confiei. Criei-o para as almas; pelas almas tem de sofrer. Ele bem depressa retomará o seu posto. A sua inocência e a brancura da sua alma mais se justificarão com os acontecimentos dos factos[1]. Eu não queria que os homens assim, mas permiti-o para maior glória minha, grande brilho e triunfo da minha divina causa e bem das almas.

Dá ao teu médico os agradecimentos de Jesus pela defesa que tomou pela causa divina. Diz-lhe que quando ele escrever alguma coisa em defesa dela, tomará a sua mão e a guiarão a mão de Jesus. O divino Espírito Santo iluminará a sua inteligência com a sua luz divina. Eu o encherei de Mim, do meu divino amor e farei que ele o comunique aos seus como doença que a todos contagie, como veneno que tudo envenena. Farei que ardam de amor por Mim.

Dá o mesmo agradecimento a todos os que te rodeiam e amparam e grande lugar ocupam em teu coração. Todos os que estão elevados em teu coração também o estão no meu. Elevo-os às alturas no amor, assim como os elevas tu. Dá-lhes, dá-lhes por Mim os meus agradecimentos.

Disse a Mãezinha:

― Une, minha filha, aos de Jesus os meus também e leva-lhes, junto ao de Jesus, o meu amor com a minha ternura e protecção.

― Obrigada, meu Jesus; obrigada, Mãezinha. Parece-me tão humilhante Jesus e Maria Agradecerem a umas criaturas suas! Mas faça-se como quereis e, custe o que custar, eu obedeço, meu Jesus; sou a vossa vítima.

― Se soubesses, minha filha, se pudesses compreender aqui na terra o que é defender a minha divina causa e o que é amparar a maior vítima que tenho na terra, vias que eram justos e louváveis os meus agradecimentos. Bem depressa tudo verás no Céu, tudo compreenderás, e então sem prejuízo da tua alma. Se soubesses as riquezas que te dei no ano que terminou, para por ti serem dadas às almas, que alegria e consolação sentirias! Não te preveni Eu, no princípio dele, da mistura de dor e alegria, mas essa alegria não seria para ti? O mesmo te digo hoje. As tuas alegrias ficam para o Céu, que está próximo. Foram e serão alegrias para aqueles que estudam a minha divina causa e a compreendem ao saberem como te enriqueci. Foram e são alegrias para as almas que vieram e hão-de vir por ti ao meu divino Coração. Coragem! Os Anjos levam aos braçados as flores das tuas virtudes, formam com elas a mais rica, a mais formosa coroa. Que bela que está e adornada por todos os pecadores que por ti são salvos! Vai para a tua missão, para a nobilíssima missão que te confiei. Vai dar às almas, vai semear pelo mundo a pureza e o amor. Coragem! A minha paz, a minha força é contigo.

― Obrigada, meu Jesus.

10 de Janeiro de 1947 – (sexta-feira)

Perguntam-me se amo a Jesus. Não sei se O amo, mas sei que O quero amar; não sei falar-Lhe nem sei como Lhe falo; se que tudo se mergulha nas trevas e aí desaparece e morre. São tantos os meus sofrimentos! É tanta a minha amargura! Todos os meus caminhos parecem ser de sangue, mas as minhas trevas engolem tudo mas rápido que furiosas feras. O meu corpo é como o grãozinho que nunca acaba de ser moído; não cessa de moer, não falha a levada que o moinho toca. Vivo assim abandonada, sem na terra encontrar conforto. Nem nas minhas confissões que procuro serem frequentes, para mais enfortalecer a minha alma com a graça do sacramento, nem nesse encontro alívio e conforto. Seja o pároco, seja o que está a fazer o lugar de meu director espiritual, estou sempre tímida, assustadíssima e a sentir sempre que não sou compreendida. Será minha a culpa, meu Jesus? Ou sois Vós que assim o permitis? Bendito sejais! Ai de mim, de quantos desabafos precisava e minha pobre alma! Quando me sinto quase perdida, a cair no abatimento e desespero, rompo por entre as trevas em espírito e lanço-me nos braços de Jesus. É dele e da querida Mazinha que eu espero auxílio, conforto e paz. Nesta angústia, sem Os ver, sem sentir que estou em seus braços, sinto-me acariciada e estreitada a um peito todo bondade. E, neste momento, sinto-me respirar, libertada de todo o peso que me esmaga; com a alma tranquila, volto bem depressa para as mesmas amarguras.

Foi no dia 7 o quinto aniversário da proibição do meu Pai espiritual vir junto de mim. Tudo recordei, cena por cena, passo por passo. A Santa Missa que no meu quarto celebrou, ó meu Deus, que saudades! As lágrimas que chorei por saber que alguém tinha publicado o que tinha observado da paixão, e eu, que tanto ansiava viver escondida, ver-me assim com as minhas coisas íntimas espalhadas. Mal eu sabia que não voltaria, em tantos anos, a ter o meu Pai espiritual, que tão bem compreendia a minha alma e em tanta pureza a queria, a dar-me os seis santos conselhos e a luz que tanto precisava! Meu Jesus, sou a vossa vítima: faça-se em tudo a vossa divina vontade.

Continuo a sentir o meu corpo a desfazer-se em cinzas de fogo com a chuva queimadora que sobre ele cai. Cansa-me ao máximo, deixa-me sem vida. Combati com o demónio; aproximou-se de mim furioso. Veio como quem vem vestido e logo ao pé de mim se despiu. Principiou com as suas feias cenas e tremendos conselhos. Invoquei os nomes de Jesus e da querida Mazinha, muitas vezes. Terminou este combate e eu fiquei como se estivesse morta. Não sei dizer a perda de vida que senti em meu coração. Não combatia, mas sabia que estava debaixo do seu poder. E ele, desviado um pouco, ria-se e lambia-se de contente. Travou-se logo a seguir outro combate. Meu Jesus, sou a vossa vítima; aceitai-me todo este sofrimento para o que Vos aprouver, para os vossos fins divinos. Ai, quanto me custa! E se eu soubesse, Jesus, se eu soubesse, Mãezinha, que não Vos ofendia! No meio do grande perigo, gritei bem alto, de alma e coração: ante o inferno que pecar. Senti-me libertada sem ver fugir o maldito; fiquei na minha posição, com a alma em grande tranquilidade e paz. Este conforto foi a vida para novos sofrimentos. Vieram as dúvidas, veio o Horto.

Era de tarde, o sol luminoso entrou no meu quarto. Este sol era a luz para todos, era a luz para o mundo, menos para mim que só via trevas. Senti o coração, não o copo prostrado no Horto duro. Eram tais os arrancos que ele dava que parecia obrigar o corpo a rolar pelo chão e a suar sangue.

Veio a noite e então senti-me em corpo e em espírito lá. Era moída, esmagada. Era tão grande o peso da justiça divina que me pareceu que se virou o solo do Horto com o de cima para baixo, e eu, nele infundida, fui mais aniquilada. Vi depois a prisão de Jesus, o trocar de espadas, as armas dos soldados. Que grande combate, se Jesus com os seus olhares divinos e o levantar da sua mão não acalmava e fazia tudo serenar.

Hoje, no caminho do Calvário, senti Jesus curvado dentro de mim, com a sua grande e pesada cruz. As bagadas de suor que corriam do seu santíssimo rosto caíam dentro em meu peito. E eu sentia o seu divino Coração ofegante pelo cansaço. Os seus lábios iam serrados, o amor O arrastava. No alto da cruz sentia todas as chagas, mas mais vivamente a do ombro e a cinta ainda parecia ser cortada pelas cordas. A pouco e pouco todo o Calvário ficou em silêncio: só os suspiros de Jesus se ouviam, só a dor reinava aumentada com o rancor de muitos corações que, abafados não sei pelo quê, já não falavam. Eu no meu coração sentia como se todo o mundo maltratasse e apedrejasse Jesus mesmo ao vê-Lo assim a agonizar. Uni-me tanto às dores da Mãezinha; ansiava com Ela tê-lo em meus braços para curar o seu divino corpo tão chagado. Que dó, que compaixão por Jesus! Que mútua união de amor e agonia! Veio o meu Jesus e logo transformou a minha alma.

― Minha filha, a cruz é vida, é amor, sinal de redenção. Eu serei contigo, sofro, venço em ti. Os teus caminhos de sangue, os teus espinhos, orvalho doloroso que cai sobre ti, são o bálsamo, a consolação e reparação do meu divino Coração. A tua vida é amor. Assim como não cessam um só momento os crimes do mundo, não cessam também de cair sobre ti, que és a minha vítima, a chuva da imolação, do sacrifício, do martírio. Tem coragem, é contigo, em ti está o teu Esposo Jesus. O Céu espera-te, aproxima-se; bem depressa receberás a glória, o prémio do teu martírio. Vês, minha filha, como os pecadores tratam o meu divino Coração? Repara na minha sacrossanta cabeça, tão cheia de espinhos! O que seria do teu Jesus sem a reparação que Lhe dás? Vês esta chaga? Trespassa dum lado ao outro o meu Coração: foi um sacerdote. Com que maldade ela foi feita! Repara por ele. Sabes quem foi?

― Meu Jesus, se é do vosso divino agrado, se não Vos entristeço com o que vou dizer-Vos, deixai-me falar.

― Fala, minha filha, diz-me tudo.

― Pedi-me a reparação que quiserdes, aceitai por ele todos os sofrimentos que Vos aprouver, mas sem que eu saiba quem ele é, sem me dizerdes o seu nome. Não posso eu reparar-Vos desta forma?

Jesus alegrou-Se tanto e transformou logo o seu divino Coração em amor, em fortes labaredas. Aquela ferida que o vazava dum lado ao outro desapareceu: tudo era luz. A sua santíssima cabeça ficou sem espinhos e sem sinais de ferida. E aquele amor de Jesus abrasou-me a mim também.

― Que transformação tão grande, meu Amor? Para onde foi aquela chaga tão profunda e todo o ferimento, todo o sangue que o Coração continha e a vossa santa cabeça?

― Foi o teu amor, foi a tua generosidade no sofrimento: deixares-te imolar sem saber por quem. Dá-Me então a reparação que te pedir, dá alguns combates do demónio. Não tos pedirei muito tempo. Quando estiver próximo a deixar de te falar, quando a cegueira não te deixar exprimires a tua dor serás libertada dele: não permitirei que ele volta a atormentar-te de tal forma. Tu ficarás como se não tivesses inteligência para não compreenderes a tua dor, mas não deixarás por isso de sofrer menos: sofrerás amargamente. Hás-de sentir como se nunca ou quase nunca Me possuísses, e não deixarás por isso de Me possuir inteiramente, o mais que é possível possuir-Me uma criatura humana. Eu farei a graça de muitas almas verem em ti inteiramente a Mim com toda a minha riqueza, com os tesouros inesgotáveis do meu divino Coração. Tu és, minha filha, e serás depois da tua morte, para cada alma em pecado, um pára-raios a atrair a si o peso da justiça divina. E serás para cada alma em graça um íman atraente a traí-las a ti, a buscarem o amor que em depositei. Prometo-te isto, minha filha: seres toda vida, toda amor, toda graça para as almas. Promete seres luz para toda a humanidade. A chuva de fogo que sentes cair sobre ti era para já ter caído sobre ela: és vítima, sofre alegre, o teu peito é um jardim divino, porque nele habita, no trono do teu coração, o Jardineiro celeste. És o cofre, és a depositária das riquezas e toda a graça e poder do Senhor. Vai, pomba querida, vai para a tua cruz, cruz de amor, cruz de salvação. Vai dar ao mundo, vai dar às almas o que te dá Jesus. Vai, corajosa, vai mãe das almas! Vai, leva contigo a minha força divina, a luz do Espírito Santo. Vai depressa, para não demorarmos este colóquio.

― Obrigada, meu Jesus; obrigada, meu Amor. Dai-me o que quiserdes e como quiserdes. Eu não busco a minha honra e glória, mas sim a vossa; eu não sofro com os olhos no prémio para mim, mas sim com o fim de Vos salvar as almas.

Quando Jesus disse que o meu peito era um jardim, eu possuí tanta luz que me mostrou que todo o meu peito era um vasto jardim de encantadoras flores. Mas já tudo desapareceu. Perto de terminar de ditar tudo isto, o meu espírito ficou como que encerrado numa negra prisão de ferro ou bronze onde não podia entrar luz, entendimento nem vida. Em que trevas estou já mergulhada!

Meu Jesus, sou a vossa vítima. O vosso amor, o vosso amor, só Vós, Jesus: outra coisa não quero, só o vosso amor em basta.

17 de Janeiro de 1947 – (sexta-feira)

A dor desfaz o meu corpo e tão desfeito que me parece que não existe, que só ela vive. Eu já nem sou um trapo podre; não sou nada. Oh, como eu sofro! E tão oculta; só Jesus conhece. E por amor d’Ele e por amor às almas, eu escondo o mais possível. Sofro com Ele; basta que Ele o saiba. Queixo-me, gemo, quando sinto que mais não posso. Mas a alma, a pobre alma, alastra-se, estende-se mais ainda o seu sofrimento. A dor faz a alma desaparecer tanto que já nem é um pouco de fumo que no ar desaparece.

Ó meu Jesus, não tenho a vida da alma nem do corpo, sustenho só a dor; e é ela e é com ela que estou a viver dentro de mim. É a dor a companheira inseparável da vida interior, da vida íntima com Deus.

Digo a Jesus: Quero viver dentro deste corpo que não existe, quero viver lá tão dentro a vida interior, a vida íntima com Deus Pai, Filho, Espírito Santo que não quero sair cá fora cuidar do exterior sem deixar de viver sempre no interior.

Ó meu Jesus, meu Jesus, não deixeis que o mundo me separe de Vós!

Mas eu não sei viver e sinto que nunca aprenderei a viver aquela vida perfeita, aquela vida do alto que tanto anseio viver. Perco-me à procura desta vida que não sou capaz de possuir; mas são tais as ânsias que tenho de a viver que por vezes parece cair no abismo dessa vida e, na realidade, deixar de aqui viver. Não é a vida: parece uma nuvem vaga que me absorve e leva não sei para onde. Nada disto é visto aos olhos do corpo, nada disto é palpável; são coisas da alma, e nada mais sei dizer, pobre de mim; sinto que não amo, sinto que não sou perfeita.

Quantas mais e maiores ânsias de perfeição, mais podridão, mais horror, mais miséria! É o que me mostra e faz ver a minha cegueira, por vezes tão aterradora.

Tive com o demónio dois ataques violentíssimos; foi mais tempo, mas não sei quanto. Creio que chamei uma vez alta por Jesus e pela querida Mãezinha que viessem acudir-me em tão grande perigo. Não fui ouvida, a não ser por estes amores queridos. Durante a luta queria sair dela só para não pecar. Via-o satisfeitíssimo por me obrigar a pecar. Fiquei por um espaço de tempo a dizer: não quero o gozo, não quero pecar, não quero ofender-Vos, Jesus; não, não, não quero.

Quando isto repetia muitas vezes, ouvi uma voz doce que me disse:

― Não queres não, Minha filha; sei que não queres e não pecas; sossega, vem descansar.

Tomei a minha posição e o demónio fugiu. A minha cabeça, o meu corpo, a minha roupa estavam ensopadas em suor. E o meu coração sem vida e sem poder resistir à dor do pecado disse a Jesus:

Aceitai todas as gotas deste suor como actos de amor para os vossos sacrários e cada uma delas sejam prisões que prendem as almas ao Vosso divino Coração e as arrastam das garras de Satanás.

Sentia a paz da alma, mas sentia a dor e temia com aquela dor receber Jesus, que não demorava muito a vir. Quando Ele veio e deu entrada em mim esqueci-me por completo da luta enquanto Lhe dei graças.

Depois voltei à dor, à pena, ao receio de ter pecado.

Na tarde de ontem, de um momento para o outro, senti cair sobre os meus ombros um peso esmagador. A alma viu que era o Céu que descia, era a justiça de Deus. Pouco depois, e sem pensar nisso, senti-me quase nua, presa à coluna e em público, em lugar onde todos podiam ver-me.

Já à noite, dentro dumas muralhas, à saída do portão que dava saída para o Horto, senti que Jesus chorava dentro de mim, chorava escondido, chorava de dor; essa dor abriu-Lhe o coração e fez como se Ele no mesmo momento desse ali todo o sangue. Com a Coração aberto vi dali toda a viagem do Horto. Para lá puxava-O o amor e para cá empurravam-no os maus-tratos de toda a humanidade atrás de Jesus representada. Que grande dor, que doloroso martírio sentir e ver tanta ingratidão!

Fui levada logo por umas grandes escadarias à presença dos Juízes. Como eu sofri, ao sentir Jesus, grandeza sem igual diante deles, ser tão pequenino, ser mesmo um nada! E eles, os verdadeiros nadas, cheios de orgulho e vaidade, cheios de grandeza sem nenhum poder. Abateu-se o Poderoso, e elevaram-se no seu orgulho, aqueles que nada tinham. Como Jesus sofria caladinho!

Hoje, com o coração retalhado, segui com a cruz, em marcha apressada, os caminhos do calvário. Uniam-me os pedaços do coração, ligavam-nos uns aos outros fios finíssimos de amor. Só o amor era a vida. Quanto mais caminhava e subia, mais alto se me atravessava a montanha. As golfadas de sangue eram quase contínuas e o desfalecimento levava-me à terra.

Que segredos indizíveis a alma via em tão grandes sofrimentos, em tão dolorosa viagem e por último no Calvário. As trevas negras da noite não impediram que a alma pudesse pressentir todos aqueles segredos, segredos que só a sabedoria dum Deus pode e sabe revelar. Foi unida a essa sabedoria, de quem eu nada sei dizer, que eu me senti obrigada a sofrer e a agonizar. Quantas lágrimas de Jesus, e eu não uni as minhas às d’Ele; não uni as dos olhos, mas sim as do coração, e tanto mais chorava, quanto mais ouvia e sentia o Seu brado agonizante.

Meu Jesus, disse-Lhe eu, como é doloroso, quanto me custa este calvário; mas amo-o!

E assim fiquei, até que Ele veio; e toda a noite desapareceu.

― Minha filha, a dor é para a tua alma o que o cadinho é para o ouro; é ela que a purifica e faz grande aos meus divinos olhos. Tem coragem! A tua alma é pura, é grande, grande para Mim. À medida que ela se tem feito pura e grande, Eu te tenho acumulado das Minhas graças. És grande para Mim, és grande para as almas. Os Anjos escrevem o teu sofrimento, todo o teu martírio, e Eu vou-te enriquecendo com Meus tesouros, as Minhas maravilhas.

Meu Jesus, quero ser pequenina, para só ser grande com as Vossas coisas, com aquilo que é Vosso. Quero ficar vazia, de todo vazia, para só Vós me encherdes. Quero em mim Jesus, Jesus, só Jesus.

Quero ser grande, por Vosso amor e para Vos consolar; quero ser grande para salvar-Vos as almas; e para mim pequenina, sempre pequenina. Não é para glória minha que busco a grandeza do céu, mas sim para Vós, só por Vós. Tende dó de mim, sinto-me tão fraca, incapaz de nada, sem saber sofrer e sem saber amar-Vos.

Coragem filha querida; tudo em ti é amor, mesmo assim entremeado com as imperfeições, imperfeições que Eu permito. Quanto mais Me ansiares, mais Me possui; quanto mais sofreres, mais Me amas e mais almas Me salvas; quanto mais te sentires desaparecer e morrer, mais em ti aparecem as Minhas obras e mais vida dás às almas. Coragem! Vem a Mim levantar o teu desfalecimento. Neste momento, Jesus ficou na cruz todo chagado, coroado de espinhos e do Seu divino Coração nascia constantemente uma fonte de sangue. Eu não chegava a Jesus, mas senti como se uma força me elevasse e sustentasse junto a Ele. Minha filha vem à chaga do Meu divino Coração, não beber, porque não podes aguentar tanto sangue, mas sim refrigerar nele os teus lábios, saciar a tua sede e amor.

Uni à chaga de Jesus os meus lábios e sem beber o sangue senti o meu coração abrasar-se em fogo. Passado algum tempo, Jesus fez com que eu retirasse dele os lábios e, elevando-me acima um pouquinho, uniu os Nossos dois corações, deixando cair no meu uma gota do Seu sangue divino, continuou:

― É o Meu sangue que é a tua vida; é esta vida que dás às almas; é vida de salvação.

Ó meu Jesus, sofro tanto e de nada valem os meus sofrimentos. Onde está a representação que Vos dei? Em que estado estais Vós? Eu não posso ver-Vos assim sofrer: exigi tudo o que quiserdes de mim; fazei que eu sofra o que Vos aprouver, mas saí dessa cruz e não Vos deixeis chagar assim.

― Minha filha, este sofrimento ainda não tem reparação; se queres reparar-Me, dá-Me mais sofrimentos; se não queres que as almas caiam no inferno. Que loucura e maldade é a do mundo! Como Eu sou ofendido!

Já sabeis, meu Jesus, que sou sempre Vossa vítima; quero a vossa consolação, quero almas.

― Basta, basta, nada mais é preciso; vem tu tirar-Me da cruz e curar-Me as Minhas chagas.

Pude tirar os cravos das mãos e dos pés sacrossantos de Jesus; cada cravo que eu Lhe tirava, logo a chaga cicatrizava. Tirei-Lhe, com toda a cautela, a coroa de espinhos e, com os meus lábios, ou não sei com quê, cicatrizei a chaga do Seu divino coração; deixou de escorrer sangue; a cruz desapareceu. Jesus ficou Formosíssimo, sentado no trono, coroado de Rei e cheio de glória. Tudo n’Ele e à volta d’Ele era amor; por toda a parte se irradiava.

― Olha a tua generosidade, a tua reparação, a tua aceitação do martírio. Não sofro senão em ti, revestido em ti, sozinha não sofro. Vai, pérola de Jesus, jóia preciosa; vai confiada em Mim, vai dar ao mundo a Minha vida, vai convidá-lo à penitência, vai pedir-lhe pureza, graça e amor; vai sofrer por ele. Leva a minha paz. Tem coragem, confia sempre que Eu sempre em ti vencerei.

― Obrigada, meu Jesus. Guardai-me só para Vós. Sede a minha força; não me deixeis ofender-Vos. Não morre a minha vontade, não desaparece o meu eu. De vez em quando vou a querer dizer: não quero escrever mais, não quero aparecer diante dos meus nem dos meus grandes amigos; de todos tenho medo. Em tudo aparece o meu querer. Ó minha cruz, eu quero-te, eu quero-te.

24 de Janeiro de 1947 – (sexta-feira)

Não posso falar e tenho que falar. Sofro horrivelmente e não compreendo a minha dor. Caí num tal abismo de cegueira que nada vejo nem sei compreender. Apesar do meu viver ser dor, sempre dor, mergulhei-me nela e nem um só momento posso libertar-me. Perdi toda a vida; só a vida do sofrimento ficou, e, sem fim de toda a espécie de sofrimento contínuo, estou louca a querer viver, a vida para onde o meu coração e a minha alma batem as asas, levantam voo, lá vão voando noite e dia à procura daquela vida que não conseguem viver. Tão sequiosa e faminta, por vezes me parece cair das alturas à terra; é o desfalecimento de não encontrar aquilo por que tanto suspiro. Quando estou caída e triturada de toda a dor, a sentir ir quase a naufragar, a desesperar-me por completo eu chamo pelo meu Jesus, pela querida Mãezinha: vinde em meu auxílio, vinde acudir-me, eu sou Vossa inteiramente Vossa, eternamente Vossa, sou a Vossa vítima, não me deixeis ofender-Vos. Neste duro martírio logo o meu coração e a alma são transportados para um enlevo, para uma vida que os absorve e parece tirar da terra. E logo posso levantar-me e caminhar abraçada à minha cruz, louca, de amor por ela. Estes momentos de enlevo são raros, mas alimentam a alma; fico mais forte, por algum tempo; posso melhor resistir à dor. Tenho passado noites de tormentosos sofrimentos. E a Mãezinha, a querida Mãezinha do Céu tem vindo junto de mim, mostrando-me o Seu coração como Mãe do Perpétuo Socorro, e, ainda outras vezes, trazendo consigo um Menino Jesus muito pequenino. Estas visões são rápidas, mas confortam-me; sinto-me outra, por algum tempo. Ora confortada, ora desfalecida, vou passando as horas e os dias, vivendo dentro em mim a adorar a Trindade divina, a quem tanto amo. Unida a Jesus, unida à Mãezinha, balbuciando os Seus Santíssimos Nomes, vou sentido sempre contra mim a grande tempestade, a grande derrota, mas com o coração fito no Todo Poderoso e os olhos fitos no Céu, saudosa Pátria por que tanto suspiro, espero levar ao cimo da montanha a minha cruz. Foram dois os ataques do demónio na noite que passou. Antes da luta andou horas a sondar à minha volta. Parecia que eu mesma era o inferno e que pedaços do inferno caíam sobre mim. Que bichos tão feios, que medonhas serpentes me rodeavam! É o sofrimento mais amargo, por ser num ponto tão delicado. Que medo, que medo de pecar! Ouvi as suas feias lições e maldosos ensinamentos; forçava-me por os não atender; só por Jesus e pela Mãezinha chamava. Vieram muitos demónios e alguns em forma de animais. Terminou a luta para, pouco depois, principiar outra. Não sabia quando terminaria, mas sentia-me não poder mais. Depois de um brado contínuo pelo nome de Jesus não O vi, mas senti na alma como se Ele levantasse a mão e ouvi uma voz que dizia: aparta-te, retira-te para o teu lugar.

― Descansa, Minha filha; és Minha, sossega, não pecaste.

Retirou-se o maldito desesperado, mas ainda por algum tempo passavam à minha frente vultos pretos; pareciam pedaços de negras nuvens. Com a alma em paz, passei por um ligeiro sono. Ao acordar, logo fiquei a sofrer por nem uma só vez receber o meu Jesus sem um ataque do demónio, depois de me ter confessado para ter a minha alma muito pura para O hospedar.

Bendita seja a vontade do Senhor! Ao terminar o dia de ontem, ao chegar à noite, senti-me tremer e comigo tremer toda a terra. Senti os sofrimentos causados por todo o mundo, e do mesmo mundo senti todo o medo. Apavorei-me. Afastou-se tanto, tanto de mim o Céu que fiquei como se da terra não pudesse fitar o firmamento. Tudo tinha desaparecido, só o Horto ficou. Principiei a sentir da cabeça aos pés o corpo cheio de gotas de sangue. De novo voltou o mundo inteiro a aproveitar-se dos meus sofrimentos, a servir-se do meu sangue. Oh! Que diferença! A maior parte lançava-se a mim como feras, despedaçavam-me as carnes, causavam-me ainda mais dor. O número mais pequeno servia-se do meu sangue, ou, para melhor dizer, do sangue de Jesus, mas com mais paz, com mais doçura, com mais amor. Refugiada, escondida de todos os olhares pude chorar. E, logo depois, subi a encosta debaixo de uma chuva de pontapés e varadas. As lágrimas de Jesus continuam, dentro em meu coração. De manhã, continuou o coração a receber os maus-tratos em toda a tragédia do Calvário; foi ele que foi calcado e arrastado. No Calvário para serem revirados os cravos não foi virada a Cruz rente com a terra, mas sim levantada a alguma altura para o rosto de Jesus e todo o Seu Santíssimo corpo ser ferido novamente com toda a crueldade. E quando foi para ficar ao alto que grandes dores eu senti em todas as chagas ao deixá-la cair na cova com tanta força; pareceu cair num poço E, ali com Jesus, sofri imensas trevas. Ele, moribundo, observava tudo. Perto de dar o Seu último suspiro, a um impulso do coração, vieram-Lhe ainda aos lábios algumas golfadas de sangue e correram no Seu Santíssimo rosto as últimas lágrimas e agonizou; agonizou e viveu; agonizou e falou-me.

― Minha filha, branco lírio, pomba querida, consolação e amor do Meu Divino Coração, guia e conselheira das almas, cópia mais real e fiel de Cristo crucificado. Eu uno, minha filha, à tua missão à mais alta e nobilíssima missão todas as minhas graças, todos os meus tesouros e méritos da Minha Santa Paixão, para teres todo o poder para melhor desempenhares a missão de nova redentora. É Cristo que sofre em ti, é Cristo que fala, vê e move em ti. Ó bela, ó encantadora, ó altíssima missão, a missão das almas. Mas nada podia fazer, filha querida, sem o teu consentimento, sem a tua generosidade, sem o teu amor. Quanto te deve o mundo, quanto te devem as almas! Faço-te poderosa, e faço que maior número de almas se encontrem e atraem para ti e vejam em ti o que é Meu. Eu dou luz; eu faço luz; mas ai pobres daqueles que mais se deviam deixar iluminar dessa luz e não deixaram; por Mim Lhe pedidas rigorosas contas. O brilho é da Minha divina causa, a dor é tua. Ela não podia passar sem prejuízo, senão à custa dos teus sofrimentos. Tem coragem! É Minha a vitória. A causa divina está na sua primavera de flores, flores que em toda a parte do mundo depressa vão desabrochar. São flores saídas dos teus espinhos. A tua vida é a vida de luz, vida de salvação. Quantas almas por ti se irão converter! Quantas levadas pelo teu exemplo, imitar-te-ão seguindo os teus caminhos atraídas por ti. Que milagres prodigiosos! Para tudo isto, minha filha, é sempre preciso a tua dor. Eu estou pronta, ó Jesus, para tudo sofrer e amar; pronta para Vos deixar trabalhar em mim à vontade. Manejai o meu corpo como Vos aprouver contanto que sempre em mim estejais Vós para com a Vossa força sofrer para com o Vosso amor eu amar. Vem então, Minha esposa querida, tirar do Meu Divino Coração estes punhais, estas espadas, que tão cruelmente o ferem. Tira-mas tu, uma a uma, e depois com o teu amor, com a tua reparação cura-lhe todas as feridas, para ficarem de todo cicatrizadas; para dares-Me a maior prova do teu amor, tira-as e crava-as em teu coração, para ficarem continuamente a ferirem-te.

Voltei-me para Jesus, vi-Lhe o Seu lado aberto e por aquela abertura saíam os cabos das lanças e punhais que tão vivamente Lhe atravessavam o Coração. Eram tantas! Muito devagarinho, a tremer de dor e de compaixão por Jesus, principiei a tirar-lhas e com toda a força a cravá-las em mim Longe de terminar, caí desfalecida. Senti mais a dor a tirá-las de Jesus, porque me parecia feri-Lo ainda mais, do que ao espetá-las em mim. Parecia-me que o sono da morte me ia levar. Jesus levantou-me, acariciou-me e incendiou d’Ele para mim labaredas de fogo e disse-me:

― Coragem! Coragem!

Pude continuar a tirar-Lhas todas. E depois Jesus uniu o Seu peito Santíssimo ao meu e disse-me:

― Cura-Me todas as feridas. O teu carinho, o teu amor, a tua reparação é o bálsamo. Meu Jesus, sou a Vossa vítima, amo-Vos. Como pode haver coragem para Vos ferir assim meu Jesus! E de que servem os meus sofrimentos se não evitam os Vossos? Sossega, sossega; a tua reparação, o teu sofrimento curam-Me as feridas para poder de novo receber outras. E evitas de tantas e tantas almas caídas no inferno! Ele lá vai continuando fechado. Os pecadores salvam-se, aos milhares, aos milhões. Olha para Mim; já não tenho em Meu coração nem uma só ferida.

Vi o coração Divino todo em fogo e vi cerrar-se o lado de Jesus que estava aberto. Ele ficou todo resplandecente de luz. Vai em paz Minha filha amada; vai corajosa, vê o valor da tua dor. Vai semear; É florescente a tua sementeira.

― Coragem! Tua dor, o teu amor é a salvação do mundo. Pede: não te canses. Quero oração quero penitência, quero emenda de vida, a principiar pelos sacerdotes. Foram deles os primeiros punhais que me tiraste; são eles que mais Me ferem por serem discípulos Meus. Haja reparação. Ai, tanta inocência perdida, tanta vida roubada ao Céu antes da sua existência na terra. Ai que maldade humana! Até por um grande número de velhos anciãos sou ferida. Que horror, que horror; tudo é lodo. Sofre com alegria Minha filha, dá-Me o teu amor. Tem coragem, não te enganas, vai em paz.

― Obrigada, Meu Jesus. Sede a vida da minha dor, sede a força do meu Calvário. Fiquei a sentir no meu coração os punhais que lhe cravei, e sento o peito aberto como estava o de Jesus. Quero sofrer; é por Ele e pelas almas.

31 de Janeiro de 1947 – (sexta-feira)

Faltará muito para chegar ao cimo do meu Calvário? Não sei, o que sei, o que sinto é que cheguei ao auge da minha dor, dor que, sem um grande auxílio do Céu, já teria chegado ao desespero. Que dias tristes! Que dolorosa amargura! Que horas trágicas e de tanto desfalecimento! O meu olhar fixo em Jesus e na Mãezinha falavam mais do que os meus lábios; era a pedir-Lhes socorro; e juntamente ia o murmúrio do coração com um estreito abraço a tudo o que era dor.

Por Vosso amor, Jesus, por Vosso amor, Mãezinha, e pela salvação das almas. Mas com o aumento da dor e tentar esconder as minhas lágrimas pensava: se não fosse a graça do Sacramento, não queria junto de mim um sacerdote; queria-me abandonada, como de verdade eu me sinto. Queria dizer aos meus amigos que fizessem de conta que não existi no mundo; queria esconder-me de todos os olhares. Jesus basta ao meu coração, mesmo a sentir que nada O possuo. Uma tempestade fortíssima me absorvia; tempestade desastrosa, tempestade sem remédio. Fui lutando, fui chorando e dando a Jesus as minhas lágrimas; Ele foi vencendo em mim; Ele sem que eu o sentisse, levantou-me, e encaminhou-me a romper por entre as trevas: Bendito seja Deus! Valha-me o grande poder de Deus, valha-me a grande caridade de Deus, valha-me o amor imenso, o amor infinito de Deus. Assim costumo dizer, assim vou vencendo. Sinto em meu coração as grandes espadas, os grandes punhais que há oito dias me ficaram cravados; quanto mais me trespassam, quanto mais mo cortam maiores se fazem; parecem crescerem, momento a momento. Estes punhais vêm do meio do mundo; é dele que me atingem o coração; é o mundo que os move; são mãos cruéis que os obrigam a cortarem com seus fios afiadíssimos. Quando eu sofro assim, o quanto não sofrerá Jesus! Ah! Se eu pudesse atrair para mim todos os sofrimentos e não deixar que nem um só fosse ferir o Coração Divino de Jesus! Ele deu-me há dois dias um grande mimo, um mimo do Seu Divino amor. Ao recebê-lo parece que todas as amarguras me atingiram mortalmente o que fez tirar-me toda a alegria e consolação que desse mimo podia receber. Se Vós quereis assim, Meu Jesus, porque o não hei-de querer eu também! Para Vós tudo, toda a consolação e amor. Faça-se em mim a Vossa vontade divina. Este mimo passou em mim despercebido, mas deixou-me o coração forte; foi como que uma injecção que o ajudou a suportar novos golpes que o vieram ferir. Louvado seja o meu Senhor que tanto tem para me dar e tão cuidadosamente vela por mim. Se eu soubesse corresponder às graças do meu Jesus! Foi dolorosíssimo, foi amargosíssimo o meu Horto de ontem, foi um Horto de todo o dia e da maior parte da noite. Fazia por retirar dele o meu espírito, mas não sei o quê, uma força invisível me unia, prendia o coração àquele solo duro e triste; era um Horto mundial ladrilhado de pedra dura, rochedo inquebrável. Lançou-se sobre mim o peso brutal da humanidade; o seu peso esmagou-me, abriu-me o peito, tirou-me a vida superior, sublime, muito sublime, deu-lhe entrada no coração e abrasou toda a humanidade em amor; triunfou da morte e abraçou toda a ingratidão humana. Vi à minha frente uma floresta de espinhos que atingiam grande altura. Desses espinhos foi formada a minha coroa; tive que atravessá-los e neles da cabeça aos pés foi todo o meu corpo ferido; espetados neles ficaram muitos pedaços das minhas carnes. Logo a seguir, pela noite fora, andava o demónio, à volta de mim, a querer-me assaltar. Várias vezes me convidou ao mal e me ensinou as suas feiíssimas palavras. Veio a madrugada, travou-se então o combate. Em forma de animal, assaltou-me; tive que combater. Não deixei de bradar ao Céu em tão tremenda luta; porém este parecia-me fechado e surdo.

Satisfeitos os gostos do maldito, deixou-me; mas, ó meu Deus, como me deixou ele! Deixou-me despercebida, não o vi fugir; levou consigo a inocência, deixou comigo a maldade. A culpa era só minha. Fiquei como caída na valeta da estrada, não podia levantar-me nem tão pouco levantar os olhos ao Céu para os fitar em Jesus. Que indizível vergonha! Não sei por quem fui levantada, mas sentia a minha alma chorar com profunda dor. Tem ferido o meu Jesus? Com a vinda d’Ele ao meu coração esqueci mais as maldades do demónio; pude unir-me mais a Jesus e desabafar com Ele. Os meus espinhos do Horto deram princípio às ruas estreitas e tristes do Calvário. Segui por entre eles abismada na noite mais negra; neles perdi a carne e o sangue. Subi ao cimo da montanha e a mesma noite se espalhou nela. No alto da cruz que era eu e nela estava pregada. Sentia o levantar do peito de Jesus, o seu ofegar, palpitar do coração. Sentia o brado triste, o eco agonizante dos Seus gemidos; sentia o Seu sangue divino que caía ao pé da cruz. Sentia uma dor de alma que a obrigava a chorar e a dar a vida despedaçada de dor. Eu não podia aguentar aquela dor que era de Jesus. O que Ele sofreu! Ai a dor do Calvário, a dor, a visão da maldade humana. Eu não resisti; por alguns momentos pareceu-me mesmo a minha morte ser real. Não quero pensar, porque não posso recordar o sofrimento do meu Jesus. Ele veio; fez-me viver.

― Minha filha, levanta-te, tem coragem, vem seguir os caminhos dolorosos do Teu Esposo Jesus. Repara, olha a montanha, estás quase no fim, pouco tens que subir, pouco tens que caminhar. Olha a cruz, olha o seu brilho, vê tantos raios luminosos; são raios saídos de todas as suas chagas; são raios saídos de todos os espinhos que a tua cabeça cinge. Saem de ti, saem de mim que em ti estou, de ti Me revesti: são raios poderosos, raios atraentes, raios de salvação. Olha como correm aos bandos para eles as ovelhinhas; são as almas, vêm de ti para mim. Coragem! Olha o valor da tua dor, do teu calvário.

Vi a montanha, vi a cruz; parecia estar de sol iluminada. Eu já tinha quase subido tudo, estava perto dela; mas era aquela a minha cruz e via-me como se nela estivesse cravada. Dos pés, das mãos, do coração, da cabeça saíam fortes raios de luz; vinham penetrar na terra. Fez-me lembrar o arco-íris que vai absorver a água ao rio e ao mar. Para todos aqueles raios que rodeavam a cruz, vinham de todos os lados, grandes rebanhos de ovelhinhas; não lhes via o fim. Oh! Como era belo vê-las atraídas para aqueles raios sem que ninguém as guiasse, sem levarem pastor. Meu Jesus, oh! Como é belo e atraente o amor do Vosso divino coração.

― Oh! Como são poderosas as Vossas chagas, todos os Vossos sofrimentos. Quero sofrer convosco, convosco quero estar sempre na cruz para nem um só momento cessem as almas de virem a Vós; de virem ao sol resplendoroso do Vosso divino amor. Sede a minha força, vede como sou fraca, meu Jesus. Minha filha, Minha amada, quem com Jesus está com Jesus vence. Tem coragem! Da cruz passas ao Céu, ao Céu que te espera: E pela cruz fazes subir as almas aos milhões, aos milhões para a sua pátria. Sofre sempre, por meu divino amor, e nada temas; sofre alegre, se não Me queres ver ferido. Enquanto que viveres na terra, não mais deixarás de sentir em teu coração essas espadas, esses punhais. És a minha vítima, é ferido o teu coração para não ser ferido o Meu.

Sabes, filha querida, porque é que quanto mais eles te ferem e te cortam estas espadas e atravessam o coração, mais as sentes e vês crescer? É o aumento, é a repetição dos novos crimes. Reparas uns, mas a maldade desses infelizes inventa outros; vem logo com novos golpes. Se soubesses quem Me fere e como Me ferem! Quero explicar-te, quero desabafar as minhas mágoas.

― Meu Jesus tirai de mim, se é possível, a reparação precisa; eu aceito, eu quero sofrer por quem quer que seja, amigos ou inimigos meus não me importa; são filhos do Vosso sangue divino, eu a todos quero salvar. Sou a Vossa vítima, vítima a sério, só para não Vos ver ferido. Eu sei que sofreis, Jesus, e eu quero reparar sem saber por quem.

― Ó Minha louquinha, Minha louquinha de amor, que grande e encantadora lição tu dás ao mundo; que grande prova de heroísmo, que apreciável valor dás às almas! Vai, vai contente. Para conseguires a realização dos teus desejos, não mais terás alegrias sensíveis na terra; apenas o necessário conforto para venceres e resistires à dor… Vai, alma pura, não te deixes abater demasiado com os teus defeitos; Eu os permito para mais em ti brilhar aquilo que é Meu. Vai espalhar o amor, vai acudir às almas, vai dar a luz ao mundo. Eu farei que nele brilhes com o Meu brilho que a ele encantes com os Meus encantos. Coragem, coragem! Eu vou e estou sempre contigo.

― Obrigada, obrigada, meu Jesus. Ajudai-me a vencer este medo pavoroso, que já vejo à minha frente. Quero a cruz, quero as almas, mas temo as minhas fragilidades. Não me abandoneis meu Jesus.

1 de Fevereiro de 1947 – (1º sábado)

Passei a noite em grande sofrimento e em grandes ânsias. O meu corpo era um montão de cinzas, desfeito pela dor, e o coração sentia horrivelmente o cortar fino e contínuo de fios de espadas. Ao mesmo tempo queria desprender-se e voar para o alto, para Jesus, mas não podia; estava encarcerado em negra prisão. Senta-o cansado e desfalecido com tanto sofrer. Abraçada ao meu crucifixo e à Mãezinha querida, não cessava de pedir-lhes amor. As dores eram quase insuportáveis, mas as ânsias de amor iam mais longe, muito mais longe ainda. E nesta angústia não perdia a minha união com Deus; ia murmurando sempre: meu Jesus, lanço-me nos Vossos divinos braços, Prendo-Vos para não mais Vos deixar nem desistir de Vos pedir amor; ainda que, por cada vez que vo-lo pedisse, me repelísseis e me batêsseis, não Vos deixaria, nem me calaria, mas sim com mais coragem ainda dobraria o meu brado: Jesus, sou a vossa vítima. Foram estes os meus entretimentos com Jesus, mas sempre mergulhada em trevas, angústias e sofrimentos. Veio a hora de O receber e eu de mãos vazias, despida de todo o bem, sem ter uma morada digna para O hospedar. Ele não recusou entrar. E logo os punhais deixaram de ferir o meu coração, e todos os sofrimentos desapareceram, mas em todo o tempo que estive com Jesus; depressa voltaram. Ele disse-me:

― Minha filha, onde está a cruz, a verdadeira cruz, a cruz real, está o amor; e onde está o amor está Cristo. Tu sofres, possues-Me, amas-Me, tens todo o amor de Jesus. Sofres e amas sem igual dor sem igual amor. Farei que a tua dor seja de salvação para o mundo e que esse amor com que Me amas se espalhe, se comunique às almas.

A tua dor, o teu amor, são as escadas de pecadores e justos subirem ao Céu. Há-de o teu amor abrasar as almas, há-de a tua dor ser tão poderosa que, já tu no Céu, e ela continuará na terra, até ao fim do mundo, a ser poderosa e de salvação para os ingratos pecadores. Coragem, Minha filha! O que te espera no Céu!

― Ó meu Jesus, como estou humilhada, como me sinto pequenina! Faça-se tudo, segundo a Vossa vontade divina. Só Vós sabeis quanto me custa que faleis assim.

― Sossega, sossega esposa querida; o que Eu digo não é para te elogiar; não falo para ti, falo para o mundo. É a ele que eu quero mostrar o que é a minha vida divina nas almas e o que é uma vítima generosa fidelíssima. É ao mundo que quero mostrar os elogios de um Deus, dados a uma esposa, a uma alma louca por Si. Diz-Me o que quiseres, pede-Me o que quiseres, Minha filha querida.

― Meu Jesus, dais então ao meu Paizinho a luz que ele pede, a luz que ele necessita?

― Dou-lhe tudo, sempre lhe tenho dado. É o amante da minha cruz, é o possuidor de todo o Meu amor; dá-lho por Mim; repete-lhe, diz-lhe que Eu o amo, diz-lhe que é o mestre das almas e que eu farei que elas em grande multidão o sigam, à semelhança de Mim. Diz-lhe que Eu o assemelho à minha vida na terra. Diz ao teu médico que o amo loucamente e que amo aos que lhe são caros. Diz-lhe que lhe repito: conto com ele, como vara forte e firme a amparar-te e à minha causa divina, que, depois de humilhada, será o triunfo de todos os tempos. Diz-lhe que recomendo a vigilância; o mal corre, o veneno penetra. É necessário um milagre até ao fim. Vem Mãe Bendita; não deixes sem conforto a nossa filha.

― Estou aqui, Meu filho, ansiosa por confortá-la.

Veio a Mãezinha, inclinou-me para Ela; acariciou-me e abraçou-me.

― Coragem, Minha filha! Em nome do meu bendito Filho, venho afirmar-te: estás na verdade, és-Lhe fiel, Ele está contentíssimo contigo. Deste-Lhe tudo, amas-Lo com todo o amor com que O podias amar. Em troca, filha querida, da tua vida de dor e de amor leva os Nossos amores àqueles que te amam e com tanto empenho te rodeiam; é o prémio do Céu, por ampararem uma esposa tão querida de Jesus, e acrescentou: Diz-lhes em meu nome que lhes prometo o Céu e mais ainda àqueles que do fundo da alma e do coração com eles falarem no meu nome e nas minhas coisas. Farei que os que te rodeiam e te são queridos comuniquem aos outros o que de ti receberam; que é a comunicação dos tesouros do Céu. Vai, Minha filha querida; tem coragem; não deixes de correr, mas também não deixarás de amar. Vai em paz, vai com O teu Jesus, leva o teu Jesus. Para que as minhas palavras se cumpram, tenho que abreviar os meus colóquios, mesmo eles têm de ser para ti dolorosos. Coragem, coragem, nova redentora, salvadora do mundo!

― Obrigada, meu, meu Jesus; obrigada, Mãezinha acompanhai-me, não me deixeis por um só momento. Já me parece mentira estar Convosco, e com Convosco falar. O que eu vejo à minha frente! Valei-me, valei-me; sou a Vossa vítima.

7 de Fevereiro de 1947 – (sexta-feira)

Faltam-me as forças; o sofrimento impede-me de poder falar. Será o sofrimento, meu Jesus, ou serei eu que não sei sofrer e o pouco parece-me muito? Que luta renhida no meu espírito! Que mar de dúvidas! Que vida a minha tão cheia de incertezas! O demónio tem tentado assaltar-me, mas, acorrentado, não o tem conseguido; não veio com os seus tremendos combates. Quando o vejo a formar salto, para se atirar a mim, fico assustada e com receio que alguma vez sempre vença e me leve ao pecado. Ele tem tantas formas de nos atormentar a alma! Eu já a tenho tão dorida, sem ser por ele; parece que a tenho em sangue: ó meu Deus, ó meu Jesus, tudo o que sofro é por Vós, é pelas almas. Tenho olhos, mas não para ver nas negras trevas que vou passando. Cada passo que dou é em falso, é um abismo negro, onde caio, e o meu desfalecimento auxilia-me de boa vontade a deixar-me mergulhar neles. Morro de dor, morro sem remédio nestes abismos pavorosos de cegueira. Sinto os punhais, sinto as lanças a cortarem-me o coração tão lentamente, tão finamente. Quantas vezes tenho a impressão de ouvir nos meus ouvidos o cortar das carnes; é arrepiante, a dor sufoca-me, tira-me a respiração. E logo em espírito elevo ao Céu a minha oferta de vítima. Aborreço o mundo com tudo o que nele encerra; não porque tudo deva aborrecer, mas sim porque de tudo quero e devo desprender-me: sinto como se alguém dentro de mim, ande a espanar, a polir, a assear a habitação do meu coração, da minha alma; tudo é deitado fora, sinto-me vazia, é uma casa sem mobília. Este vazio é para se encher e quando sinto que se enche de uma vida de que não é falar, uma vida superior a esta vida, a alma vê o coração cheio, transbordar e pelo centro sais grandes labaredas que sobem ao ar. Nestes momentos fico como que a dormir nesta vida e como que se do mundo desaparecesse. Volto a sentir o vazio e as ânsias devoradoras do amor de Jesus. E de verdade queria mesmo devorá-Lo, possuí-Lo só a Ele e nada mais. Vós, meu Jesus, Vós e só Vós e nada mais. Sinto logo o abandono de todas as criaturas mesmo das mais queridas. Mas sou eu mesma a querer-Lhes ser grata, agradecida; mas não querer viver delas, para só de Jesus viver. São cortes dolorosos, são indizíveis sofrimentos. Mas se eu assim amasse a Jesus, se eu soubesse que O amava quase deixaria de sofrer. Ontem, ao cair da noite, de surpresa, senti-me atada e arrastada por grossas cordas que me cingiam o pescoço; obrigavam-me a ir com o rosto a terra até o ferir. Logo me introduzi por um túnel de todos os sofrimentos formado; ali não entrava luz nem conforto.

Caminhei, fui parar ao Horto; pouco depois recebi em meu rosto o beijo de judas. Que beijo cruel, mas que ainda mereceu dos lábios bondosíssimos de Jesus a palavra terna de amigo. Que doçura a do seu coração divino: se todos a compreendessem! Os modos, os olhares de traidor eram desconcertantes e desesperados. Quando Jesus chegou ao fim do Horto, mesmo na saída, debaixo daquela chuva de maus-tratos e de crueldades eu senti, dentro do meu peito, a Seu divino coração palpitar tão aflito pela dor e pelo cansaço que já parecia dar ali a vida. Vi, pouco depois, a lareira onde se aqueciam os inimigos de Jesus e uma falsa e provocadora mulher que fazia o lugar de correio, onde S. Pedro se aquecia também; era por eles interrogado e trocavam uns para os outros seus olhares maliciosos. O galo cantou; na alma senti o seu canto e tive visão do abrir e fechar do seu bico.

Retirou-se S. Pedro para chorar; as lágrimas corriam em meu coração como dois regatos. Se eu tivesse a mesma doa de arrependimento dos meus pecados! Hoje já no Calvário ecoou dentro em meu peito o som descontrolado do bater dos cravos; fiquei com os meus pulsos e pés abertos como se fosse por eles trespassados. Não senti ali só os maus-tratos de Calvário, mas sim os de todo o mundo. Tinha uns olhos que tudo contemplavam; tinha uns ouvidos que não só ouviam os insultos do calvário, mas sim os de toda Humanidade. Os gemidos e o brado de Jesus com o Seu coração cheio de amor e doçura não eram um convite,  um chamamento só ao calvário, mas sim ao mundo, a todo o mundo. Jesus com a sua agonia e morte queria salvar a todos. Os lábios de Jesus estavam cerrados, mas oh! Como falava e amava o Seu coração divino. Eu pecava com o mundo e sofria e agonizava com Jesus; e ao mesmo tempo ansiava possuir para mim o mesmo mundo. Veio Jesus e falou-me.

― Estende, minha filha, por todo o mundo a tua dor assim, como Eu põe ele estendo o Meu divino amor. É pela tua dor e com a tua dor que este amor lhe é dado. Tem coragem, minha filha! O teu corpo, o coração e a alma é um jardim celeste onde Eu plantei e semeei toda a variedade de flores. Uns anjos cuidam de outros anjos. E porque assim é Jesus to afirma. São os anjos que com todo o cuidado cultivam e tratam destas flores. A tua alma está pura. Eu nunca consenti, esposa querida, que ela fosse manchada pelo pecado; se alguma coisa permiti, foi para que tivesses o conhecimento das graves ofensas que Me são feitas, para melhor Me poderes reparar e desagravar. Quanto mais sofreres, mais reparos; quanto mais reparares, mais pecadores salvas e mais amor por ti as almas recebem de Mim. Estende, estende a tua dor ao mundo. Como ele Me ofende! Quando sentires mais, minha filha, o ferimento dessas espadas e punhais, tem a certeza de que nessas horas é que Eu estou a ser mais ofendido. Renova-Me muitas vezes a tua oferta de vítima, e redobra de amor, multiplica os teus actos de amor. Vou pedir-te nestes dias, alguns combates do demónio; preciso dessa reparação. Aceitas? Bem sabeis que sim, meu Jesus, mas com que medo eu aceito; que receio de Vos ofender! Tomai conta da Vossa filhinha, da Vossa mais indigna vítima. Eu quero reparar mas temo, eu quero amar-Vos e não sei como. Que pobreza, que pobreza, que miséria, meu Jesus! Coragem, nada temas do que o demónio te lançar em rosto; bem quisera ele que fosses o que te diz.

Anima-te. O teu amor a Jesus atingiu a maior altura. Sabes quem é aquele que sentes trabalhar em tua alma? Sou Eu, O teu Jesus, O teu esposo, O teu Rei; sou Eu que tudo esvazio, sou Eu que tudo encho. Todo te possuo e tu toda a Mim possuis. Eu deito, fora de ti, os que te são queridos, mas sem prejuízo, sem ingratidão da tua parte, sem por isso os deixares de amar. Eu podia lá consentir que fosse ingrata uma esposa Minha, Eu que sei quanto custa a ingratidão e que sinto tanto; quando são ingratos para ti! Não, não, não és ingrata. O que faço é para tirar de ti tudo o que é humano, para só possuíres o que é divino, para só o divino te encher. E assim é filha querida. Em ti existe só o amor todo o amor de Jesus. Vou dar-te agora a vida de que vives; uma gota do Meu divino sangue com a Minha eucaristia, é o teu alimento; é o conforto que te dá Jesus, é a vida para ti e para dares às almas.

Jesus abriu o Seu peito, fez do Seu divino coração uma pequenina infusinha pela qual deixou cair no meu coração uma gotinha de sangue. Esta gota de sangue abrasou-me tanto! Foi um fogo que me incendiou. Colocou novamente dentro de Si o Seu divino coração cerrou o peito e disse-me:

― Vai, esposa Minha, vai ao mundo dar este amor, vai dar-lhe esta vida, vai salvá-lo que é teu. Custa-Me tanto ver-te sofrer, mas é para que seja salva a humanidade. Continua sempre a obra de resgate, a obra de redenção; és a nova redentora. Tu serás para o mundo, filha querida, estrela brilhante, estrela de ouro que o guies para Mim. Vou despedir-Me, vou deixar-te para abreviar o colóquio, vou deixar-te para ficar sempre contigo. São colóquios dolorosos, é para Mim só o sabor, é para mais receber de ti. Vai depressa, vai espalhar pelo mundo a tua dor com o Meu amor. Vai com paz e alegria; Jesus to pede.

― Obrigada, meu Jesus, sede comigo. Ai, tanta dor não sei repará-la; a Vós me entrego; destruí-a, meu Jesus. Tende sempre diante de Vós os meus pedidos, bom Jesus!

14 de Fevereiro de 1947 – (sexta-feira)

Aumentou o peso da minha cruz, e aumenta também, dia a dia, a minha sede de sofrimento, a sede de me dar a Jesus e às almas, a sede de consumir-me, enlouquecer-me e perder-me no amor de Jesus. E é verdade que me sinto queimada; parece que um fogo invadiu tudo. Ah! Se fosse o fogo do amor de Jesus! Se na realidade eu O amasse! Ai pobre de mim! tive no dia 11, uma grande tribulação, das maiores da minha vida. Não sei se foi permitido por Nosso Senhor se pelo demónio. Não sei, mas sofri muito. Não sou capaz de mostrar quanto sofri. Sofri resignada. Não fui capaz de fazer várias das minhas orações diárias, cansada de tanto sofrer. Mas o que não perdi foi a minha união a Deus. Abraçada ao meu crucifixo, dizia de alma e coração: eu te abraço minha cruz, com o meu Jesus; eu quero-te, eu amo-te. Meu Jesus, sou a Vossa vítima. Apertava contra o peito a imagem da querida Mãezinha e dizia-lhe: fostes Vós, Mãezinha, fostes, Vós, que no Vosso dia me trouxeste este miminho. Valei-me, valei-me, dai-me um conforto. Pareceu-me ouvir o coração estalar de dor, e depois, sentia como que o sangue me corresse no peito. Vi, à minha frente, tudo o que há de pior, tudo o que há de mais desastroso. Quanto mais oprimida pela dor, mais fortemente o meu brado subia ao Céu. Meu Jesus, aceitai-me parte destes sofrimentos por tais intenções e nomeei-as; e o restante aceitai-o Vós e espalhai-o pelo mundo, meu Jesus, a minha dor. Passou de 24 horas que eu assim sofri, a sós com Jesus sem com mais ninguém desabafar as minhas mágoas. Por mais que me interrogassem, procurei disfarçar, nada disse; calei, calei até não poder mais. Queria chorar, e não fui capaz; assim mais me custava sofrer.

No dia 12, levantei uma porta do véu que tanta dor encobria. Fui confortada e quiseram desiludir-me que tal sofrimento não tinha o fim que eu lhe dava. Fiquei um pouco mais libertada, mas sempre com o coração a sangrar. Tinha a alma e o corpo sem vida. Passaram-se uma horas mais suaves. Depois então recebi o golpe que foi realidade; não foi nada da minha imaginação. Longe de me revoltar, recebi-o, abracei-o: oro e sofro por quem me fere. Perdoo como quero que Jesus me perdoe as minhas culpas. O que eu não quero é ofendê-Lo nem deixar um momento de O amar. Se me dessem, de preferência o amor de todas as criaturas, honras, louvores e senhora do mundo inteiro e nunca mais ser escarnecida desesperada e humilhada contanto que por um só momento eu deixasse de amar Jesus, eu dizia: não, não, sempre não. Quero amar a Jesus sempre oprimida pela dor e humilhada, sempre humilhada. Não posso dizer que o sofrimento não custa; mas é verdade que esta vida passa e o amor de Jesus dura eternamente. Quero amá-Lo, quero amá-Lo. Tenho sido rodeada por feras e bichos tão feios, tão desconhecidos! Não me tocaram, mas temia tanto o seu veneno! E os demónios com rostos humanos, feiíssimos, por entre elas; os olhos e os dentes causavam terror. Tive quatro combates seguidos; parecia-me ver todo o inferno em mim e à minha frente; ouvia-lhe os seus ruídos e estalos como de lenha verde. Parecia passar por mim todo o fogo infernal. Não me foi possível, de um ataque ao outro, desprender-me daquele inferno. Que cadeia com tão seguras prisões. Nos momentos mais assustadores, quando mais eu temia ofender a Jesus, eu dizia: Jesus, Mãezinha, é de alma e coração que Vos digo: dai-me o inferno se hei-de ofender-Vos; sou a Vossa vítima. Pensava em fugir daquelas cadeias, mas não tinha força. Não queria escutar as feias palavras do demónio, mas tinha que ouvi-las. O coração batia fortemente e eu repetia: não quero pecar. Quando fui libertada, estava num banho de suor. Acrescentei: meu Jesus, que este banho do meu suor seja para as almas com banho de dor e fortaleza que as levem a arrepender-se e a quebrarem as cadeias do pecado. E seja também um banho do Vosso perdão e amor. Sem eu querer, senti em mim, por algum tempo, vontade de voltar a unir-me ao demónio. Só Jesus sabe quanto isto para mim  é doloroso. Tudo o que fica dito e não sei dizer tem sido para esta pobre alma e corpo um contínuo Horto e Calvário. Durante esta noite senti-me no Horto; lá sofri como se fosse despido e açoitado. Lá vi, lá sofri como se fosse coroada de espinhos e com o corpo despedaçado pelos açoites, levada à varanda de Pilatos. Vi a multidão do povo ouvi suas (…) tinha que ser condenada à morte. A noite estava escura e serena, que não deixava mover uma só folha das oliveiras, a não ser quando a dor tudo obrigava a tremer, à solidão e a vir todo o abandono, mesmo até do Eterno Pai. E àquela hora onde estava a Mãezinha? Quanto sofria Ela com a reparação e a despedida de Jesus! Ele, dentro de mim, via e sofria a Sua dor, via onde Ela estava, via a distância que Os separava. Que dor sem igual! E, hoje, sinto em meu coração a dureza dos corações, que acompanhavam Jesus, pelas tristes ruas do calvário; nada os comovia, nem o sangue de Jesus, nem o Seu santíssimo corpo ferido, nem ver o amor com que Ele aceitou e levou a cruz, já quase moribundo. Ao terminar do calvário, Jesus deu-me um profundo suspiro; e o Seu olhar moribundo, mas divino levou a todos um olhar de convite, amor e perdão. Que olhar de tantos segredos misteriosos! Quisesse ou não eu tinha que sentir e ver as graças abundantes que davam aqueles olhares de Jesus; quisesse ou não quisesse, tive que sentir e ver o calvário e todo o mundo a desprezá-las a deitá-las fora. É indizível a dor de Jesus e a minha com a d’Ele; ver tantos sofrimentos inúteis, ver para tantos nada valer a Sua paixão e morte. Senti dentro em meu peito o último suspiro de Jesus: agonizei com Ele. Momentos depois, senti abrasar-se-me o coração; parecia-me estar a nadar num mar de fogo. E logo me falou Jesus assim:

― Venho a ti, minha filha, cheio de amor e compaixão; amor para te encher e compaixão pela tua dor, por tanto te ver sofrer. Sofreste tu, Minha filha, mas não Eu. Repara; vês como venho sem nenhum ferimento? Foi atingido o teu coração e não o Meu. Tem coragem, Minha filha! Eu pedi-te dor, sempre dor, para espalhar pelo mundo, e foi ao mundo que a estendi com a mistura do Meu divino amor. Pedi-te dor, sempre dor, porque de muita dor necessito, para bem das almas, e muita dor via para te darem. Coragem! Eu poderei dizer de ti o que disse: as portas do inferno não prevalecerão contra mim, isto é, contra a Minha Igreja. E agora digo: a raiva humana, que mais parece infernal, nada poderá contra a Minha divina causa. Anima-te, esposa querida. Consentes em te pedir dor, sempre mais dor? Consentes em seres imolada, a mais não poder ser? Peço-te consentimento, porque nada vale a dor sem a generosidade, sem o teu querer, sem o teu amor. O mundo necessita de tudo. Não deixeis, filha amada, morrerem as almas de fome. Aceitas?

― Já sabeis que sim, meu Jesus; escusado é dizer-Vos que tudo aceito e sofro, por Vosso amor e pelas almas. Sou a Vossa vítima. Mas pedis-me assim tanta dor; o que virá mais? Eu já queria dizer-Vos, na última vez que falei convosco, o que me esperava, pois achava que acentuáveis tanto a palavra dor, que tanto fazíeis penetrar em mim, e que tudo isso queria dizer mais alguma coisa; mas não atreve a perguntar-Vos nada.

― Compreendi tudo, todos os teus desejos, mas nada te disse, para não te atemorizar.

― Dizei-me, meu Jesus. E não serei eu uma iludida das Vossas coisas e nossa ilusão a iludir tantos e mais ainda aos que me são tão queridos?

― Sossega, sossega, Minha filha, confia no teu Jesus. Não é uma ilusão; é a realidade. Tu foste cheia das maiores graças das maiores maravilhas do Senhor. Sossega, de ti quero o sofrimento com o silêncio. E darei a minha luz, a luz do Espírito Santo àqueles que precisam dela. Confia em Mim; todo o Céu se alegrou com a consolação que Me deste, com a coragem do teu sofrer. A tua dor foi para as almas uma primavera de flores. O teu heroísmo, o teu amor à cruz, pôs o Céu, a tua pátria em festa. Entoaram, em Meu louvor, hinos jubilosos. Vou dar-te agora uma gota do Meu sangue divino, para reparares as forças perdidas. Consumiste mais forças nestes dias de sofrimento do que num ano dos trabalhos mais austeros de jejum, a pão e água. Vem a mim; é fácil a operação.

Jesus abriu o Seu divino lado e abriu também o meu; uniu os Nossos corações e logo deixou cair do d’Ele no meu uma gotinha do Seu divino sangue. Senti logo o coração mais forte, a dilatar-se. Jesus colocou um e outro no seu lugar; cerrou o Seu santíssimo peito, cerrou também o meu, bafejou com o Seu bafo divino, deixou-o sem cicatriz.

― Vai agora, filhinha amada; vai sofrer, vai cheio do Meu divino amor; vai espalhá-lo pelo mundo; leva a Minha graça, leva a Minha força. Tem coragem; nada temas. Jesus é contigo; sempre contigo.

― Obrigada, meu Jesus; só em Vós é que eu confio. Como gosto de dizer: Bendito seja Deus, bendita seja a minha cruz. Voltei para os meus sofrimentos, a tudo ver desenrolar à minha frente; tudo me causa pavor, nada queria escrever. Se não fosse a minha oferta da noite de Natal ao Menino Jesus, mais nada escrevia; ficava como se tido morresse. Assim quero só, quero sempre a vontade do meu Senhor.

21 de Fevereiro de 1947 – (sexta-feira)

Se tenho Jesus é a Mãezinha, não estou só. Que posso temer? Abraçada às Suas imagens, nas horas mais dolorosas e mais aflitivas, é este o murmúrio do meu coração. Quanto mais sofro e me sinto de todos abandonada; mais aperto contra o meu peito o crucifixo e a querida Mãezinha, e vou-lhes segredando: tenho que confiar, não posso ser abandonada por aqueles em quem só tenho confiado, a quem me entreguei totalmente, alma e corpo e todo o ser. Jesus, Mãezinha, sou Vossa e Vós meus. Morri para não mais viver; o mundo para mim não tem luz, não tem flores, não tem encantos. Tudo dá louvor ao Senhor, todo o ser criado bendiz o seu Criador, só eu não. Mergulhada nas trevas, nesta cegueira que me mergulhou e vejo o mundo mergulhado, nada vejo que possa dar glória ao Senhor e louvor como criatura Sua. Tudo é miséria e um mundo de podridão e desventuras. Quantas vezes sinto a tentação de maldizer a minha sorte; não o tenho feito. Nos momentos de desânimo, uma força inesperada me levanta e me obriga a confiar no Senhor. Espero um dia, espero outro dia, sempre a ver quando chega um sacerdote, em quem eu possa confiar e abrir a minha alma, para assim me poder guiar para Jesus e amparar, nestes caminhos tão dolorosos e espinhosos. E não aparece ninguém; estou sozinha nesta luta constante. Quero amar a Jesus e não O amo, nem sei como, não tenho quem me ensine. Volto-me para S. José, peço-lhe do fundo da alma que seja ele o meu mestre, o meu director e que por mim ame a Jesus e à Mãezinha e toda a Santíssima Trindade. Estou esmagadíssima. Com tantas humilhações; nem posso respirar. À volta de mim, tudo são montanhas com seus feios bosques, por entre os quais tudo são feras aterradoras a correrem, a descerem para mim; querem devorar-me; não há quem me defenda e possa salvar-me. Nada mais sei dizer; a não ser: meu Jesus sou a Vossa vítima. E a mesma repetição faço todas as vezes que sinto estes dolorosos punhais, as espadas afiadas lentamente a cortarem-me o coração. Este corte tão fino e profundo faz-me, por vezes, arrepiar e desfalecer. Amo o meu calvário com todos os sofrimentos que ele a mim conduz. E parece que se deixasse de sofrer deixaria de amar. Quanto mais espremida, mais me enlouqueço por Jesus, mais ânsias tenho de O amar. Mas, ó meu Deus, quanto custa a dor!

Passou, ontem, o primeiro aniversário da partida do meu Pai espiritual para a Baía. Recordei todas as coisas e sofri mais, muito mais ainda, por ver que nem o seu desterro acabou com as humilhações e injúrias para ele e para mim. E se eu não visse alguém a sofrer por minha causa, se fosse só para mim a dor! Mas não; quantos se imolam consigo, ao mesmo tempo! Ó Jesus, ó cruz, ó dor, como eu Vos quero amar. Que esta visão de tantos sofrimentos e o peso tão esmagador seja para as almas que vivem na treva do pecado, visão de luz, conforto e amor. Que este peso mortal que eu sinto seja para elas o peso que lhes quebre as cadeias que as prendem a Satanás.

O que foi o meu Horto de ontem, no meio de tantos sofrimentos. Mas não bastavam; tive que sentir os de Jesus. Ele veio sentar-se em meu coração e nele foi coroado de espinhos. Apesar de O ter em mim, também eu tive a coragem de O ferir. Com uma vara nas minhas próprias mãos, batia-Lhe e na Sua Sacrossanta cabeça mais se enterravam os espinhos. Havia tanto quem Lhe fizesse o mesmo, mas toda a maldade se reflectia em mim. O sangue que rebentava de todos os espinhos corria em meu peito. Depois ficou Jesus, de mãos atadas, a receber açoites. Eu continuei com a mesma maldade. Sem dó nem piedade despedaçava o Seu corpo divino. Aquelas cenas não eram daquela hora; via-as um pouco afastadas, mas feriam como se fossem de momento. Desfaleci, fiquei por terra, a derramar sangue com os lábios pousados no solo duro.

Hoje, levada; arrastada pela dor, tristeza e noite mais escura, cheguei ao cimo do calvário, sem outra coisa ver e sentir, e logo fiquei na cruz cravada, de pés e mãos. Principiei a sentir uns olhos, dentro em minha alma, olhos que não me pertenciam, que penetravam no mais íntimo de todos os assistentes do Calvário. Aqueles olhares tão altos viam naquele número toda a humanidade representada, como aquela visão de maldade e crueldade. Jesus inclinou sobre o meu peito, que era a cruz a Sua Sacrossanta cabeça. Palpitou o Seu divino coração aflitíssimo, um profundo suspiro e estendeu ao longe; cerraram-se os Seus lábios, só os Seus gemidos abafados eu sentia e acompanhava-O na Sua dolorosa agonia. De longe a longe, quando a dor era mais aguda e os suspiros mais profundos, vinham aos Seus lábios divinos escassas gotas de sangue. Nesta agonia sem igual que lição me deu Jesus, para a minha dor e agonia de alma com o Seu silêncio. Se cá aprendesse à Sua semelhança, a sofrer caladinha! Com o aumento da Sua agonia, mais cresceu em mim o ódio; queria fazê-lo desaparecer de todos de todos os olhares humanos. Odiava-O, e, ao mesmo tempo, na mesma dor, na mesma união, com Ele agonizava. Pouco depois, um fogo ardente abrasou-me o coração e estendeu-se a todo o peito. Logo depois falou-me Jesus:

― Sobe, Minha filha, podes subir, elevada pelo amor até ao Meu trono divino. Sobe, Minha filha e podes fazer subir muitas almas para a Pátria celeste com a tua dor, com o teu amor. Tens duas escadas que chegam da terra ao Céu pelas quais constantemente, noite e dia, sobem as almas; é a escada da dor e a do amor. Pela do amor, sobem aquelas que, embora frias e tíbias, não viviam em estado grave e se deixaram encher da abundância do amor, que de Mim recebeste. Pela da dor, sobem os pecadores que a tua dor arrancou às garras do demónio e lhes obtive o perdão e a graça. Como é belo vê-las subirem. Se pudesses vê-las! Cada alma é acompanhada por um Anjo que sobe com ela à Pátria celeste. Eu quero-te, filha querida, constantemente esmagada pelo sofrimento, não por te querer ver sofrer, mas porque quero a tua alma pura, cândida, para voares da terra ao Céu, sem passares no purgatório e dares-Me toda a glória e, pela alta missão que te dei, altíssima, poderes salvar-Me as almas. Coragem, Minha filha. A dor é a arma mais poderosa. Espalha-se a dor, espalha-se o amor pela humanidade, e, sem que tu saibas nem sintas, vai penetrar e esconder-se nas almas, como fumo ou nuvem que se espalha, como perfume que irradia e penetra.

― Meu Jesus, ó meu Jesus; eu não quero a minha alma pura com o fim de não ir ao purgatório sofrer; eu quero-a pura para Vos consolar, eu quero-a pura, porque não quero ferir-Vos, eu quero-a pura para com a mesma pureza vos salvar as almas. É por isso que eu sofro, é por isso que tudo aceito, meu Jesus. Mas custa-me tanto, tanto, meu Jesus; vejo tudo perdido, vejo-me tão sozinha.

― Não estás só, não, esposa querida: confia que estou contigo. O fim do teu sofrer, o fim da pureza da tua alma maior glória Me dá, e maior número de almas atrais ao Meu divino coração. Eu quero, eu anseio que, à tua escola, venham aprender os grandes e sábios do mundo.

É nesta escola que se aprendem as artes e ciências divinas. Diz, Minha filha, e confia que é Jesus que to afirma: é a primeira escola e a última escola de tão grandes maravilhas.

― Ó meu Jesus, sinto-me desfalecida, vejo tudo perdido. Acerca-me tão forte tempestade! Não cessam os relâmpagos, não cessa o estrondo destruidor do trovão. Valei-me, valei-me, Jesus.

― Sossega, sossega, Minha filha. Os relâmpagos, são relâmpagos de amor; o eco estrondoso é voz de convite para que venham a Mim todos. É sempre a tua dor, é sempre o teu amor. Anima-te. A tempestade não destrói a Minha causa divina. Olha, são os braços do teu Jesus que a sustentam. Eu guio a barquinha, em mar tão tempestuosos, e ela chegará ao fim, ao porto de salvação. Tem coragem! Eu velo por ti. Eu sou o Pai terníssimo, Esposo fiel, que não abandona a Sua esposa na mais dolorosa dor. E, como prova do Meu cuidado por ti, vai mais uma vez correr em tuas veias uma gota do Meu divino sangue. É a vida de que tu vives. Vou com ela substituir o que a violência da dor, nestes dias te roubou.

No mesmo momento em que Jesus dizia isto, uniu os nossos corações. O de Jesus cercavam-no raios luminosos e parecia um centro de lindíssimas flores, com o mesmo brilho dourado. Deixou cair o Seu sangue divino, e logo os separou. O meu dilatava-se e não aguentava tanto amor.

― Vai, Minha filha, mais forte, com a fortaleza divina; vai; leva contigo a força do Céu, o amor do teu Jesus. Vai para a tua cruz, abraça-a. Eu te prometo: sempre que ao teu peito, com tanto amor, abraçares o crucifixo, Eu chamarei e estreitarei ao Meu coração um pecador. Coragem! O Céu está para breve, já te sorri.

― Queria ter Convosco um desafio, Jesus, já que me falas do Céu, mas não tenho coragem, meu Amor.

Jesus sorriu e disse-me:

― Sei o que tu queres, conheço tudo, podes desabafar e dizeres o que quiseres, mas não hoje; fica para breves dias. Não posso demorar-Me; vai para a tua cruz, leva amor; vai para a tua cruz, leva paz, leva alegria; vai para a tua missão, para a missão das almas.

― Obrigada, meu Jesus. Ficai comigo mesmo escondido; não me deixais sozinha.

28 de Fevereiro de 1947 – (sexta-feira)

O meu espírito tem sido, nestes dias, um verdadeiro teatro representado por Satanás; tem trabalhado bem. Tem-me atormentado tanto! Tem-me mostrado todas as falsidades, todos os caminhos errados, tudo perdido. Pobre de mim, se Jesus, e a querida Mãezinha não me amparam!

De manhãzinha, a alegria, o trinado das avezinhas, a darem glória ao Senhor, é para mim motivo de maior dor. Os seus gorgeios são golpes, que mais vem avivar as feridas da minha alma. Oh! Como eu sinto todo o meu ser dilacerado! O aproximar-se da primavera não é para mim de alegria, como para as avezinhas. Para mim, apresenta-se negra, cada vez mais negra. As árvores a cobrirem-se de flores que nos fazem admirar o poder de Deus e nos obrigam a prestar-Lhe o nosso culto de louvor por tantas maravilhas, para mim são finos espinhos que me ferem, são flores murchas e negras, são flores da morte. O que é que me alegra a alma? A vontade do Senhor. Essa, sim, a vontade do meu Deus, dá-me alegria, por mais doloroso que seja o meu martírio. Tantas quantas vezes sinto em meu coração, os punhais, as espadas a cortarem-me finamente, eu abraço o meu crucifixo. E ao dizer-Lhe amo-Vos, Jesus, repito-Lhe sempre: sou a Vossa vítima. Sim, e eu queria amar até à loucura, quero amar o meu Jesus, sem o fim da recompensa do Céu. Não me interessa o prémio que me dá Jesus; quero amá-Lo a Ele; só a Ele sobre tudo, porque Ele é digno de amor. É o fim do meu viver, é o fim da minha dor Jesus e as almas; mas é sempre Jesus, porque as almas a Ele pertencem.

A minha razão não está conforme ao sentir da alma; a alma sente-se humilhada, sozinha, sem ninguém, sem uma luz, sem um apoio, sem um conforto da terra e do Céu. Para a alma não há amigos na terra; tudo morreu, e até o Céu deixou de existir. A razão, sem se sentir alegre, mostra-lhe, quero provar-lhe que tudo isso tem; o Céu que existe, Jesus e a Mãezinha que não lhes faltam na terra que ainda tem amigos firmes ao seu lado. Que luta renhida que só causa a morte; a alma em desarmonia com a razão! Meu Jesus! Sou a Vossa vítima; continuai a esvaziar-me, Vós, só Vós a encher-me, isso me basta. Nas horas tristes deste viver, perdida no meio do mar, arrastada pela violência das ondas sinto como se viesse alguém que tem todo o poder sobre elas, a deitar-me as mãos; levanta-me e fica-se a fitar-me com compaixão. Parece-me ser Jesus; poisado sobre as ondas, não se mergulha nelas, não se molha, e não me deixa a mim ir ao fundo. A minha alma fita os seus olhos naquele olhar terno, pede-lhe compaixão, é presa em Seus braços, não quer desprender-se. Isto conforta-me por um pouco mas fica-me sempre a dor vinda do temor. Ai de mim, se Jesus me deixa! Quando a tempestade é mais desastrosa e as nuvens negras mais me escarnecem, para darem lugar a maiores dúvidas, invoco o Divino Espírito Santo, peço luz ao Céu, principio por examinar a minha consciência, e logo principia a minha alma como que a nadar num mar de paz, uma paz sem consolação, mas paz que dá a vida e obriga a caminhar. E vou seguindo por entre as trevas, na confiança de encontrar Jesus.

Na tardinha de ontem, senti Jesus, sentado dentro em mim, cabeça inclinada, olhos baixos, quase cerrados, a chorar amargamente. Este fitava, via coisas de grande destruição, que Lhe causava grande amargura. Levantou-se em meu coração uma montanha mundial; estava cheia de feras que se atiravam para ferir Jesus. Por entre aquela montanha, nasceram grandes varas de espinhos que serviam de suplício para o corpo Sacrossanto de Jesus. Pelos Seus divinos olhos e ouvidos principiaram a sair gotas de sangue. Foi tal a dor do meu coração, que me parecia abrir-me o peito, e ele, louco pela dor, sair para fora. Tinha momentos que não podia respirar; quase perdia a vida. Repetiu-se depois., a cena do lava pés. Digo repetir, porque já não foi a primeira vez. Vi Jesus com a toalha sobre os ombros, bacia na mão, a lavá-los a Seus discípulos, incluindo aquele, que ia entregá-Lo. Quero assemelhar-me a Jesus; quero, ainda que com muito custo pedir sempre, sempre por aqueles que me ferem. Quem é Jesus, e quem sou eu? Como sofreu Jesus, e como sofro eu? Pobre de mim, que miséria a minha; não sei sofrer, não sei imitá-Lo!

Passei daqui, no mesmo momento, ao Horto; lá fui sentir a cruz antecipada, o coração aberto; veio para o Horto o Calvário. Vi uma massa de almas a desperdiçarem o Sangue de Jesus, com os Seus sofrimentos, com a Sua morte. Vi algumas a aproveitarem de tudo o que era de Jesus, de tudo o que era dor. Vi um que subiu acima de todos e foi mesmo beber no sagrado lado, à chaga do Seu Divino Coração. O meu corpo foi o palco, foi o Horto, a cruz; Jesus, à massa das almas que O desprezavam e as que d’Ele se aproximavam. Hoje, quanto me custou a seguir o Calvário! Que desfalecimento tão grande! Parecia-me caminhar mais de rasto do que de pé. De passos a passos, caía. O meu corpo era um esqueleto descarnado, coberto de sangue. Queria respirar e não podia, sentia como se me arrancassem o coração e as entranhas. Cheguei ao cimo, vi sobre a terra a cruz, onde ia ser cravada, ao lado o martelo e os cravos. Fui crucificada, erguida ao alto na cruz e fiquei num negro cárcere sem saída; esse cárcere era um mar imenso de dor sem fim. Eu só sentia a vida que vivia aquele sofrimento, aquela noite escura que me mostrava tudo o que era dor, tudo o que era maldade. Ali sofri com Jesus, ali senti os Seus suspiros, ali recebi em meus lábios a esponja. A minha sede era outra, Não foi com a esponja saciada, a minha sede era do coração, era uma sede indizível. Cresciam as muralhas daquele mar imenso, daquele mundo de dor, e, ali presa, tive que agonizar. Ao voar de mim aquela vida que era a verdadeira vida fiquei em completa liberdade, romperam-se aquelas negras muralhas e fiquei outra. Principiou-me o coração a arder em vivas chamas e falou-me o meu Jesus.

― Minha filha, em trono de Rei estou Eu em teu coração, e sou, na verdade, Rei e Senhor de todo o teu ser. Sou teu esposo fiel, mas não estou só, está comigo o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Dizer-te a Nossa consolação, como estamos aqui deliciados com os encantos, com as belezas de tão variadas flores, de perfumes atraentes é escusado; só à vista clara da luz divina, da luz eterna, numa visão beatífica, o poderás compreender. Fui Eu que rasguei, que rompi as muralhas, onde estavas encerrada. O seu significado é aquele: quando pela Minha morte resgatei as almas; resgatei-as do pecado, e deixei-as em plena liberdade de entrarem no Céu. Há nos teus sentimentos de alma tantos significados, tantas lições que Eu queria que aprendessem! São provas tão claras de em tudo te assemelhar a Mim. Tu na continuação da Minha obra resgatadora com a tua dor rompes os cárceres, as muralhas em que as almas estão presas pelo pecado. Como é poderoso o teu sofrer! Como é bela a tua missão! Meu Jesus, dizeis muito bem, se eu soubesse sofrer, com o Vosso poder, com a Vossa graça rompia tudo, tudo vencia. Mas, ai de mim, estou sempre caída; não sofro com perfeição! Esmagada com o peso de tantas humilhações e tanta dor, parece-me que quase ninguém me acredita. Mais uma vez me entrego a Vós, para ser vítima em Vossas divinas mãos. E não querias tu, Minha filha, sofrer tudo isto só para salvares uma só alma! E são tantas, tantas; são milhares e milhões que salvas. Se soubesses como Me amas e como Me fazes amado! Confia, acredita o Teu Jesus; e tens tanto quem te acredite! Eu farei que vejam em te as Minhas riquezas e maravilhas. Eu farei que aqueles, que te atormentam, venham a sentir em si horríveis remorsos.

― Meu Jesus, perdoai a todos. Eu não Vos digo que eles Vos amem como eu Vos amo, mas sim como desejo amar-Vos. Que todos se enlouqueçam por Vós, como eu queria enlouquecer-me. Jesus, meu Amor, quanto mais Vos digo mais queria dizer-Vos, mais ânsias tenho e amor, mais vazia me sinto, mais queria possuir-Vos. E não vos amo, não Vos amo, meu Jesus.

― Amas, amas, Minha louquinha. Não viste, quando, ontem, te conduzi ao Horto, aquela alma que subiu acima de todas as almas, entrou em Meu lado e foi beber ao Meu Divino Coração? Fui Eu que te quis mostrar; eras tu mesma. Não és igualada nem na dor, nem no amor. Salvas com a dor, salvas com o amor. Tens em ti o poder de Jesus.

― Quanto me custa isso, que me dizeis, só Vós o sabeis, Senhor. Eu não sou digna de tão grande prova de amor; eu não sou digna que tanto baixásseis até mim... Eu bem senti, meu Jesus, como se fosse eu mesma que subi e entrei, à frente de todas as almas, mas não o disse quando há pouco ditei os sentimentos d’alma. Que vergonha, que confusão; não pude dizê-lo! Como eu me sentia miserável!

― É assim mesmo, esposa querida, pequenina, escondida, como a violeta entre a sua folhagem. Quero-te pequenina, para mais brilhares entre a folhagem das minhas maravilhas. Quanto mais pequenina, mais poderosa. Minha filha, tenho tantas almas em perigo. O peso dos seus crimes levou ao fundo o prato da balança; se lhes não acodes, caem no inferno. Queres salvá-las com a tua dor?

Vi Jesus com a balança em Suas mãos divinas, um prato em baixo outro em cima, um com tudo outro com nada. Bradei logo:

― Jesus, temo os sofrimentos, mas quero-os. E o que virá ainda! Antecipai-me o valor do sofrimento, como por vezes me antecipais a dor; colocai-o já sobre a balança; sou a Vossa vítima, quero salvar as almas. O prato, que estava em cima, baixou logo abaixo.

― Pronto, pronto; heróica, heróica! Estão salvas, estão salvas. Que alegria para o Meu Coração de Pai! Como Médico Divino da tua alma, vou dar-te uma gota do Meu sangue divino para viveres, para dares vida, para resistires à dor. É rápida a operação.

Jesus abriu-me o peito, e, já com o d’Ele aberto, tomou-o Seu Coração divino sem tocar no meu, deixou cair a gota do Seu sangue. O fogo do meu coração aumentou; ele crescia, dilatava-se por todo o peito.

― Vai, esposa querida, vai para a tua cruz; leva este amor, leva este Sangue divino; é de resgate, é de salvação. Tu, a nova redentora das almas, possuis em tuas veias o Sangue do teu Redentor. Coragem! Leva a força, leva o amor do teu Senhor.

― Obrigada, obrigada, meu Jesus. Sinto-me queimada por Vós. Sede a minha força.

1 de Março de 1947 – (1º sábado)

Hoje, a minha preparação para receber a Jesus foi feita, na mais profunda dor, dor em que fiquei mergulhada, ontem, pouco depois de ter com Ele o meu colóquio. Depressa me apareceu a cruz com todos os seus espinhos e sofrimentos. Preparei-me na ânsia de bem O receber, para melhor O conhecer, para mais O amar.

Todos os meus esforços eu sentia serem baldados. Tudo o que nasce em mim morre, sem que eu chegue a gozar deles a ver os seus encantos. A morte está sempre em mim, a ceifar o que há de bom; só a minha miséria me deixa, e, momento a momento, cada vez maior aparece. Triste cegueira que só me mostra maldades! Veio o meu Jesus; logo que entrou em mim, dissipou as trevas; todo o meu interior ficou iluminado com o Seu amor, com a Sua paz. Fiquei outra, agora bem podia dizer não sou que vivo, mas sim Jesus. Falou-me:

― Minha filha, aqui estou, aqui Me tens no teu coração, para te confortar, e dar vida. Escuta-Me, quero dizer-te, quero afirmar-te que te amo e que Me amas; que estás na verdade e que tudo fazes e sofres como Eu quero. Esta afirmação não é dos homens, é do teu Esposo, do teu Jesus. Onde está a cruz, a cruz resignada, a cruz abraçada, a cruz amada, está a verdade, está a vitória. Onde está a dor, está o amor. Eu amo-te, tu amas-Me, confia em Mim. Tens a vida que te deu Jesus, tens a missão que te deu Jesus; tens os teus lábios, em teus olhares, em todo o teu viver a verdade. Coragem! Se tens a Jesus, o que te falta, que mais precisas? Diz-Me agora, Minha filha, o que querias dizer-Me; desabafa comigo com toda a simplicidade, como Eu contigo.

― Meu Jesus, bem sabeis que me arrependi por dizer-Vos que queria desabafar Convosco; eu não tenho querer nem vontade, mas já que me mandais, eu obedeço, meu Jesus. Tão bem me falais do Céu e que ele está perto, e nunca cá chega? Nunca mais saio deste desterro? Que vem a ser isto?

Jesus fitava-me e sorria-se para mim, cheio de bondade.

― Julgas, Minha filha, que és por Mim enganada? Bem sabes que te não engano. O que são as trevas deste mundo em comparação da eternidade? Digo-te que o Céu se aproxima, digo-te para te animar e dar conforto e digo-te, porque é verdade. Não se compara o tempo que viveste, os sofrimentos que sofreste com o que te resta para viveres e para sofreres. O Céu espera-te, sorri-te, está para breve. Conforta-te com as palavras do teu Esposo e Jesus. O mesmo conforto quero dar ao teu Paizinho para que ele resista às suas agonias, às suas angústias e dores. Quero confortá-lo, para que não dê lugar ao demónio tentador. Diz-lhe que a sua vida fui Eu que lha escolhi; diz-lhe que o criei para as almas e que ele as encaminha e conduz como o Meu Divino Coração deseja. Diz-lhe que lhe quero e amo como as pupilas dos Meus olhos. Diz-lhe que fiz da vida, a vida de um outro Cristo. Diz-lhe que Me vejo a Mim nele e que é por isso que em tudo o assemelhei a Mim. Eu amo-o, Eu amo-o. Diz ao teu médico que lhe abro o Meu Divino Coração e o faço depositário de todo o Meu amor, de todas as Minhas graças para ele cooperar com elas e como bom agricultor semeie para Eu colher. A glória é Minha: Dou-lhe a luz do Espírito Santo para ele e para todos os que como ele cuidadosa e sinceramente trabalham naquilo que Me pertence e é Meu. Vem, Minha bendita Mãe, toma-a em teus braços, aceita-a, é nossa filhinha, conforta-a.

Jesus colocou-me nos braços da Mãezinha, que estava à minha direita. Ela abraçou-me e com o Seu Santíssimo rosto, unido ao meu, cobriu-me de carícias.

― Coragem, Minha filha, esposa querida do Meu Jesus. A tua vida é de imolação, mas também é de salvação. As almas salvam-se com o teu martírio; anima-te. Tu vences porque tens contigo a graça e a força do Senhor. Eu não te falto com o Meu auxílio e a Minha protecção. Leva as minhas graças, leva o Meu amor e carinho a todos os que te são queridos que também o são Meus e do Meu Jesus; estão presos os nossos Corações com os laços do mesmo amor.

Acrescentou Jesus:

― Vai, Minha filha, vai para a tua cruz; toda a tua vida é cruz, toda a Minha vida na terra o foi também. A nova redentora em tudo se assemelha ao Seu Redentor. Vai, leva paz e leva amor; vai, leva alegria para abraçares todos os sofrimentos. O Céu está alegre, rejubiloso. Coragem! Quanto mais Me possuíres, menos Me sentirás. Quanto mais Me amares, mais em ti desaparecerão os efeitos do Meu divino amor. Quanta mais luz de Mim receberes, mais escuridão, mais trevas te vão mergulhar. Quanto mais quiseres esclarecer, menos saberás exprimir-te. Quanto mais rica e unida a Mim estiveres, mais pobre e longe de Mim te encontrarás; tudo será noite, tudo será noite. Coragem, coragem!

― Ó Jesus, ó Mãezinha, muito obrigada pelo Vosso conforto, pelo Vosso carinho, pelo Vosso amor. Quero ir para a cruz e tenho medo; ela só tem espinhos. Ai que medo, ai que medo! Sede a minha força. Fazei que eu tudo aceite e tudo sofra, só por amor.

7 de Março de 1947 – (sexta-feira)

As agonias, tonturas e dores não cessam de consumir a minha alma e o meu corpo. O meu crucifixo, Jesus, Jesus, a Mãezinha, são a minha força. Não me conheço; não sei porque vivo nem para quem vivo. O meu fim, o meu único fim é Jesus, só Jesus. Será assim? Será para Ele que eu vivo? Que vida amarga, tão cheia de incertezas! O meu coração arde, e quantas vezes parece ser nas brasas mais vivas. O meu coração anseia por amar, por se dar, por se esconder em Jesus, desaparecer por completo ao mundo, para só Jesus viver; para só Jesus aparecer. Não vejo estas ânsias realizarem-se, não sinto viver esta vida; só a miséria em mim aparece, causa-me horror. Continuo a ver os sofrimentos que me causam a morte; é mesmo a morte que eu vejo em todos os seus tormentos e dores. Tanta crueldade! Tantos assassinos, cada qual com os seus horríveis sofrimentos para mim! E eu vou, ou melhor, sinto que Alguém, dentro de mim, vai ao encontro de todos esses assassinos, que povoam o mundo inteiro; com que ternura, com que amor lhes pede para não ser ferido; com que bondade lhes estende os braços para a todos abraçar, para a todos colocar em seu regaço como mansos cordeiros; com que bondade lhes abre o Coração e os convida a entrarem n’Ele para ali viverem, para ali morrerem. Finge não saber que eles O querem matar. Ah! Se eu possuísse esta bondade, este amor! Ah! Se eu usasse assim para com os que me ferem! Ó meu Deus, Ó meu Deus, se eu soubesse exprimir esta bondade: Bendito sejais; digo o que Vós quereis; eu nada sei dizer; falai Vós, meu Jesus. Por vezes, parece que vejo em mim, acima e em baixo de mim, o inferno aberto; quer-me engolir. As serpentes, feras e negro fogo tentam engolir-me, tentam devorar-me. É um pavor, parece que todo o mundo é inferno. Eu não fujo dele, e, se não me acodem, tenho de cair nele. E, por vezes, com a visão deste martírio, vêm-me cheiros horrorosos; cheiros que eu desconheço, podridões insuportáveis. Meu Jesus, sou a vossa vítima; abraçada ao meu crucifixo, repito-Lhe a oferta; sou a vossa vítima, quero salvar as almas. Não Vos largo mais, meu Jesus; abraçada a Vós, não corro o perigo de cair no inferno. Fazei que comigo a Vós se abracem todas as almas. Mãezinha, querida Mãezinha, não sou digna, sei que o não sou, de Vos chamar pelo dulcíssimo nome de Mãe; valei-me, acudi-me, acudi ao mundo, acudi a todos os filhos Vossos e fazei com que eu prove, com a minha vida perfeita e o meu amor a Jesus, ser Vossa filha. Escondei-me, ajudai-me a desaparecer, a perder-me em Jesus, a ser louca por Jesus. Temos as trevas, tremo com a cegueira, tudo me escurece o meu espírito, toda me mergulho nelas. Estou vazia, vazia de tudo, sem ter que me encha e sem ter ninguém por mim. As humilhações parecem ferir-me o corpo e desfazer-me a alma. Tudo quero, tudo aceito, todos os sofrimentos me lembram Jesus, todos os sofrimentos me provam neles a existência de Jesus. O amor de Jesus, o amor de Jesus. Quem não há-de sofrer, quem não há-de amá-Lo! Ó minha cruz, ó minha cruz, eu não te troco nem pela terra nem pelo Céu; em ti vejo Jesus a quem só quero, a quem só amo. Não posso abafar, por mais tempo, os sofrimentos, as ânsias que há semanas me atormentam novamente. Eu não sei o que quero do Santo Padre. Temo-o como temo toda a gente, mas quero lançar-me a seus pés, quero ouvir-lhe um som, quero receber dele alguma coisa. Sofro, oro, amo-o como Pai extremoso, e como filha quero ser por ele aceite e dele alguma coisa receber.

Ontem, pouco depois do meio-dia, vi um mundo de sofrimentos, senti um mundo de pavor, um mundo que me dava a morte. E uma voz dentro em mim, murmurava: vou morrer. Horas depois, senti e vi como se o sol se metesse por debaixo de uma grande montanha, montanha que era um rochedo fechado. Esse sol movia-a e removia-a e fez com que ela se destruísse ficando em cinzas, em nada. Os habitantes, que a rodeavam, desapareceram já de noite, caí no Horto, naquele solo duro; ali sofri as maiores dores e amarguras naquela noite escura. Num rápido momento, dentro em meu peito de dor, abria-se um coração que não era o meu; abriu-se e deu todo o sangue no qual ficou o meu corpo mergulhado, nadava nele e nele se purificava. Hoje, logo de manhã, coroada de espinhos, com a cruz aos ombros, sem forças e com todo o corpo chagado, arrastado, obrigada a caminhar apressada, seguia o caminho do Calvário. O Céu não me poupou com o peso da sua justiça. Senti como se a abóbada do firmamento, coberto de nuvens, caísse sobre mim a esmagar-me contra o chão duro. Jesus dentro em mim, tudo suportava e recebia com doçura e amor. O peso esmagador, os Seus Divinos olhos para o mundo cerrados, ou quase cerrados iam abertos para Seu Eterno Pai. Eu sentia que Ele não deixava de os fitar Nele e Dele se separava. A chuva de chicotadas e pontapés, murmurava sempre o Seu Divino Coração: Eu amo-Vos, eu amo-Vos e vou morrer por Vós. Ao terminar a montanha, sentia-me desfalecer e morrer, ao mesmo tempo que sentia a tranquilidade, a paz e amor de Jesus que era a tranquilidade e paz ainda só de um Deus.

No alto da cruz fiquei a sentir a Sua Sacrossanta Cabeça em meu peito inclinada. Estava tão ferida, e os seus espinhos feriram-me também o coração e a alma! A dor de tais feridas tirava-me a vida a todo o corpo. E assim agonizava, unida a Jesus. Nesta união entreguei com Ele o espírito ao Eterno Pai. Momentos antes de Jesus expirar, eu sentia como se dos Seus lábios divinos voassem para o Eterno Pai ósculos do mais puro amor. Como Jesus amou as nossas almas no meio de tão grande sofrimento, de tão pesada cruz. Só eu não sei imitá-Lo. Momentos depois de sentir ter expirado, Ele chamou-me:

― Minha filha, Minha filha, escuta o teu Jesus. Vem, esposa amada, vem, esposa querida; convido-te a entrares em Meu Divino Coração; vem abrasar-te, vem alimentar-te, vem consumir-te neste fogo divino. Entra, demora aqui, quero-te mergulhada em amor. Serás a louca das loucas do amor divino. Demora-te aqui, toma este alimento divino que dá vida à tua alma. Viverás na dor e no amor, e na dor e no amor morrerás. Terás o amor na proporção da dor. Assim como não és igualada na dor, também o não serás no amor. Subirás, subirás, elevar-te-ás às alturas. Serás queimada, serás consumida nas chamas do Meu amor divino, serás à semelhança da borboleta queimada nestas chamas; nelas darás a vida. Eu farei que o Meu amor transpareça em ti; ele será conhecido e visto em todo o teu ser como num espelho cristalino. O Meu divino amor em ti será atraente; farei que atraiam as tuas palavras; os teus olhares, os teus sorrisos, todo o teu ser. És de dor, és de amor, és de salvação para as almas. Dou-te amor, peço-te dor, sei que não ma negas; sofre com alegria. Coragem sempre; as almas necessitam do teu sofrer.

Ao convite de Jesus para o Seu Divino Coração, eu entrei, e, dentro dele fechada, fiquei como que a nadar num mar de fogo. Jesus continuou a dizer-me:

― Sacia, sacia, Minha filha, a tua fome; é o Meu amor que dá a vida, alimenta a tua alma e suaviza também a dor do teu corpo.

Os Anjos desceram do Céu, e, em turnos, assistem a verem dar-te este alimento divino. Escuta-os. Calou-se Jesus, e principiei a ouvir uns toques harmoniosos e arrebatadores, com misturas de vozes tão doces, que na terra não conheço. Cantavam:

Vida divina, vida de amor,
Manjar celeste do Rei de amor.

Fogo divino, vinde do Céu,
Manjar celeste do bom Jesus;
Fogo divino, vida das almas,
Força invencível da sua cruz.

Glória, glória! Glória ao Senhor
que é nosso Rei e Criador!

Cessou a música, cessou o canto, e eu ainda dentro do Coração divino de Jesus. Vi os Anjos, aos bandos como de andorinhas, a subirem, a baterem as suas asinhas brancas. Jesus abriu o Seu divino Coração, fez que eu saísse Dele e, sem se separar de mim, disse-me:

― Vou dar-te uma gota do Meu divino Sangue para alimento do teu corpo; não deixarei de to dar, enquanto que não deixar de te pedir a dor, o que não deixarei de te pedir a dor, o que não deixarei de te pedir, enquanto viveres na terra.

Jesus abriu num rápido momento, o meu peito; dentro do coração, deitou uma só gota do Seu Sangue divino. O coração principiou a dilatar-se, e Jesus, muito apressado, cerrou a abertura, passou por cima as Suas divinas mãos e bafejou-o com os Seus lábios.

― Vai, Minha filha, leva a minha vida, leva o Meu amor. Confia, confia que Me amas; estás cheia de Mim. A tua morte ‘e vida, a tua cegueira é luz, o teu vazio é o sinal, é a prova mais clara de que de Mim estás cheia, toda cheia, que só de Mim vives, que só a Mim pertences, que só a Mim amas. Vai, Minha filha; vai dizer que Jesus é muito ofendido, que a malícia humana não pode aumentar mais. Vai dizer que Jesus, pelos lábios da Sua vítima mais amada, pede a oração, pede reparação, pede penitência; e sobretudo pede pureza, pede amor. Vai, filha querida, para a tua amargura, para a tua cruz; vai com alegria, vai confiada, que contigo está sempre o teu Jesus. Coragem, coragem!

Já lá vão umas horas; o coração queima-me, estende os seus ardores a todo o peito, mas já o sinto cercado de espinhos e todo meu espírito mergulhado em cegueira. Bendita seja para sempre a minha cruz.

14 de Março de 1947 – (sexta-feira)

Não me tenho conhecido, e, e de dia para dia mais se apaga a luz do meu espírito e menos me conheço. Não me compreendo, ó meu Jesus; o que será de mim! Eu já morri; tudo em mim desapareceu com a morte, só a minha miséria ficou, só as maldades que me causam vergonha e nojo aparecem. Não sei porquê e não sei quem fez que outra morte corra para mim; sinto-a e vejo-a vir para mim, depois de ter morrido e desaparecido. Sinto como se o meu pobre corpo todo se desfizesse pela dor; parece que a lepra do pecado a mói; todo ele é pó e sangue. O meu crucifixo, o meu crucifixo é o companheiro dos meus braços, não posso separar-me dele. É Jesus, é a Mãezinha a força do meu sofrer. Eu não me contento em frequentes vezes renovar-lhes a oferta de vítima, dizer-lhes que Os amo; que lhes pertenço, que sou Deles. Quero mais, muito mais,, sempre mais e é esse mais que eu não tenho. Como hei-de pertencer-Lhes, se não existo; como hei-de amá-Los se não tenho amor; como hei-de dar-Lhes mais se não tenho esse mais! Caio no desalento, morro de fome e sede. Quero Jesus e não O encontro, quero ter que Lhe dar e nada posso. Meu Deus, meus Deus, que dor de morte! O meu coração está sempre aberto; sinto-o, dia e noite, sangrar; sinto os punhais e espadas que me cortam; que cortar finíssimo, que dor tão aguda! Quanto mais me ofereço a Jesus mais vezes Lhe digo: Meu Amor, sou a Vossa vítima.

Pobre de mim, mergulhei ao fundo do mar; toda a água desse mar imenso é dor; estou perdida; estou no fundo; mas oiço a tempestade furiosa, destruidora, que passa pelas ondas na superfície das águas. Quem poderá valer-me? Quem poderá salvar-me? Quem poderá salvar-me? Só o Céu, só o Céu. Sinto todo o mundo em desordem, a perde-se. Sinto a grande necessidade de me purificar, de ser pura, pura, santificar-me, para poder acudir ao mundo, para o salvar. E não aumento na graça, nem na virtude; não dou um passo para a minha santificação; não sei viver a vida do Céu, não sei seguir o meu Jesus, não vejo para caminhar pelos Seus caminhos. Mesmo assim, a minha alma tem paz; e digo a Jesus: ou amar ou sofrer, ou então morrer. Eu gozo na dor, mas é gozo sem conforto; mas quero sofrer para consolar Jesus, quero sofrer para Lhe dar almas, quero sofrer abraçada à cruz, à cruz das humilhações, das calúnias, à cruz de toda a dor e martírio. Sinto-me esmagadíssima, mas é por Jesus, só por Jesus que me deixo esmagar. Não sou compreendida? Deixá-lo. Ele compreende e vê o meu coração. Sinto-me apavorada com o aproximar-se da Primavera, de flores de martírio, de flores de espinhos para a minha alma; mas quero abraçá-las; em tudo o que é dor eu vejo Jesus.

O demónio, o maldito demónio não perde ocasião nem tempo; quer levar-me ao desespero e a ansiar pelas consolações, gozos e alegrias. Tenta pôr-me ódio ao sofrimento, encher-me de dúvidas, e mostra-me a minha vida perdida. O que seria de mim, se, por um só momento, Jesus me abandonasse, e perdesse a confiança Nele. Que luta sem fim; que luta tão só; que luta tão cheia de medos de tudo e de todos. Ó Jesus, avós me entrego, para ser sempre Vossa vítima. Quando me vêm novas contrariedades, novos espinhos, mais dou a Jesus os meus abraços, beijos e carícias. É um dar sem dar, é um viver sem viver. Seja pelo Seu amor.

Na tarde de ontem, o meu coração sentiu, a minha alma viu uma lança que o feria, que o trespassava, e todas as mãos humanas opunham violência a essa lança para ela mais violentamente o ferir e o coração mais sangrar. Assim segui o caminho do Horto, ainda mais com a dor da separação de Jesus e da Mãezinha. Se soubesse dizer o que sofreram aqueles dois Corações com aquela separação, ao saberem, um e outro o que iam sofrer! Eles separam-se, mas a dor e o amor ficaram em união um com o outro. Naquele Horto triste, foi o meu corpo que serviu de cálice cheio de amargura para apresentar a Jesus, e foi ele ainda que lhe serviu de cruz para o Seu corpo divino, e, dentro em mim, Ele encheu o cálice do Seu preciosíssimo Sangue, sangue que corria do Seu coração aberto. Depois disto, senti no meu rosto o rosto de Jesus, a suar sangue, e sentia-O inclinar-se sobre mim, desfalecido na Sua tormentosa agonia.

Hoje subi o Calvário, desfalecida, abrasada em sede. O meu corpo maltratado morria, mas a sede do coração, a sede de morrer, a sede de abrir o Céu, para fazer aparecer e brilhar o sol nas almas, sabia, aumentava, vivia mais, quanto mais se aproximava o Calvário e o momento de dar a vida; sede insuportável, sede indizível, sede que não era minha. E foi no Calvário esta sede até ao último momento a vida de todo o meu sofrer. Com o rasgar das chagas sentia os nervos encolherem-se, o corpo gelar, os olhos cerrarem-se e a cabeça inclinar-se; estava moribunda, ou para dizer melhor, estava moribundo Jesus. E foi ainda a mesma sede que revestiu de vida o Seu brado e o fez subir ao Pai. Nos últimos momentos de vida, dos olhos moribundos de Jesus brotaram ainda algumas lágrimas, por sentir e ver os últimos impulsos e crueldades feitas pelos homens, pela maldade humana, ao Seu Santíssimo Corpo agonizante. A sede do Seu divino Coração avivou mais, voou ao alto, ia a entrar no Céu ao encontro do Pai, enquanto o corpo morria. Que sede ardente, mas tão doce era a de Jesus!...Eu com Ele tive sede, com Ele subi, com Ele expirei. Ele expirou, para pouco depois viver e fazer-me viver a mim e falar-me:

― Minha filha, vem, vem, entra; está aberto, de par em par, o Meu Divino Coração; entra, não temas o fogo que o cerca; é amor que vivifica, é amor no qual eu quero purificar o teu, é amor que te dá a vida. Entra; vem alimentar a tua alma, enfraquecida pelo sofrimento; vem, descansa em Mim, suaviza a dor do teu corpo.

Jesus estava com o Seu divino Coração aberto, à volta Dele tudo eram chamas, parecia um jardim de doiradas flores. Entrei, Jesus inclinou-me a Ele e disse:

― Descansa, descansa, alimenta-te deste amor divino, é o Meu amor, a vida de que vives, a vida que quero que dês às almas. O médico divino vela sempre pela Sua vítima. Quantas vezes vires descerem pata ti os raios que têm descido, confia, é o amor, são raios de amor que saem da chaga do Meu divino Coração e vêm penetrar no teu. É o alimento que te dou, quando te vejo no desfalecimento, mergulhada no mar da tua dor. Confia, confia, não é ilusão tua, não te enganas. Eu virei a ti com esta medicina, com este fogo divino, frequentes vezes. Assim como o teu martírio tem toda a variedade de dores, também Eu procuro, na Minha Ciência divina, toda a variedade de conforto para te aliviar. Ó meu Jesus, eu não falei nos raios que a mim vi descer com receio de me enganar, de ser uma ilusão minha. Que medo eu tenho! Prometi, esposa querida não te deixar enganar; não falto à minha promessa divina, confia. Ó meu Jesus, é tal o medo que tenho de me enganar, que mal posso resistir ao aproximar-se a sexta-feira e a hora a que me falais; e a dor, que nasce daqui, continua mesmo quando estou convosco; porque é meu Jesus? Não te disse Eu, esposa querida, que seriam dolorosos os teus colóquios? Assim ferida, nadando no Meu divino amor, não sentes consolação; fica essa para Mim, toda para Mim. E não queres tu consolar-Me? Não queres tu reparar o Meu oração ultrajado? Vê em que estado me põem os pecadores.

Saí fora do Coração de Jesus, e vi-o despido da sua beleza, todo ferido, todo em sangue, a tremer e chorar. Que ternura senti por Jesus; disse-Lhe logo:

― Aceitai o meu pobre coração, para nele descansardes; aceitai todos os meus sofrimentos, nenhum valor têm, mas revesti-os de Vós, quero com o que é Vosso revestir-Vos da Vossa beleza, enxugar-Vos as lágrimas, sarar-Vos as Vossas feridas. Sou sempre a Vossa Vítima Jesus.

Enquanto que dizia isto, sentia como se abraçasse, beijasse, acariciasse Jesus e Lhe enxugasse as lágrimas.

― Não choreis, Jesus; eu amo-Vos; eu quero sofrer e quero reparar.

No mesmo momento, vi-O revestido da Sua beleza; já era o mesmo Jesus.

― Dás-me então, Minha filha, o que tanto te custa dar-Me e a Mim custa pedir-te? Dás-Me nos dias que vão seguir-se alguns ataques violentíssimos do demónio? Os pecadores vão às minhas prisões de amor receberem-Me, e dentro deles sou apunhalado, assassinado. Passo pelas suas línguas de fogo infernal, e, dentro das suas imundas prisões, sou morto. Dá-Me reparação, dá-Me dor, toda a dor, se não Me queres ver sofrer e se não queres que as almas caiam no inferno. Dou-Vos tudo, tudo, meu Jesus. E Vós prometeis-me toda a Vossa graça e força? Eu não te falto. Vai então; fala do Meu divino amor, da minha misericórdia e perdão. Mas antes de Me esconder, quero dar-te uma gota do Meu Sangue divino; sem ele não poderás viver, nem resistir a tão doloroso martírio.

Tomou Jesus o Seu divino coração; pelo centro saía tão grande labareda, que toda me rodeava, me embebia nela. Por entre o fogo caiu no meu coração a gotinha do sangue do de Jesus. Com o sangue e o fogo o coração crescia, crescia, parecia rebentar-me. Jesus veio logo, pôs termo a tudo, com o Seu cuidado, com as Suas santíssimas mãos. O fogo continuou a abrasar-me; mas o coração deixou de dilatar-se.

― Sem um milagre divino não aguentavas com tal força de amor, nem com o sangue que te corre pelas veias que é o Sangue de Cristo. Vai agora falar das Minhas maravilhas, dos tesouros que em ti estão enterrados; vai dar às almas este amor, a vida que recebes de Mim; vai dar tudo com as tuas muitas virtudes, com as mais altas virtudes. Eu sou Rei, e no trono da Minha rainha deposito tudo o que é Meu. Vai, lírio casto, pomba branca, espalhar pelo mundo o teu perfume, a tua alvura. Vai pedir-lhe, vai lembrar-lhe que Jesus pede oração e penitência, o amor, a pureza da vida. Vai, Minha filha, tem coragem, nada temas, confia em Mim. Vai confiada que é Minha a vitória, é Meu o triunfo. Coragem, coragem!

― Obrigada, obrigada, meu Jesus.

21 de Março de 1947 – (sexta-feira)

Temo-me, temo-me; tenho medo de mim mesma; tenho medo de viver no mundo. Eu vejo-o tão cruel para mim. Todos me ferem, todos tentam tirar-me a vida, é uma revolta universal; todos contra um, isto é, todos contra mim, é o que sinto. Os seus maus-tratos, a sua crueldade fere-me tanto; reduz o meu corpo a uma massa de sangue. Sinto em mim; não sei dizer, não sei se me exprimo bem, duas naturezas uma viva outra morta. A morta é esta massa de sangue, e foi a crueldade do mundo que a causou. A que vive é imortal, resiste a tudo, é uma vida superior; por mais que o mundo empregue as suas crueldades e maldades, nunca lhe tirará a vida, nunca a fará desaparecer. Mas, ó meu Deus, que luta dentro de mim. Esta vida opõe-se contra tantas maldades, que não aceita esta morte tão cruel do corpo, e prepara-se para a chamar e pedir rigorosas contas. Eu olho para esta morte, para este corpo desfeito em lepra, para esta massa em sangue e revolto-me contra mim mesma, não posso ver-me. Fui eu e só eu a causadora de tanto mal. Jesus, Jesus; sou a Vossa vítima; seja por Vosso amor toda a variedade destes sofrimentos. Vede tudo que em mim se passa, e dai-me a Vossa força.

Vi por duas vezes passar Jesus, à minha frente, como se fosse por um caminho com um grande madeiro aos ombros; ia curvado com o seu peso e tão desfigurado, que mal parecia Jesus. Ele inclinou para mim o Seu Santíssimo rosto mas nada me disse, e eu nada soube dizer-Lhe; não soube provar-Lhe o meu amor nem consolá-Lo. Disse-Lhe: sou a Vossa vítima, mas foi bem pouco para quem tanto sofria. No sentir da minha alma, nada Lhe disse, nada fiz por Ele; sofri e sofro por nada consolar Jesus, a quem só quero amor. Quando sinto os punhais e espadas cortarem-me o coração, queria saber falar a Jesus, dizer-Lhe muitas coisas lindas e não sei; abraço o crucifixo contra o meu peito, renovo a oferta de vítima, digo-Lhe que O amo, que quero sofrer eu, para não sofrer Ele, e fico na dor de não O saber consolar, quando Ele tanto está a sofrer. Poucas vezes, vi descerem sobre mim os raios de amor do Seu divino Coração; quando eles desceram e penetraram em mim, fiquei mais forte e com mais coragem, por algum tempo.

Tive três combates com o demónio, todos a seguir, na mesma noite. Talvez uma hora antes de se travar o primeiro combate, a minha alma viu todo o inferno contra ela, estava aberto para lá receber o meu corpo; eu estava à boca dele, e a cada momento parecia lá cair. Senti grande revolta, juntamente com grande pavor. Apesar disse, não evitei o pecado; queria satisfazer as minhas paixões. Travou-se a luta, três vezes seguidas, quase sem parar. Eu não me esforcei por defender-me, ou sentir não me esforçar. O demónio falava pouco, toda a maldade era minha. Poucas vezes invoquei os nomes de Jesus e da Mãezinha e lhes disse que era a Sua vítima; não me lembrava; o pecado era a minha loucura. Ao terminar fiquei novamente nas garras do demónio, na boca do inferno; não tinha arrependimento, sentia grande revolta, queria matar-me a mim mesma, e não saia da boca infernal, nem do perigo de lá cair. Sentia e ouvia estalos, como lenha verde, e por mim pareciam passarem as labaredas e o fumo negro. Depois disto, queria beijar Jesus crucificado e essa querida Mãezinha e não tinha coragem; a vergonha não me permitia beijá-Los nem abraçá-Los; só com grande esforço o pude conseguir. Depois, fiquei com a alma e o corpo num doloroso martírio.

O dia de S. José passei-o mais aliviada dos sofrimentos da alma; não senti gozo nem alegria, mas sim suavidade. Ao cair da tarde veio de novo a noite escura, as amarguras e agonias da alma. Sofri por não ter sofrido e abraçado Jesus dizia-Lhe: não soube amar-Vos nem ter para Vós carinhos; parece que hoje não vivi; meu Jesus, sinto-me como se hoje não estivesse no mundo; não posso viver sem a dor da alma e do corpo; se ma tirais, não sei viver, não posso estar aqui. Ó Jesus, ó Jesus, junto a Vós abraço a minha cruz com todo o meu sofrer, não me tireis a dor, dai-me conforto; só a dor é a vida e a alegria dos meus dias. Sou Vossa, ó Jesus, sou a Vossa vítima.

Na tarde de ontem, sentia torcer-se e espremer-se a minha alma. Num rápido momento, senti que o meu coração se sentia em dois pedaços; um ficou a ser o Coração de Jesus e outro o da Mãezinha. O de Jesus segui para o Horto dentro de mim; o da Mãezinha ficou desfeito em dor e em lágrimas, só o amor foi a acompanhar Jesus. Como eu sofri, ao ver na dor que ficou o da Mãezinha! Caminhando sempre, sempre fiquei unida àquela dor, e, na mesma união de dor, ficou Jesus. No Horto, senti ao meu pescoço grossas cordas que mo apertaram e cortaram; até quase nele ficarem escondidas; por elas foi o meu rosto levado ao chão e nele ferida e pisado. De lá vi, ao longe, uma árvore, na qual estava dependurado Judas; dela o vi cair ao solo, rebentar, e, no mesmo solo, se espalhar o que o corpo dele continha. Foi a venda, a entrada de Jesus, o beijo traiçoeiro que o levou àquele acto, àquele desespero. Tudo senti na minha alma, como senti o amor de Jesus, a enfrentar toda aquela maldade. Que indizível ternura, amor e compaixão! Com tal visão foi tão espremido o Coração divino Jesus, foi tal a Sua amargura, que encheu o cálice; transbordava fora; o Seu sangue divino corria pelo Horto.

Hoje passei todo o caminho do Calvário, sem nele aparecer um raiozinho de luz. Caminhei revestida de toda a maldade humana. De um e outro lado, surgiam rancores, almas sem dó nem piedade de mim; fitavam com ódio e desespero. Era tal a sede de amor por todo o sofrimento, que de amor se formava como que um canal que toda a dor recebia e toda a maldade fazia desaparecer. No alto da cruz, este canal de amor continuou e tudo absorveu para si; parecia ter braços que abraçavam.

As chagas rasgavam-se, os nervos encolhiam-se, e eu morria de cansaço e de dor. O meu brado de agonia mal se ouvia no Calvário; a fortes impulsos do coração eu subia ao Céu. No calvário tudo passava despercebido; o brado moribundo já não passava pelos ouvidos nem penetrava nos corações. Com a violência da dor e o impulso do coração, ele foi subindo, mas o Céu tão fechado e com nuvens tão negras pareceu não o receber, rejeitá-lo também. Eu agonizei e de mim voou a vida que o foi abrir. Pouco tempo depois, caiu sobre mim uma chuva d fogo, a qual me abrasou tanto que não podia resistir. Mas logo acudiu Jesus, deu-me a Sua força divina e disse-me:

― Minha filha, Minha filha, a ti veio o Meu amor, a ti desci com todo o Meu fogo divino, em ti vivo com todo o amor, porque com todo o amor por ti sou amado. Amas-Me, quando choras, quando sorris; amas-Me na dor e na alegria, amas-Me no silêncio ou falando, amas-Me em tudo; dia e noite, sobem ao Céu, em cada momento, os teus sofrimentos, o teu amor. Estou no teu coração como num braseiro do maior fogo, das mais vivas chamas. Amas-Me; amas-Me; confia em Mim. Dou-te as ânsias de amor, faço-te sentir que não Me amas, para que por ti as almas anseiem amar-Me e conheçam que não Me amam. Diz, Minha filha, diz que é um queixume de Jesus, que é muito pequenino o número das almas que Me amam com verdadeiro amor, com amor puro. E tantas que não é por Me ofenderem gravemente, mas estão como insectos sem pernas e sem asas, que, só rolando, mal saem do seu lugar; e assim vivem e assim morrem.

― Ó meu Jesus, a esse número pertenço eu também; tende dó de mim, vede a sede que tenho de Vos amar, vede que quero voar para Vós e só para Vós quero viver. Mas sei Jesus que estas ânsias, estes desejos não me pertenciam, nascem de Vós, em mim só miséria aparece.

― Assim é, Minha filha; mas tu cooperaste com a Minha graça, deixaste-Me trabalhar; acendi em ti o fogo, e foi como por rastilho rapidamente, e aqui estás neste Calvário, como bomba sempre a explodir. Aqui te coloquei para a dor e para o amor. Espalha, espalha, infunde nas almas o Meu amor e dá-Me com alegria a tua dor que é dor de salvação. Estiveste Minha filha, sobre o inferno; foi para te mostrar no perigo que estão os pecadores, o maior número das almas que existem na humanidade; não se arrependem, não deixam o pecado. Eu continuarei a pedir sempre o teu sofrimento; serei como um mendigo, que não cessa de pedir. Quero que digas, Minha filha, que Meu Eterno Pai espera bem pouco tempo pela reconciliação do mundo, pela vida pura de oração e penitência dos homens. Ai dele, pobre mundo, se depressa não vem a Mim e deixa seus crimes. Em breve, muito em breve será castigado. Acode-lhe, acode-lhe, esposa querida; vê que são Meus filhos.

Jesus dizia isto e chorava.

― Meu Jesus, são Vossos filhos e filhos do Vosso sangue divino, mas se o meu sofrimento os pode salvar, aqui me tendes, Jesus; dai-me o que quiserdes e não quero que me peçais. Sou a Vossa vítima, quero a Vossa força e graça. E não choreis.

Jesus deixou de chorar e disse-me:

― Quero que sofras, vítima inocente, mas quero pedir-te o sofrimento; com isso dou lição ao mundo; um Deus pedir a uma criatura Sua para lhe salvar os Seus filhos.

― Meu Jesus; e os meus sofrimentos nada valem, se o mundo for castigado?

― Valem, valem, filha amada; as almas são salvas mas salvas pela tua dor e não pelos seus merecimentos; são salvas à força, não Me dão a glória que deviam dar; mas são salvas, vão amar-Me eternamente, embora em lugar mais baixo, pela falta dos seus merecimentos. Dá-Me dor, dá-Me dor, Minha filha. Para ma dares com mais força e coragem dou-te Eu a ti a vida de que tu vives, a vida da tua dor, uma gota do Meu Sangue divino.

Dito isto, logo em Suas divinas mãos vi o Seu Coração abrasado em labaredas de fogo; por entre elas caiu no meu a gotinha do Seu preciosíssimo Sangue. O meu coração logo se dilatou e ficou ofegante. A força, com que palpitava, fez correr em todas as minhas veias aquele Sangue. Foi o que eu senti, e Jesus o confirmou.

― Minha filha o teu coração está aberto pelos punhais, como o meu foi pela lança sangra sempre e foi por esta chaga que o meu Sangue divino entrou. Ó maravilha no mundo nunca vista; só em ti foi operado tal prodígio! Todo o Céu com os seus Anjos se regozija, se alegra ao ver tal maravilha. São os impulsos de amor que levam a correr por todas as tuas veias o Meu Sangue divino. Vai, esposa querida, vai, e dá esta vida às almas; que é a vida do Céu. Vai para a tua dor, vai para a tua cruz, é este Sangue a tua força, o teu amor no teu martírio. Coragem, coragem! Confia e vai em paz.

― Obrigada, meu Jesus. Não quero que um só momento cesse o meu agradecimento.

28 de Março de 1947 – (sexta-feira)

A morte vem, aproxima-se para breve, mas é uma morte que, me deixa viva, só o corpo morre; são os pecados, é o mundo inteiro a matar-me, mas não pode matar tudo. A vida que sinto não morrer é a vida superior, é a vida de triunfo, é a vida que faz viver e governa todas as vidas. Sinto que ela está em todo o mundo como sopro de ar espalhado. Sinto que a esta vida pertence todo o Céu e toda a terra. Sinto imensa necessidade de falar desta vida, de a fazer conhecida e não sei; limito-me apenas a dizer; é a vida de graça, é a vida de amor. Mas oh! Que amor louco, que amor sem igual! Eu queria amar esta loucura de amor, com amor e loucura semelhante. Mas, ó meu Deus, como estou longe! Sinto que se trabalha dentro em mim; toda a mobília da minha casa, isto é, do meu corpo saiu fora. Toda a imundice, todo o pó é limpo, mas não por uma só vez; tem sempre de se voltar atrás e limpar novamente. O meu vazio é tão grande; só o Céu o pode encher, só Jesus com todo o Seu amor o poderá satisfazer. O mundo não me enche, nem milhões deles, se os houvesse. Sinto-me como a querer fugir da terra, a aborrecê-la, a odiá-la; não me pertence, quero desaparecer dela. Ando como se fosse um sopro a vaguear nos ares. Quero ir para Jesus, encher este vazio. Mas Ele está tão longe. Ai, a minha Pátria! Quanto mais a anseio, mais a vejo fugir. Daqui nascem os meus desânimos e desalentos; mas estreitando contra o meu peito o Crucifixo, logo me levanto. Hei-de vencer com Jesus. A cegueira é tanta, não me deixa ver, fico como desatremada nos seus caminhos. Mas a minha confiança, tantas vezes contra toda a esperança obriga-me a crer: sou de Jesus e da Mãezinha. Depois de tanta luta, tanto sofrer, virá o Céu. Sei que o não mereço, mas espero não ser por Jesus, nem pela Mãezinha abandonada.

Haverá alguém que só Neles confie e fique Deles ao abandono? Oh! não! Oh! não; pensar assim, seria ferir Jesus. Quero ter o meu espírito sempre preso, açaimado para não perder a minha união com Deus. Se assim não for serei como animal mais feroz e sem freios; e no meio do mar doloroso martírio de alma e corpo não perder por um só momento que seja a união com o meu Deus. Quero separar-me tanto tempo Dele, como Ele se separa de nós com os Seus olhares divinos, e como a dor se separa do corpo. Não posso viver sem Deus; não posso viver sem a dor. Queria ver toda a humanidade a viver a vida íntima com Nosso Senhor; estou certa que o pecado desapareceria da terra.

O demónio não cessa a sua guerra contra mim; o meu espírito é com dúvidas consumido. Quando assim é, Jesus vem por uns momentos suavizar a minha alma com o Seu amor e a Sua paz; fico mais forte para a luta. Passou o quinto aniversário que Jesus deixou de manifestar em mim a Sua Santa Paixão e deixei de me alimentar. Só quero o que Jesus quer. Mas ó que pena e que saudades. Senti durante três dias como se todo o meu ser tivesse bocas para comer; tudo ansiava. O alimento que eu desejava, que era tudo, sentia que todo o mundo o comia; para mim só me bastava a dor e a saudade. Meu Jesus, sou a Vossa vítima. Os olhos do corpo não choravam, mas os da alma suspiram o lugar; foram lágrimas dolorosas, mas sempre conformes com a vontade do Senhor.

Passei deste martírio ao Horto, para ali me unir a mais padecimentos. Foi o meu rosto escarrado, os olhos vendados, mas tinha outros olhos que viam passarem pela minha frente por escárnio, ajoelhando, fazendo grandes continências. Sobre os meus ombros, tinha uma velha capa, sobre a cabeça uma velha coroa, e eu, no maior abatimento, no meio de tantos algozes. Eu digo eu, mas não era eu, era Jesus revestido em mim. Se fosse eu não sofria, porque tudo mereço. Sou muito humilhada, sinto-me desesperada, e reconheço que sou digna de tudo. Mas ver e sentir Jesus sofrer assim, não tenho coração para aguentar! Tenho por vezes que esforçar meus olhos e os meus sentimentos a retirarem-se de tão grande suplício. Quanto sofreu Jesus, que dor sem igual; e tudo por nosso amor. No solo do Horto levantaram-se como que quatro negras paredes de tal altura, que não lhes via o fim; fiquei entre elas, apertada como numa prensa com a visão de todos os sofrimentos. E então de todo o meu corpo saía suor de sangue; fiquei banhada e como nunca só ferida.

Hoje, logo de manhã tive o sentimento de todo o caminho do Calvário. Continuei a sentir todo o corpo despedaçado e em sangue. As minhas lágrimas eram de sangue e pelos lábios e ouvidos saía sangue também. Já perto do Calvário, a um grande desfalecimento de Jesus vi cair sobre Ele uma grande chuva de açoites e forte rancor, parecia infernal. Esta descarga tormentosa deu-se dentro de mim. Senti bem este rancor, mas senti muito mais ainda a doçura e amor com que Jesus tudo recebia. No alto da cruz, continuava o ódio e o rancor dos mesmos. Jesus pode ver com os Seus Santíssimos olhos quase moribundo a lança que bem depressa viria abrir-Lhe o peito e ferir Seu divino coração; à sua frente estava o que ia cravar e do Seu Coração divino saíam para Ele como que ósculos de amor. Esgotavam-se as forças, fugia-Lhe a vida, mas não se esgotava nem Dele fugiu o Seu divino amor.

Nem com o expirar de Jesus se esgotou; estendeu-se pelo Calvário, e do Calvário, e do Calvário, e do Calvário ao mundo como sopro de ar, como perfume delicioso. Eu expirei com Ele e a Ele ficou preso, por algum tempo, o meu coração. Não foi pronto a falar-me, demorou-se. Quando veio disse-me:

― Minha filha, Minha filha, jóia preciosíssima, jóia do mais alto valor para o Meu divino Coração. O ouro de que é feita esta jóia são todas as tuas virtudes; a pureza, a graça, a obediência, a humildade, a caridade e todas as outras mais. As pedras preciosas que a guarnecem, é o amor e a dor. Como estas pedras brilham no meio de ouro fino de tantas virtudes! Que riqueza, que tesouros encerram esta jóia; tem encantos atraentes, tem luz que guia, tem, laços que prendem! Tem amor que Me ama, tem amor que ama as almas; é o preço delas, é delas a salvação, é delas a salvação. Eis a razão, Minha filha, Minha pomba querida, eia a razão por que este tesouro é perseguido., é assaltado; é durante a vida, e sê-lo-á depois da tua morte. Nas perseguições dos cristãos, são mais perseguidos aqueles, que são cristãos a valer, notados de maior virtude e maior graça. Quando há grandes assaltos de ladrões, não vão eles assaltar as pobres choupanas, onde nada podem encontrar; vão aos palácios ricos e poderosos. As riquezas, que em ti depositei, são inigualáveis. O palácio do teu coração possui toda a riqueza, que o Meu encerra. A missão, que te confiei, é a mais alta e sublime. A guerra a ela será pior que do inferno. Tem coragem! É Minha a causa, é Minha a glória, é Meu o triunfo. Quanta mais perseguição, mais luz. A tua vida será para o mundo um raiar de sol puro, de sol brilhante. A tua vida será, através do tempo, para as almas uma estrela, que as guia e conduz a Mim. Dá-Me a tua dor, dá-Me o teu amor; que é o resgate das almas.

― Meu Jesus, sim eu quero o Vosso amor para com ele Vos amar e fazer com que as almas Vos amem. Dou-Vos a minha dor, sim, de boa vontade; comprai com ela os pecadores, prendei-os para sempre a Vós. As Vossas palavras, meu dulcíssimo Jesus, humilham-me; eu sem ter querer, queria desaparecer, queria desaparecer. O que dizeis de grande é bem, isso me conforta. O que eu quero, Jesus, é estar na verdade, em nada me enganar. Aceitai, aceitai também, Jesus, a dor da minha humilhação.

― Confia, Minha filha, não permito, não consinto que te enganes; é a verdade pura, mais pura que a neve, mais clara que o sol. Eu aceito a dor da tua humilhação, e sabes para quê? Para acudires a certas almas, prestes a caírem no inferno. Vais sofrer muito, vais ter dias de grande penúria.

Vi que Jesus ia a dizer-me quem eram essas almas; acudi logo:

― Jesus, Jesus, não digais quem são, basta sabê-lo Vós. Dou-Vos os meus sofrimentos, para por eles os aplicardes como Vos aprouver. É mais sossego para a minha alma; posso-lhes acudir da mesma forma, não é verdade, Jesus?

― Sim, sim, Minha grande heroína; maior é a prova do teu amor e mais valiosa a tua dor; dares sem desejares saberá a quem. Olha, vem a Minha Mãe Bendita, a Minha Mãe das Dores, mostrar-te quanto Comigo sofre e pedir-te para lhe salvares essas almas, suas filhas também.

Logo ficou a meu lado a Mãezinha das Dores, lacrimosa, com um manto azul e branco e cheio de setas o Seu Santíssimo Coração.

― Minha filha, Minha filha ―  me disse Ela: ― vê quanto eu sofro também; dá a tua dor a Jesus, para Lhe salvares as almas, filhas Dele e filhas minhas.

― Ó Mãezinha, ó Mãezinha, eu não posso consentir que Jesus me peça e Vós me peçais a dor; basta dardes-me os sofrimentos e com eles a Vossa força e amor. Sei que o sofrimento é um grande bem para mim e para as almas; quero sofrer, pois, com toda a generosidade e amor, mas não quero ver ferido o Coração divino do meu Jesus nem ver no Vosso essas setas; passai-as para mim Mãezinha.

Ficaram no mesmo momento no meu coração as setas e a Mãezinha delas libertada: secaram-Lhe as lágrimas, e ficou o Seu Santíssimo rosto, cheio de alegria. Aproximou-se Jesus mais de nós, e disse:

― Vai assistir à Minha Bendita Mãe à passagem do sangue do Meu divino coração para o teu.

Tomou em Suas divinas mãos o Coração todo em chamas, colocou-o sobre o meu; a gotinha de sangue caiu, e logo fiquei com o coração e todo o peito a arder em fogo vivo.

― Jesus, Jesus, morro queimada.

Acudiu a Mãezinha e passou-me sobre o peito as Suas Santíssimas mãos, bafejou-me por algum tempo com os Seus lábios, e disse-me:

― Coragem, filhinha; é o Sangue de Jesus, é o Sangue que correu em Minhas veias, que foi para o teu coração; é a tua vida, é de que tu vives.

Jesus acrescentou:

― Agora és consumida pelo fogo do amor e depois dele apagado ficas a ser consumida pela dor. Foi para isso que te fez ver as setas que feriam a Minha Bendita Mãe. Acode aos pecadores. Ó maravilha, ó maravilha! Leva esta vida que de MIM recebeste, leva o Meu divino Sangue; provo bem claramente que é a tua vida; vai dá-la às almas. Ó prodígio, grande prodígio! Vai corajosa, vai confiada, cheia de amor. Vai dizer ao mundo que, se não foram os teus sofrimentos, já a justiça do Meu Pai o tinha submergido em vulcões de fogo. Que castigos estão sobre ele! Que ameaças o esperam! Ai dele, se não se converte! Vai para a tua cruz, vai com alegria, acode às almas.

― Obrigada, Meu Jesus, obrigada, Mãezinha. Uni o Vosso coração ao de Jesus e ao meu; nesta união vou contente para a minha dor. Sou vítima, sempre vítima, sou a escrava do Senhor. Jesus, Mãezinha, quero força, quero força, seja comigo o Céu.

4 de Abril de 1947 – (sexta-feira santa)

Venha sobre mim o auxílio do Céu; sem a força divina nada poderei dizer, não posso mover os lábios para falar. A cada movimento, a cada palavra, sinto como se me arrancassem o peito e o coração. Confio; se Jesus quiser, conseguirei dizer alguma coisa do que me vai na alma. O meu corpo desfeito pela dor tem sido um montão de podridão a ferver. Este montão parecia-me a mim ser toda a humanidade estragada, a ferver de apodrecida. A morte correu para mim; sentia vir, senti-me morrer. Senti como se me separassem a alma do corpo; mas esta morte não deu ao corpo as cinzas de um cemitério.

Pouco depois de morto e sepultado, eu vi-o todo formosura, glorioso, a triunfar da morte. Quanto custa ao corpo separar-se do espírito; ele subiu, voou para o alto, e via que bem depressa de novo se unia àquele corpo que deixava frio, mais frio que o gelo, desfigurado, despedaçado, quase sem carne. Que contraste, que coisa que não sei explicar! Ele via que, de novo, se juntava, mas até esse momento até chegar a hora dessa separação, que universo de dor, que mar de martírio! Este corpo que morria e era glorioso, este espírito, que voava, estava em mim, mas não era meu; eu era apenas esse montão de morte apodrecida, nojenta, horrorosa, que causava a morte a este corpo glorioso. Eu não podia enfrentar tais coisas. O espírito puro, que podia voar com o seu corpo glorioso, introduzido, transformado nesta morte imensa, no meu corpo mundial apodrecido! Eu queria separar uma coisa da outra, e não podia; eu queria desviar o puro do imundo, e não conseguia; tive que morrer e ver o corpo e o espírito puro coberto da mais negra podridão. Sinto necessidade de querer dizer muito neste sentido, e não posso, nem sei dizer melhor. Senti que, depois da morte, dessa morte gloriosa, desci como que a um inferno, mas não a um inferno de fogo, de maldições e tormentos mas a um inferno só de tremenda escuridão, onde não entrava luz nem alegria; era um inferno de cegueira e ansiedade. Senti como que Nossa Senhora estivesse em mim, contente de braços abertos, como quem se sustenta no entre aquela multidão, como uma pomba batendo asas transmitindo a mesma alegria e fazendo como voasse essa multidão toda. Mas como, meu Deus! Vivo e não vivo, sou eu e não sou, estou no mundo e parti. Senti que desci a esse inferno, mas, de novo, saí, e que, atrás de mim, levava um bando sem número de pombas brancas que voavam atrás de mim, não digo bem, voavam esses seres que eram corpos atrás desse corpo glorioso. Eu senti e vi tudo e fiquei sempre mergulhada na dor, na cegueira e na morte. O que sofreu o meu pobre corpo, nestes dias, só Jesus o sabe. As agonias e torturas da minha alma só Ele as pode compreender. Este martírio de alma e corpo impediu-me de poder orar, de poder meditar na paixão de Jesus. Fitava-O na cruz rapidamente e só dizia: o que sofreu Jesus por meu amor; sofreu tanto que morreu por mim! E terei eu coragem de negar algum sofrimento de alma ou do corpo! Oh! não, meu Jesus; com a Vossa graça eu nada Vos negarei. Sou a Vossa vítima, noite e dia. Ó Mãezinha, pelas Vossas dores, pelo que sofrestes, junto à cruz do Vosso e meu Jesus, permiti que me associe a Vós e dai-me coragem e amor para o meu sofrimento.

No princípio da tarde, de ontem, senti como se a minha alma fosse presa, insultada, maltratada; era um nunca acabar de martírios. Nas outras quintas-feiras tenho sentido um ou outro sofrimento, mas neste senti muitos, se não foram todos. Senti e vi com a maior de todas as maravilhas; Jesus dar-se para nosso alimento, partir e ficar connosco. Que maravilha, que amor tão profundo! Vi o lava-pés e o discípulo amado inclinado sobre Jesus. Sentia e via o desespero de Judas. E vi-o partir à frente dos outros para O ir entregar. No Horto senti e vi beijar e apontar para Jesus para poder ser preso. Mas, antes da prisão, senti e vi a Sua grande aflição, a rolar pela terra, a suar sangue; o Anjo a confortá-Lo, e ele, com o cálice da amargura, a enchê-lo de sangue que lhe saía dos Seus divinos olhos, ouvidos e de todo o corpo. Vi, depois, à saída do Horto que O acompanhavam uma grande multidão de soldados com armas, homens com paus. Meu Deus, como eles maltratavam a Jesus! Como Ele já ía desfigurado e desfalecido! Vi S. Pedro a negá-Lo, mas sentia que aquela negação foi feita só por temor.

O galo cantava uma e outra vez. Ele chorou copiosas lágrimas. Oh! como foi grande o seu arrependimento! Custou-me tanto ver Jesus, de tribunal em tribunal, tão mal tratado, e por fim ter de O deixar sozinho na prisão. Ele já não parecia Jesus; os maus-tratos e a tristeza tinham-Lhe roubado toda a beleza. Deixei-O quase moribundo em tão escura prisão. E assim moribundo O senti hoje a seguir os caminhos do Calvário. Parecia-me que todas as feridas do Seu Santíssimo Corpo estavam no meu e ainda assim era chicoteada e arrastada; não havia compaixão para mim nem para o Nosso Jesus. Os espinhos da Sua Santíssima Cabeça feriam-me a minha e também me feriam o coração. Fui subindo e quantas vezes desfaleci com Ele e com Ele ia a expirar. Jesus ia dentro em mim tão ansioso para a morte como cordeirinho sequioso para a corrente; queria morrer para dar a vida. Na cruz, eu sentia como se o sangue das Chagas de Jesus corresse nos meus braços, pés, peito e cintura, como se tivesse chagas também. Senti, dentro em meu peito, um mundo tão cruel e tão duro que mo abriu, de cima abaixo. Não aceitava o amor de Jesus, não pude aguentar; não bradei como Jesus: meu Pai, porque me abandonaste, mas disse: ai, meu Deus, meu Deus, valei-me. Sei que o disse alto; não tive força para me conter a dizê-lo baixo. Neste transe doloroso, fiquei como se expirasse com Jesus. Passou-se algum tempo num silêncio mortal; Jesus despertou e fez que eu despertasse.

― Minha filha, Minha filha, eu não morri; vem a Mim, vem para o Meu amor, vem para o Meu fogo divino; ele é para ti a vida, é o cadinho, o fogo que te purifica, que dá a pureza, a graça, todo o brilho à tua alma. Mergulha-te nele, namora-te de Mim, enche-te, para poderes encher as almas. Descansa neste fogo, suaviza nele a tua dor, retoma as forças perdidas em tão doloroso martírio.

Jesus calou-se e eu fiquei por um espaço de tempo a arder naquelas chamas; senti-as, vi-as; eu era a caldeira, Jesus o fogo. Conservei-me em silêncio também; não sabia falar a Jesus. Não sentia as dores do corpo e a alma naquelas chamas tornou-se mais forte. Continuou Jesus:

― Minha filha, Minha esposa querida, vais agora receber-Me pelas mãos do Anjo da tua guarda. Vem, ao Seu lado, S. Miguel Arcanjo e o Anjo S. Gabriel; atrás deles seguem-nos uma multidão deles. Prepara-te; descem do Céu.

Só disse: Senhor, eu não sou digna, etc. Vinham os três Anjos, como me disse Jesus, e pararam à minha frente. O do meio com a Sagrada Hóstia nas mãos; os dos lados alumiavam e cobriam o do meio, o que trazia Jesus, com uma umbela rica. A multidão deles não cantavam, mas de mãos levantadas, cabeças inclinadas, num profundo recolhimento, dizia: glória, glória ao nosso Deus, ao nosso Rei, ao nosso Amor. A Ti glória, a Ti glória, ó Jesus, nosso Deus e Senhor. Isto era em tom de quem reza e não de quem canta. Inclinou-se para mim o Anjo; eu estendi-lhe a língua e Ele ao dar-me Jesus não principiou pelas palavras do costume, mas sim: “Viaticum Corpus Domini nostri Jesu Christi custodiat animam tuam in vitam aeternam”.

Desapareceram com a mesma reverência, no mesmo silêncio com que tinham aparecido em volta de mim. E toda a multidão de Anjos batia as suas asinhas brancas e pronunciavam as mesmas palavras. Vi-os seguir, tudo era luz.

Fiquei mergulhada em amor, numa intimidade com Jesus; parecia-me inseparável Dele.

― Minha filha, dei-Me a ti em alimento, sou a tua vida. Dei-Me deste forma, para mais e melhor mostrar as minhas maravilhas e para mostrar que estou contente com os Meus representantes na terra, com a doutrina da Minha Igreja. Não podia deixar-te sem o Meu alimento, depois de tantas forças consumidas, de tanto sofreres! Prometi não deixar-te sem a Minha Eucaristia, às sextas-feiras, e não faltei. Recebeste-Me como viático e é verdade que és enferma e sem um milagre divino não terias resistido à dor, eras moribunda. Coragem, Minha filha, Eu continuo a pedir-te sofrimento porque O Meu Eterno Pai continua a exigir grande reparação das Minhas vítimas para a salvação do mundo, para que os pecadores se convertam e venham a Mim. O Meu Divino Coração suspira, anseia por eles; vejo-os a fugirem-Me, a perderem-se, acode-lhes, são meus e teus. És a minha esposa mais querida, a maior vítima que tenho na terra, és a continuadora da Minha paixão, da obra da redenção. É revestida de Mim que continuas a salvar almas, a resgatá-las do pecado e a arrancá-las das garras de Satanás. Vai com o Meu divino amor, com a Minha graça salvá-las. Vai dizer tudo; leva a luz do Divino Espírito Santo. Coragem, coragem, e amor; vai para a cruz, que só deixarás, no momento da morte, quando voares ao Céu.

― Muito obrigada, meu Jesus! Permiti que eu vá firme no Vosso amor divino; conto com a Vossa graça. Aceitai desde já, o meu sacrifício. A minha alma já está a cair em grande amargura. Venha o que vier, eu amo-Vos; sou a Vossa vítima. São passadas três horas em que fui mergulhada no amor de Jesus; o coração ainda me queima, o peito está em brasas. A alma está triturada de dor; tudo em mim é cegueira, tudo são trevas na terra e no Céu. Seja sempre bendito o Senhor.

5 de Abril de 1947 – 1º sábado.

Morri e não ressuscitei com Jesus; fiquei na mesma morte; fiquei em horroroso sofrimento. Envergonho-me de mim mesma, de só falar da dor; mas ela não me deixa, dia e noite. Só posso bendizer o Senhor por tantos miminhos vindos de Suas mãos divinas. Num demorado abraço no meu crucifixo com grandes gemidos, mas também com grandes ânsias de sofrer por Ele disse-Lhe: meu Jesus, contai sempre comigo para ser a Vossa vítima, não conteis com o meu amor, mas sim com o Vosso, pois é com ele que eu Vos amo; não conteis com a minha generosidade e força, mas sim com a Vossa; é a Vossa generosidade, é a Vossa força que se levanta a aceitar alegremente todo o sofrimento. A minha alma vê os espinhos, como se fossem rosas Formosas; quero sofrer, quero amar-Vos. Com o corpo cheio de agudíssimas dores e a alma em agonia foi que hoje, ao cair da tarde, recebi o meu Jesus. Cessaram os sofrimentos, fiquei como se adormecesse no Senhor. Veio Jesus, pôs em grande movimento o meu coração; incendiou-mo com todo o peito.

― Minha filha, tu que és a minha alegria e consolação vem a Mim tu que és a estrela que guia as almas, vem ao Meu Coração incendiar-te no Meu divino amor. Vive de Mim, recebe para viveres, vive para dares a vida. Eu vou dar-te uma gota do Meu Sangue divino; vai correr em tuas veias, vai suavizar a tua dor, vai dar-te a vida perdida em tão penoso martírio, neste Calvário onde te coloquei.

Jesus uniu logo o Seu divino coração ao meu. Logo que senti sair a gota do Seu divino Sangue, senti força, senti vida, toda a vida do Céu. Com o meu coração unidinho ao de Jesus, fiquei por algum tempo como que a navegar num mar de amor infinito de Jesus.

― Descansa, aqui, Minha filha; descansa e recebe vida; é esta a vida das virgens, é esta a vida das esposas loucas de amor por Mim. Diz, Minha filha, ao teu Paizinho que vou fazer que ele seja levado às alturas, não só no Céu no Meu amor, mas já aqui, na terra, nas Minhas obras e maravilhas; será justificado multiplicadas vezes mais do que foi humilhado. Dá-lhe o Meu divino amor para as almas; diz-lhe que será sempre o grande mestre delas e grande consolador do Meu divino coração. Diz ao teu médico que o amo, diz-lhe que lhe dou toda a Minha serenidade, tranquilidade e paz; diz-lhe que lhe dou o Meu divino Coração, cheio de amor, com a Minha bênção divina e abundância das Minhas graças, para ele distribuir aos que mais ligados estão ao seu coração. É o prémio da sua firmeza e defesa à Minha causa divina. Os teus males são agravados, em proveito das almas, para cuidado e preocupação dele e para todos os que mais de perto te rodeiam. Coragem e confiança; Jesus está com todos. Vem, Minha bendita Mãe, vem juntar aos Meus os teus carinhos, vem dar à Nossa filhinha a força que necessita.

Veio a Mãezinha, logo me tomou em Seus braços; fiquei entre o Seu peito e o de Jesus e unida ao rosto divino dos dois; era uma prensa de fogo.

― Amo-te, Minha filha, porque és de Jesus e és Minha; amo-te, porque és Minha filha e esposa de Jesus; amo-te porque és a Sua vítima; amo-te, porque sofrendo com Ele, acodes aos pecadores; amo-te porque Jesus te ama, amo-te, porque és toda Dele e Minha.

Continuou:

― Leva, Minha filha, este amor terno da tua e Minha Bendita Mãe; leva todo o amor de Jesus e vai dá-lo aos que te são queridos; diz-lhes que são os mimos do Céu, formados por amor divino; são mimos dados por tanto cuidado e amor dispensado à maior vítima, à maior heroína da humanidade, à maior amada do Meu Coração divino.

― Jesus, Mãezinha, em nome de todos Vos agradeço, Vos abraço com doçura.

― Vai, Minha filha; espera-te a tua cruz; tem coragem. O teu cansaço no sofrimento é para que os pecadores sintam cansaço no pecado. Eu não cesso, não cessarei mais de te pedir a dor, porque o mundo maldoso não cessará de Me ofender. Vai, pomba bela, forma para a cruz o teu voo; é da cruz que voas ao Céu; é do Céu que a tua missão dará ao mundo toda a luz. Coragem, Minha filha coragem!

― Obrigada Jesus. Eu vou e quero ficar Convosco, não para gozar, mas sim para Vos amar e de Vós receber força. Sede comigo, Jesus, sede comigo Mãezinha.

11 de Abril de 1947 – (sexta-feira)

Sinto o meu corpo golpeado e desfeito pelo sofrimento e o coração cheio de punhais a cortarem-me dia e noite, não podendo ele deixar de sangrar, um só momento. Ó meu Deus, ó meu Jesus, como eu me sinto ferida! Seja tudo por Vosso amor; eu sou, ó Jesus, e quero ser sempre a Vossa vítima. Não posso esquecer as almas, os pobres pecadores. Que pena eu tenho deles! Tenho a certeza de que, se me esquecia destes pobres infelizes, desgostava o meu Jesus. Quero sofrer, quero sofrer para O amar, para O consolar e dar todas as almas. Não sei dizer o que quero: queria a todos no Céu, queria toda a humanidade, a arder de amor, dentro do coração divino de Jesus. Que sede insuportável de O ver amado! As minhas trevas, a cegueira do meu espírito, já vão além da cegueira. Ó meu Deus, não sei exprimir-me. Acima e abaixo de mim são trevas; atrás e à frente de mim, trevas são. Mas essa cegueira da minha frente, essa negra escuridão, pela qual tenho de passar, nunca teve luz, nunca foi nem será luz. É o que sente a minha alma. Que pavor! O que tenho de atravessar! Por vezes é tal o tormento, que a alma não transformar-se, desfalece. Mas a este desfalecimento, vem de encontro a dor de Jesus. Descem do alto direitos ao meu peito, a penetrarem no coração, raios de fogo, raios de amor. E então eu vivo, e com mais coragem e força abraço o crucifixo, abraço a dor e a cruz, e sem temor digo a Jesus; sou a Vossa vítima. No meio de agudíssimas dores, Jesus tem passado, à minha frente, vagarosamente, com um grande madeiro aos Seus Santíssimos Ombros. A visão da cruz, e ao vê-Lo assim desfigurado, comove-me, leva-me à compaixão, leva-me à sede de mais dar a Jesus, de mais e mais sofrer por Ele. Nas horas em que mais sofri, apareceu-me, duma vez, Jesus, em tamanho natural, cheio de luz, resplandecente de glória, e, noutra hora, a Mãezinha com o Menino Jesus ao colo, todo sorridente para mim, a estender-me os Seus bracinhos, como quem queria abraçar-me. Ao Seu lado uma cruz Formosíssima, luminosa, cheia de coroas de rosas. Que beleza! Aquela cruz, com Jesus e a Mãezinha, já era o Céu. Compreendi e senti na alma que era a cruz do Seu martírio, transformada na cruz celeste. Era minha; e o fim será no Céu. Foi o que eu senti. Esta visão fortaleceu a minha alma; por algum tempo era outra. Quando me sinto mais desfalecida, por vezes, sinto essa cruz gravada dentro de mim; logo retomo forças para resistir à dor. Jesus serve-se de tantos meios para ajudar a mais pobre e miserável das Suas filhinhas! Bendito, bendito Ele seja! Que pena eu tenho de não corresponder ao Seu amor infinito!

Na tarde de ontem, eu senti e vi Jesus numa grande amargura, com a Sua Sacrossanta Cabeça apoiada nas Suas Santíssimas mãos, em profundo silêncio. A seguir levantou os Seus divinos olhos, fitou a cidade representada dentro de mim; chorou, chorou sobre ela. Pouco depois, vi pela segunda vez a figueira reverdecida, e depois já seca sem uma folha ao menos. Essa figueira saía por entre um montinho de pedras. Vi ao mesmo lado que a vi pela primeira vez. Depois da ceia de Jesus com os Seus Apóstolos, vi pela primeira vez benzer o pão que viria a ser a nossa Eucaristia. Que encanto! O Seu Santíssimo Rosto era só luz, parecia que só fogo a rodeava, com os olhos encantadores fitos no Céu a um sorriso doce abençoava o pão, que pouco depois por todos distribuía. Quando Judas O recebeu, tornou-se ainda mais desesperado; já não parecia homem, mas sim um demónio. Jesus falava sempre com a mesma doçura e meigos sorrisos. Ainda foi ao Horto, receber o beijo do infeliz traidor, depois de ter suado sangue e sentir todo o Horto estremecer, sobretudo quando foi preso Jesus. Segui com Ele e com Ele fui espancada.

Hoje, ao seguir o Calvário, caminhava, pelo solo duro, a ser com Jesus açoitada e maltratada, com todo o corpo em chagas e sangue. Caminhava e não sei como. Sobre a terra e os maus-tratos dos homens e sobre mim o Céu com toda a sua justiça. Como essa justiça me esmagava! E eu tão desfalecida e sem luz não podia caminhar. Próxima à montanha ainda; ela caiu sobre mim; tive que romper as lajes. Senti o meu corpo como que um esqueleto tingido de sangue; e neste estado fiquei na cruz. O brado de Jesus não foi só por três vezes que se fez ouvir em todo o Calvário; foi um brado contínuo em toda a Sua agonia, era um brado do Coração que Ele fazia chegar ao Pai e que parecia ser por Ele rejeitado. Pelo Pai bradava e pelo mundo espalhava amor; tudo lhe saia do Seu divino Coração. E a Mãezinha, chorosa, ao pé da cruz, na mesma agonia! E sentia que Ela era com Jesus, que estava em mim, uma só coisa. Juntaram as Suas lágrimas, dores e agonia. A vista da Mãezinha aumentou em Jesus a agonia. Eu na mesma união sofri também. Passou pelo meu corpo como que um sopro gelado que me deixou sem vida; e senti como se o espírito me deixasse. Veio depois Jesus, restituiu-me a vida e disse-me:

― Vem, vem, Minha filha, dar de beber, saciar com a tua dor a sede ardente, a sede devoradora do teu Esposo, do teu Jesus. Quero o teu amor. Ama-Me, ama-Me por ti, ama-Me pelos que não Me amam. Eu tenho fome, Eu tenho sede das almas; não posso viver assim. Tenho sede de amor, e sou por elas ferido; quero-as em Meu Divino Coração, e sou pelos pecadores lanceado. Repara, repara bem como Eu estou. Jesus retirou do peito os Seus vestidos; tinha o lado aberto, o Coração todo em sangue.

Sem poder vê-Lo assim ferido disse:

― O que posso eu fazer Jesus? Amar-Vos, não sei, nada tenho para consolar-Vos. Dai-me o Vosso amor; com ele posso dizer que Vos amo por mim e por todos os que Vos não amam. Dai-me a Vossa força para com ela poder dizer-Vos; dai-me todo o sofrimento, para com ele salvar as almas e não deixar que os pecadores assim firam o Vosso Divino Coração. Quero sofrer, meu Jesus, para ver o Vosso peito cerrado e sem ferida o Vosso Divino Coração; que Ele seja só amor e compaixão para com todos os que Vos ferem, Jesus.

― Já estou curado, Minha heroína; a tua generosidade e amor à dor foram o bálsamo que Me curou. És tu, Minha louquinha, o bálsamo do Meu sofrer, e eu serei sempre o bálsamo, a força, o conforto no teu martírio. Coragem! O mendigo, que todas as sextas-feiras te bate à porta a pedir a esmola, não cessa de te pedir: dá-Me dor, Minha louquinha, dá-Me dor, salva-Me as almas; consola o Meu divino Coração e vai dizer ao mundo: converte-te, vem para Jesus; converte-te e ama-O; converte-te e converte-te depressa, se não queres ver bem depressa cair sobre ti toda a infinita justiça de Seu Eterno Pai.

― Meu Jesus, olhai a minha miséria e compadecei-Vos dela; eu não sei sofrer nem reparar e parece-me que são inúteis os meus sofrimentos.

― Revestidos de mim, têm todo o valor. Confia no que te diz Jesus. Vais ver sair do Purgatório, subir ao Céu trinta e três almas em honra dos anos que vivi na terra e salvas por ti. Vão ser levadas pela Minha Bendita Mãe.

Vi como que um campo de fogo, mas um fogo que atraía e que fazia a alma ansiar e mergulhar-se nele. Por entre essas chamas foram saindo e voando um bando de pombas brancas, brancas como a branca neve; esvoaçavam como andorinhas a poisarem nos seus ninhos; o ninho delas era o manto azul celeste da Mãezinha que ficou guarnecido com todas essas pombas brancas. A Mãezinha, coroada de rainha, foi subindo, subindo, até que desapareceu com todo o bando. Num grande contentamento disse:

― Obrigada, obrigada, meu Jesus; fazei que vão ocupar o lugar delas, para se purificarem todas as almas que partirem do mundo; para que nenhuma se perca sou sempre a Vossa vítima.

― Para que assim seja, filha querida, para que se salvem os pecadores, dás-Me então uma grande reparação, nos dias que vão seguir-se? Terás grandes ataques com o demónio; terás que combater fortemente. Não Me dás uma recusa, não?

― Não, meu Jesus; dai-me a Vossa graça, para não Vos ofender; sede a minha força, para eu poder abraçar todo o martírio. Sede comigo e aceitai o meu coração agradecido.

18 de Abril de 1947 – (sexta-feira)

Tenho ânsias, tenho ânsias de me purificar, cada vez mais, e nada consigo! Que hei-de eu fazer, meu Jesus? Causa-me horror ver a minha miséria, porque é só o que eu vejo. Avanço, avanço, e, momento a momento, mais me enrolo, mais me mergulho na cegueira, que me aterra, na cegueira que nunca foi luz nem nunca a luz conheceu. Assusto-me, vejo, sinto que esta cegueira é morte e que nunca poderá ver. Neste temor, feito o Coração divino de Jesus, invoco o Seu Santo Nome, e, por vezes sinto-me como se fosse transportada às nuvens; deixo a terra, mas não chego ao Céu. Nesta viagem às alturas, respiro, sinto-me confortada, fortalecida com uns ares mais puros, com aquela vida que não é o Céu, mas também não é a terra; não é gozo, mas é força, não é a verdadeira vida, mas também não é morte. Baixo novamente à mesma cegueira, só à vista da minha miséria, mas então com mais coragem para abraçar a minha cruz, a pisar os espinhos que tão agudamente me ferem, ansiosa e como que enlouquecida para consolar Jesus, dar-lhe as almas, purificar-me de todos os meus defeitos, ser pura para só viver a vida de Jesus, ser pura e Nele me esconder para sempre, sofrer escondida Nele, amá-Lo sempre Nele escondida, fugir ao mundo, desaparecer dele, desaparecer por completo. Não consigo os meus desejos, não sou pura, nada sofro, nada faço de bom, tudo se apaga sem aparecer. Ai, meu Jesus, vinde em meu auxílio; estou sozinha sem ninguém, meu Jesus, sem ninguém. Foge-me o Céu, estou como se me fugissem todos os amigos da terra.

E o demónio a atormentar-me tão fortemente.

Tenho estado sobre o inferno, não sei o que me livrou de cair nele, nada vi que me segurasse, só me faltou mergulhar-me nos seus horrores, nas suas penas. Esta visão foi essa luta com o maldito. Tive mais três ataques. Nos dois primeiros, senti passar sobre mim as labaredas do inferno, ouvia uivos, ranger de dentes e um demónio muito feio de boca aberta com um grande pedaço da língua de fora, língua em brasa, e estendia ao longe grandes chamas; causava pavor. Já lá vão alguns dias e por vezes sinto no coração como se de novo voltasse a ver toda aquela cena. Convidava-me ao mal e fiquei com grande temor de ter pecado. Nem posso lembrar-me das suas malícias. Que horror! Como se ofende Nosso Senhor! Posso tão pouco invocar o nome de Jesus e da Mãezinha! Penso que é o maldito que não me deixa. Não posso sem me oferecer como vítima e é só para reparar que tais sofrimentos aceito. No último ataque, ele principiou, de longe, a preparar-me para o mal com coisas pequenas, mas cheias de maldades. Foi indo, foi indo, incendiou-se o fogo, envolveu-se a terra com o inferno; eu era o mundo, era o inferno. Ó meu Deus, que pavor! Voltei a repetir a Jesus: se hei-de ofender-Vos, prefiro o inferno; não quero pecar, não quero pecar, sou a Vossa vítima. Jesus, Mãezinha, ai, quanto me custa isto!

Ao cair da tarde de ontem, senti como se no meu coração estivesse gravado Jesus e a Mãezinha, numa tristeza e amargura tão profunda, que causava dó. Jesus beijou e aquele beijo foi de despedida; e deixou no Coração da Mãezinha raios de fogo; foram fios, foram prisões de amor que os deixaram para sempre unidos. Jesus foi para o Horto e ficou com a Mãezinha. A Mãezinha ficou e foi com Jesus. Eu no Horto senti como se em meu corpo nem uma só veia ficasse por abrir. Os Apóstolos dormiam; Judas aproximava-se. À voz de Jesus vieram sobressaltados. Judas deu o seu beijo traidor e todos caíram por terra; a terra foi o meu coração. Feriram-me as armas e os paus. Vi Jesus que em Suas Santíssimas mãos tomou. Ao ver isto, fugiu S. Pedro por entre a multidão; foi à frente de Jesus; não viu os maus-tratos que Lhe deram. Mas via a Mãezinha; velava ao longe. Eu sentia que o Seu Santíssimo Coração adivinhava tudo. Quanto Ela sofria e quanto sofria eu também com os sofrimentos de Jesus e os dela! Na manhã de hoje, caminhei oprimida pela violência da dor; ia como que encerrada num mundo do sofrimentos. Caminhei sem luz, mas cheguei ao Calvário e lá com mais sensibilidade fui cravada na cruz; e então em todo o meu corpo estava Jesus; eu era apenas uma casca frágil que O encobria. Sentia todas as Suas chagas e feridas, os espinhos da Sua Sacrossanta Cabeça, o palpitar do Coração, lágrimas e gotas de sangue, tudo em mim era Jesus. Quando estava a ser cravada na cruz, ainda senti o meu rosto a ser nojosamente escarrado. A frágil casca do meu corpo não impedia os sofrimentos e maus-tratos de Jesus. Fiquei no mesmo brado e agonia com Ele. Quando Jesus expirou, eu senti que o espírito divino voou de verdade ao Pai, e eu fiquei morta. Pouco depois Ele voltou e disse-me:

― Minha filha, o Jardineiro da tua alma está em teu coração; cuido, cultivo as flores que adornam a minha alma. Como são belas! A água que as rega é a água da pureza, água de graça e amor. Confia; o teu Jardineiro é Jesus; habito em teu coração; repara como eu cuido delas. Tu és a pastorinha de Jesus, a pastorinha das almas; apascenta-las no jardim formoso da tua alma. Vi então Jesus feito Jardineiro, no seio de belas flores, de regador na mão a regá-las cuidadosamente; via cair a água com abundância.

― Cuidai, cuidai, meu Jesus, cuidai delas e cuidai de mim; eu sou miséria e nada posso sem vós. Permiti que com a Vossa graça, no jardim do Vosso divino amor, eu posso mergulhar em almas; sustentai-as com o que é Vosso.

― Coragem, coragem, Minha filha; sem dor não há vítima, sem dor não há amor, sem dor não há vida. Tu és a vida de Jesus, és a vida das almas. Se todas as vítimas sofrem, como não hás-de sofrer tu, Minha filha, que és a maior vítima da humanidade. Dá-Me dor, acode ao mundo, vem sobre ele a justiça de Meu Pai e vem depressa. Não há justos na terra, não há almas que Me amem, a ponto de repararem todas e tão graves ofensas. Pobre mundo, vai ser carbonizado; ficará mirrado com o fogo da justiça divina.

Levantei as mãos, cheia de terror, e disse:

― Perdoai, meu Jesus, perdoai, perdoai já, perdoai sempre! Como hei-de acudir ao mundo? Bem me parecem a mim que de nada valem os meus sofrimentos.

― Coragem, Minha filha, coragem, amada Minha; sofre com alegria. A tua imolação continua se o mundo não quiser que seja de remédio para os seus corpos é-o sempre para as suas almas. Pede-lhe, pede-lhe que se converta, que venha a Mim. Dás-me mais lutas, mais ataques com o demónio?

― Dou, meu Jesus, mas sabeis bem que é o que mais me custa. Que medo de Vos ofender!

― É por te custar que, Minha filha, que mais reparação Me dás. Não temas, confia em Mim; não deixo que Me ofendas. Os dois primeiros combates que te pedi foram pelos esposos pais de família. Com que gravidade Me ofendem; o último foi por toda a humanidade. Foi por isso que te envolveste com o inferno. O mundo! o pecado! Vítima a lutar com o inferno. Eras tu, Minha pomba amada, a livrares de lá as almas. Coragem! Vem receber vida para combateres. Recebe uma gota do Meu Divino Sangue; é a tua vida, é a força do teu sofrer.

Jesus com o Seu Divino Coração a arder em labaredas uniu-O ao meu, deixou cair a gota do Seu Sangue divino. O fogo ateou-se; o meu principiou a dilatar-se. Jesus passou logo as Suas Santíssimas mãos sobre o meu peito, acariciou-me e disse:

― Toma, Minha filha, a tua cruz; vai convidar as almas a virem a Mim, vai levar-lhes esta vida. E como prova do valor dos teus sofrimentos e de que és a salvação delas, a cada acto de amor, a cada vez que Me disseres: Jesus, eu amo-Vos, serei amado por mais uma alma. E sempre que abraçada ao crucifixo disseres: Jesus, sou a Vossa vítima mais um pecador será salvo, esquecerei as suas ofensas. Prometo-te, confia, sou O teu Jesus. Diz-Me isto muitas vezes. Vai com coragem! No Céu continuas a mesma missão; ele está perto. Vai com alegria; vai, filha do amor, vai, louquinha do amor, vai chamar a Mim as almas.

― Obrigada, meu Jesus; obrigada, meu Amor, eu vou; vinde Vós comigo. Ao o Céu, meu Jesus, que nunca chega. Faça-se a Vossa vontade divina. Sou a Vossa vítima, vítima até dos meus desejos. Farei, Jesus, que eu morra para mim e para todos, viva só para Voa e para as almas.

25 de Abril de 1947 – (sexta-feira)

O meu sofrimento aumenta, a minha cruz pesa-me mais de momento para momento. Sinto-me como se estivessem a terminar os meus dias aqui na terra. O meu pobre corpo é uma massa em sangue, desfeito pela dor. Vivo como se não vivesse. O que será de mim, meu Jesus! Amo a cruz e não tenho forças para a abraçar. Sinto-me arrefecer, estou gelada. Quanto mais sofro, menos sinto amar a Jesus. Quanto mais Lhe ofereço os meus sofrimentos, nas minhas negras e dolorosas trevas, menos sinto que Lhe dou. Não tenho para Ele um sorriso, um acto de amor ou reparação. Sou pobre, mísera pobre; o que Lhe dou, nada me pertence. Sinto-me, por vezes, na divina presença de Jesus, de mãos vazias, olhos baixos, cabeça inclinada, envergonhada de mim mesma. Que contas Vos hei-de dar, meu Deus, a Vós, de quem tudo recebi a quem nada dei e nada tenho para dar. Triste confusão a minha! Poderei viver sem sofrer e sem amar O meu Jesus? Oh! não, não posso sem isso a vida seria para mim já um inferno. Ó Jesus aceitai para Vós o meu sofrimento e mesmo sem sentir amor fazei que Vos ame, deixai-me enlouquecer por Vós. Os espinhos nascem para mim, noite e dia, como noite e dia nascem e crescem as flores dos campos e jardins. Por todos os lados os sinto e vejo a ferirem-me. Eu quero-os e amo-os, mas desfaleço em recebê-los; recebe-os como mimos do Céu, como carícias de Jesus. Pressinto que novos e agudos espinhos alguém prepara para me cravar; parece-me ouvir o rumor de nova tempestade. Levantam-se contra mim novas ondas furiosas. De novo me estendo na cruz; deixo-me crucificar à semelhança do meu Senhor.

Na noite de 14 para 15, veio de encontro ao meu martírio, suavizar a minha dor, uma linda visão da SS. Trindade; era um trono riquíssimo: no cimo o divino Espírito Santo em forma de pomba deixava cair sobre O Pai e sobre O Filho que mais abaixo, ao lado um do outro, estavam sentados, uma chuva de raios doirados. Pouco depois, diante do Eterno Pai, uma alma ficou ajoelhada em sinal de reverência; uniu-se a uma mão dela uma mão de Jesus que o Padre Eterno ligou. Tudo estava iluminado, parecia o Céu, era luz celeste. Desapareceram as três divinas pessoas e a alma ficou por algum tempo na mesma posição, mergulhada no mesmo amor. Confortou-me também a visão, duma vez de S. José, e, doutra, de Nossa Senhora; um e outro com o Menino Jesus ao colo. São eles que me levantam, são eles a força e a coragem do meu tanto sofrer. Não sou eu que sofro, mas sim Jesus, só Jesus que sofre por mim.

O demónio atormenta-me com dúvidas que sem a força do Céu seriam um desespero. Aparece-me em formas feiíssimas e, por vezes, abre-se todo o inferno com todos os seus sofrimentos para me receber. Numerosas feras infernais correm para mim com todo o seu furor. Ó meu Deus, parece-me que todo o mundo é inferno, que todo o mundo é pecado, que todo o mundo tem a malícia e a maldade do demónio. O maldito instrui as almas em grandes crimes.

Na tardinha de ontem, avivou os sofrimentos do meu corpo, que eram enormes, a visão, a visão do Calvário. Dentro de mim, vi Jesus, depois de morto, ser descido da cruz e ser posto nos braços da Mãezinha; vi os Seus olhos agoniosos, senti o Seu coração trespassado; senti e vi o caminho com que Ele O estreitava e limpava o sangue e o pó das Suas feridas. Todo o Calvário se mexia, as pedras estalavam e faziam grandes fendas. Esta agonia e sofrimentos tão dolorosos preparam-me o Horto; e lá fui para ele; lá se me rasgaram as veias, suei sangue e vi o cálice. Jesus foi que o levantou e ofereceu ao Pai, cheio de amargura. O solo estremeceu e com todos os ramos das oliveiras. Debaixo de cruéis maus-tratos, deixei-o para ir para a prisão. E hoje, num canal de sofrimento, como se fosse uma prensa fui subindo as ladeiras do Calvário. Senti as cordas na cintura e no pescoço; cortavam-me, feriam-me. Vi Jesus a ser despido e, neste momento, o Seu rosto divino ficou como que incendiado; levantou ao Céu os Seus olhares e baixou-os, depois, em profunda tristeza e grande vergonha. Vi, junto à cruz, a escada, pela qual Jesus havia de ser descido; vi o lençol onde Ele havia de ser embrulhado. Jesus, antes de expirar, viu a cena comovedora, ao ser depositado nos braços da Mãezinha; viu os Seus carinhos e lágrimas, viu as espadas que A feriam, viu-A em igual dor e agonia. Quando expirou, o Seu espírito voou como pomba de todas as Suas chagas saíram raios de luz como sol por frestas. Quando o Seu espírito divino voou foi-Lhe aberto o coração. Senti a Sua grande prova de amor e que Ele nada mais podia fazer por nós. Pouco depois, de novo vivi com Ele.

― Minha filha, Minha filha, um coração puro, um coração abrasado, com a mistura da dor alcança do Meu divino Coração tudo quanto Lhe pedir em benefício das almas, isto não falando em outras graças. Assim és tu, vítima poderosa, sem seres igualada. Não és igualada na dor e também o não és no poder. Eu tenho em Minhas divinas mãos o teu martírio com todo o teu amor; sou Eu mesmo a colocá-lo como escora firme a sustentar o braço do Meu Eterno Pai, para não cair sobre o mundo culpado a castigá-lo. Podia dizer-te, esposa querida, que ele cai e cai sem remédio, por não virem a mim, seguindo a Minha divina voz. Não quero fazer-te tal afirmação, para não entristecer-te.

― Meu Jesus, meu doce Amor falardes-me assim é dardes-me a certeza do que nos espera; bem sinto eu que nada Vos dou e de nada valem os meus sofrimentos.

― Coragem, coragem, Minha filha, parece que nada Me dás, porque já tudo tenho em Meu poder. Sentes que nada valem os teus sofrimentos, porque, sofrendo Eu, em ti tomo-os como meus; e, para maior sofrimento teu, nada em ti deixo aparecer. Confia em Mim. Todo o teu martírio, em união comigo, forma os selos com os quais selo as almas e as deixo com o sinal da salvação. Confia, vítima amada, se não acudires aos corpos, as almas são sempre de salvação. O que vale a tua dor e o teu amor com o Meu! Coragem, vítima generosa, vítima de dor e amor. Vê, Minha querida, o Mendigo divino a estender para ti o braço, a pedir-te a esmola. A taça, em que a vais deitar, foi feita do ouro do teu martírio. Os espinhos, que a rodeiam, foram feitos das pedras preciosas das tuas virtudes; é a taça das almas, é a taça da salvação. Dá-Me a esmola, dá-Me a esmola. Só uma alma e um coração puro podem combater com Satanás e reparar-Me das maldades e crimes a que ele leva as almas. Como prova do teu amor, da tua generosidade, vou dar-te, em breves dias duas felizes novas que vão ser de alegria para o teu coração e para mais alguns dos que te rodeiam. Se o mundo bem compreendesse as Minhas maravilhas em ti e o valor do teu sofrimento, ter-te-iam suavizado o teu calvário e o daqueles que escolhi para te ajudarem a subi-lo.

― Meu Jesus, meu Jesus, peço-Vos força e amor. Sobre essa taça me coloco, sacrificai-me Jesus, imolai-me como Vos aprouver. Jesus retirou a taça doirada, cercada e adornada de belos espinhos.

― Vou dar-te ainda, Minha filha, a gota do Meu sangue divino; recebe que é vida, a vida do Céu, a vida de que vives. Recebe ara sofreres, recebe que é para viveres e para dares a vida às almas. É o Meu sangue com a tua dor e amor que lhes dás a vida e mais ainda faz com que Eu por muitos seja amado, o que não seria sem ti, Minha esposa querida.

Jesus uniu logo os nossos corações, e, logo que caiu a gota do Seu precioso sangue, desuniu-os e deixou por algum vir do Seu lado aberto para o meu peito fortes chamas de fogo. Com as Suas divinas mãos cerrou a abertura do Seu peito e disse:

― Trabalho em ti como quero, faço do Meu divino coração e do teu o que Me apraz. Vai levar a vida às almas, esta vida que é a verdadeira vida. Vai levar a todos o Meu divino amor, mas mais, muito mais aos que mais te amam, aos que mais de perto te rodeiam. Amar a Minha vítima é amar a Mim; cuidar dela é cuidar de Mim. Coragem! Vai em paz, vai em paz.

― Obrigada, meu Jesus; um eterno obrigado, meu amor! São tantos e tão grandes os meus sofrimentos que mesmo no meio das minhas negras trevas obriga-me a dizer: para ditar tudo o que fica dito, vi aqui só a mão e a força de Jesus com a luz do divino Espírito Santo; sem isto nada teria dito. Ó meu Jesus, ó meu Deus, quanto sofre a mais indigna das Vossas filhas; e só vê nela miséria e nada mais! Dai-me graça, dai-me perdão para as minhas culpas e para as do mundo inteiro.

2 de Maio de 1947 – (sexta-feira)

Eternidade que tão à pressa passas; eternidade que nunca chegas. Passa, voa e eu voo com ela sem nada, de mãos vazias para dar contas a Jesus. Nunca passa, nunca chega a verdadeira eternidade que me vai dar o Céu. Quem poderá viver assim, meu Jesus! Dai-me a Vossa graça sem a qual a vida neste exílio é de desespero; é morte. Quero voar para Jesus, quero amá-Lo e não ser capaz de formar para Ele o voo e de O amar com a ansiedade, que exige o Seu coração. Quero fugir do mundo, esconder-me dele e dele desaparecer, e nunca mais consigo. Um momento é uma eternidade; é um momento que nunca passa, que nunca tem fim. Só o momento de ver Jesus a pedir-me contas, a ver-me e a encontrar-me sem nada, só revestida da maior miséria é rápido, não se lhe dá tempo de Lhe dizer: quem sois Vós, Senhor, e quem sou eu; parai um pouco, e deixai-me cobrir ao menos com agasalho alheio; estou nua, Jesus. Meu Deus, que confusão a minha: não tenho tempo para nada! O que fiz eu da minha vida? Como aproveitei o tempo que me destes? Que horror, ó meu Jesus! Mas Vós sois toda a minha loucura; só por Vós quero sofrer, só por Vós quero amar, só de Vós quero falar e pensar; não quero outra vida, que não seja a Vossa. Sinto-me como se fosse um poço no qual nem um só momento cessam de tirar a água. Que movimento! Esta água, que é tirada, vai para cima, nela bebe quem quer; este poço é inesgotável, não seca mais, tem sempre a mesma água. Está em mim e não é meu; está em meu poder e não me pertence. Contudo estou ansiosíssima por repartir, por dar a beber a todos. Sinto que é água de salvação. Oh! como eu a queria dar! Dar do que me não pertence e não tenho escrúpulo; roubo sem medo de ser pelo dono castigada. Ó meu Deus, ó meu Jesus, queria dar tudo, tudo, toda esta água, queria nela mergulhar todo o mundo. Morre, Jesus; morre com ânsias!

Tive dois combates com o demónio; reduziu-me ao mal, ensinou-me todas as maldades, preparou-me leitos de prazeres. Depois do pecado logo se transformaram em leitos do inferno. Que horror, que desespero! Tantos sofrimentos, ódios e maldições! O prazer fugiu e levou-me com ele a graça de Deus, fiquei mais miserável que os próprios demónios. Abracei-me ao crucifixo e envergonhada só disse: meu Jesus, sou a Vossa vítima.

Na quarta e quinta-feira, quase em todo o dia, vi e senti a cabeça Sacrossanta de Jesus cravada de agudos espinhos, tinha-a apoiado sobre a mão, o que sempre impediu de eu Lhe ver os Seus divinos olhos. Só com a diferença: ontem de tarde, já pela noite dentro, aquela posição de Jesus levou-me ao Horto e ao Calvário, levou-me a ver todo o martírio. Vi Jesus no Horto a tremer e a suar sangue; vi os Seus cabelos colados ao rosto; vi Judas beijá-Lo. Até nos cabelos se distinguiam; uns de inocente, outros de maldição. Vi-O no Calvário, já na cruz e o sangue avançar por cima da cintura. Ali fiquei com Ele; e hoje ao mesmo lugar O fui encontrar. Vi-O crucificar, vi a cruz; não tinha lugar para mais espinhos; todo o Seu divino corpo ferido ali neles era desfeito. Custou-me tanto ver assim Jesus! Depois senti-O a Ele em agonia; e, ao pé da cruz, o Coração da Mãezinha a estalar de dor com mais três corações amigos, associados à dor da Mãezinha, que, cheia de agonia, levantava as mãos para Jesus, chorava e quase de dor expirava. Principiei a ver e a sentir a cabeça de Jesus a pender, a inclinar-se sobre o Seu peito e os Seus Santíssimos braços a despregarem-se da cruz. Jesus estava morto. E eu com aquela visão e sentimento pareceu-me morrer também. Já não ouvia o Seu brado e deixei de sentir a dor da Mãezinha. Senti inclinar-se a minha cabeça, desprenderem-se os meus braços, depois do corpo ter gelado. Não sei a quem foi entregue.

Passou-se algum tempo; veio Jesus, cheio de vida; deu-me a vida, e disse-me:

― Minha filha, minha filha, a vítima não pode sair, no momento, da sua imolação e sacrifício! És a Minha maior vítima, a Minha vítima mais amada; não podes ser libertada do teu martírio, porque o mundo não deixa de pecar. Eu não deixei aquela posição, em que Me viste, os espinhos não desapareceram da Minha Sacrossanta Cabeça, não levantei dos Meus divinos olhos as mãos, a Minha visão era outra; via os crimes de toda a humanidade, via a renovação contínua da Minha santa paixão, foi por isso que te fiz ver todo o Horto e Calvário. Tem coragem, porque Eu não sofri a não ser em ti. Tu sim, Minha querida redentora, Minha nova redentora, tu sim, sofreste; tu continuaste e continuas a Minha obra de salvação. Eu revestido de ti, contigo sofri, mas, sozinho, não. Não posso mais, estou cansado de sustentar o braço do Meu Pai! O mundo com os seus crimes está a acender o fogo, que o vai queimar. Não é fogo do Céu, mas sim da terra; por ele preparado, a reduzir a cinzas. Mas pode tomá-lo, deve tomá-lo como punição de Deus, como castigo divino. Esta guerra, esta revolta, Minha filha, não é do Céu mas sim da terra; é a guerra do pecado, é revolta contra Deus.

Senti como se se abrisse o Céu e travasse luta com a terra. Que guerra, que pavor!

― Meu Jesus, que quereis que eu faça; o que posso eu fazer? Não quero a Vossa dor, mas quero a salvação das almas. O que quereis, meu Jesus? O que quereis, meu Amor? Dizei-me o que quereis que eu faça.

― Eu queria, Minha filha, mas não para ficar oculto: depressa, depressa a revelá-lo ao Santo Padre. Eu sei que da primeira parte, que te vou dizer, nada consigo; é só para mostrar os Meus divinos desejos e o Meu amor às almas. Não são tantos os crimes e tanta a malícia do pecado, que só havendo 10 vítimas em cada nação, o mundo pode ser salvo. Mas vítimas puras; cheias de generosidade e amor. Mas não, não as encontro; não há quem aceite os Meus espinhos, não há quem queira as Minhas chagas, a Minha cruz, o Meu Calvário; não há quem se entregue a Mim pelas almas. Há muitas que querem sofrer e serem imoladas, enquanto que não chegam os sofrimentos e a hora da imolação. Mas ah! O que Eu espero é a segunda parte. Pede ao Santo Padre que lho pede Jesus; que apele para os sacerdotes, sobretudo das ordens religiosas, que, apesar de neles haver muita coisa, há muitos, que Me dão; que redobram de pureza, de fervor e de amor ao Santo Sacrifício da Missa.

Com essa pureza, fervor e amor, unido à Minha vítima, a quem fiz a entrega da humanidade, a quem dei a mais sublime missão, ela pode ser salva, salvar as suas almas. E não é essa, esposa querida, a tua ansiedade, o fim de todo o teu sofrimento?

― Sim, meu Jesus, eu quero salvar as almas, e por isso não me poupeis o meu corpo; eu não Vos recuso nenhum sofrimento, mas se pudesse ser tudo! Se eu pudesse consolar-Vos e amar-Vos, evitar todo o pecado, salvar todas as almas e poupar-lhes, aos corpos, os castigos! Perdoai-nos, perdoai-nos, meu Jesus; sou a Vossa vítima, tende de nós todos compaixão. Que dor no meu coração, que desolação a minha! Seja tudo por Vós, meu Jesus.

― Coragem, Minha filha! Essa dor é para nela ficares; não tenho vítimas generosas. Supre tu toda a generosidade. Confia, confia; a tua dor de alma e corpo é bálsamo de salvação. Para resistires à dor, para viveres e sempre em tuas veias correr o Sangue de Cristo, vou dar-te a gota do Meu Sangue divino. É o Coração do Esposo unido ao da esposa, e do Redentor à Sua redentora.

Jesus uniu os nossos Corações, pelo cimo do Dele deixou cair no meu a gotinha do Seu divino Sangue, e espalhou, ao mesmo tempo, sobre o meu peito uma labareda de fogo que dele saía.

― Vai, esposa amada; vai, leva esta vida e este amor. És o cofre das almas, a depositária de todas as maravilhas do Senhor. Vai em paz; quero em teus lábios sempre o sorriso, em todo o teu sofrer a tranquilidade e a alegria. Coragem! Jesus não te falta.

― Obrigada, obrigada, meu Jesus. Conto Convosco, confio em Vós. Fiquei logo mergulhada em dor; sinto-me num mar de amargura, sinto-me num nunca acabar de trevas. Eu te quero, minha amada cruz.

3 de Maio de 1947 – (1º sábado)

Não saí do mergulho da minha dor nem de mim se apartaram as ânsias de dar tudo e obrigar toda a humanidade a viver num poço, que tenho em mim. Nesta ansiedade, mergulhada só em dor, ferida de alma e coração, preparava-me para receber Jesus, e aproximava-se a hora da Sua chegada.

Minutos antes, recebi a notícia de que um homem, que há três dias me tinha sido recomendado, tinha morrido sem os Sacramentos. Foi um espinho que me feriu profundamente, mas, não sei porquê, não me inquietou a perda da sua alma; fiquei em paz. Veio Jesus. Momentos depois de entrar no meu coração disse-me:

― Minha filha, Minha filha, a alma desfalecida e ferida pelos espinhos sente-se bem, tem conforto, anima-se com o seu esposo. Vem a Mim descansar; sou o teu Esposo Jesus. Nosso Senhor inclinou-me sobre Ele; fiquei com a minha cabeça unida ao Seu divino Coração e como que a descansar em Seus braços. Recebe, Minha filha, a Minha vida para a tua vida, o Meu conforto para a tua luta, para a tua dor. Sofre contente; como são valiosos os teus sofrimentos unidos aos Meus; quanto podes com O teu Jesus! Não sofras, Minha filha, com o golpe que acabaste de receber; a sua alma foi salva. Fiz isto para exemplo dos outros. Momentos antes de lhe pedir contas, apresentei-Me em sua presença, ao ver-Me, muito confundida, exclamou: não Vos aproximeis de mim, meu Senhor, com tanta pressa; não estou digno de aparecer diante de Vós. Perdoai-me, perdoai-me, Senhor, as minhas culpas. Nada mais foi preciso; salvou-se. Foste vítima dele, nestes dias. Não te sentias tu incapaz de aparecer diante de Mim e para isso parecia-te voar o tempo? Foste vítima. Salvou-se, mas sem merecimento, sem virtudes. Será uma alma a gozar-Me no Céu à custa da tua dor. Mas terá muito, muito, que sofrer no Purgatório. Aqui tens uma das boas novas que te anunciei.

― Meu Jesus, mas eu ainda não sabia nada.

― Sabia Eu, filha querida, tudo o que se ia dar e por tu o não saberes é que tem todo o valor para os homens. A segunda nova, Minha filha, é para dizeres ao teu Paizinho que a alma do Paizinho dele subiu ao Céu, logo após 7 dias da sua morte. Foram 7 dias em honra das 7 dores da Minha Bendita Mãe. Subiu ao Céu, depressa, pelas suas muitas virtudes e merecimentos, e pelos muitos sofrimentos do filho, pela sua vida de grande martírio e pelo amor com que por Mim ele é amado. Está a gozar-Me na Pátria Celeste em grande glória e alegria. Principia já, Minha filha, a um conselho dele porque Eu nunca o retirei de teu guia, a fazer a lista das almas que desejas, logo a seguir à sua morte, subam ao Céu. E assim se vão cumprindo as Minhas Divinas Palavras.

― Queria, meu Jesus, perguntar-Vos por uma alma, mas não pergunto, perdoai-me.

― Fá-lo já, Minha filha, e sem demora. Não tens confiança em Mim?

― Bem sabeis que tenho, meu Jesus; mas não quero abusar da Vossa bondade; mas já que me permitis dizei-me: onde está a alma da minha querida Deolinda?

― No Purgatório, mas em vésperas de ir gozar na Minha glória. Logo que sejam celebradas 3 missas pela sua alma, sobe ao Céu. Isto é, juntando às missas todas as orações que até esse momento por ela foram feitas. Era boa sofreu muito e está sofrendo o seu descuido. Diz, Minha filha, ao teu médico que eu o coloquei à tua frente, para cuidar de ti e da Minha divina causa e para ser mensageiro das Minhas palavras, em dias de tanta luta. Diz-lhe que não demore, em acordo com quem sabe, a mandar ao seu destino o que com tanto empenho eu pedi. Dá-lhe a Minha bênção e todo o Meu amor para todos os que lhe são queridos. Vem, minha Mãe Santíssima, com os teus carinhos fortalecer, dar a vida à filhinha.

Veio a Mãezinha, tomou-me em Seus braços, abraçou-me docemente, cobriu-me de carícias e disse-me:

― Minha filha, Minha filha, sou tua Mãe e Mãe do teu Jesus; és por mim e por Ele amada com todo o amor. Sofro com alegria, continua a salvar as almas. Toma o meu manto, envolve nele a humanidade, salva-a, é filha de Jesus e é minha. Leva o meu amor, leva o amor de Jesus, dá-o aos cuidam de ti, dá-o aos que te são mais queridos. É o amor de Jesus e de Maria num só amor.

Jesus acrescentou:

― Dá-lhes este nosso amor aos que te são mais queridos; dá-o a todos, dá-o na proporção em que to pedirem. Quando te for pedido com instância e com toda a abundância diz-lhe do coração: dou-to todo, como me pedes. Vai, louquinha, vai, que és a vida das almas sem sentires que lha dás; és toda amor sem saberes que amas, és toda vida sentido que és morte. Coragem, coragem!

― Obrigada, meu Jesus, obrigada Mãezinha. Sede comigo nesta luta tão tormentosa da minha vida. Que horror eu tenho em ter que ditar tudo quanto me disseste. Em teu beijo e abraço, minha cruz, só por amor Àquele que me enviou.

9 de Maio de 1947 – (sexta-feira)

Não quero o mundo; quero desaparecer dele, morrer para ele; não quero o mundo, nem nada que lhe pertença. Quero as almas, quero as almas todas que nele habitam, porque essas sim, essas só a Jesus pertencem. Deixo-me crucificar e morrer por elas. Não posso pensar na perda das almas; não posso pensar que Jesus é ofendido. Eu não quero o amor das criaturas; quero o amor do meu Jesus Eu não quero ofendê-Lo nem sabê-Lo ofendido. Que sede de me dar a Ele, de Lhe pertencer, de morrer por Ele! Que sede de ver o mundo, ou melhor, as almas nas mesmas ânsias, nas mesmas pretensões. Queria tudo numa só alma, num só coração, num só amor. O meu coração está cansado de tanta ansiedade, de tanta sede de amor. Eu não sei quem continuamente bebe em mim e bebe sofregamente; a minha alma sente, os meus ouvidos ouvem o saborear, o beber ofegante desta bebida. Continuo a ser o poço inesgotável, apesar de, noite e dia, sem parar, dar água com toda a abundância a quem quer beber. Depois disto não sou nada, não dou nada, em mim nada há. Eu não vivo mas há em mim outra vida que vive e ama, que vive e possui tudo. Queria viver esta vida, amá-la, perder-me nela, enlouquecer por ela. Ó meu Deus, ó meu Deus, eu quero que as minha loucuras sejam só para Jesus e para as almas. Sinto que esta vida é ferida, ultrajada, calcada aos pés de ingratos. Eu não posso consentir em tal, quero remediar este mal e não posso. Sinto o meu corpo ralado, moído, desfeito pela dor. Por vezes digo: meu Deus, como se vive, como se pode resistir a tanto. Meu Jesus, sou a Vossa vítima, aceitai o incenso do meu sofrimento, que ele suba ao Céu constantemente, dia e noite, sem parar, para ser a reparação da bondade de Deus ultrajado. Fito os olhos em Jesus crucificado, compadeço-me dos Seus sofrimentos, quero evitá-los e não posso; sofro amarguradamente com Jesus. Fito novamente a imagem do Seu divino Coração e peço-Lhe: deixai-me entrar, Jesus, no Vosso divino Coração, para me esconder e incendiar. E fazei que eu vá como um sopro, como uma aragem suave, levar a todos os corações a Vossa graça, o fogo do Vosso amor. Digo e não sou eu, falo e não sei falar. Ó meu Deus, e assim me vou mergulhando nesta abismo medonho de cegueira, abismo, cegueira, que não mais terá fim. Sinto-me nela como peixe na água; quanto mais me mergulho em cegueira, mais obrigada me sinto a, profundamente, me mergulhar. E sempre sobre esta cegueira um mar tempestuoso, com fúrias desastrosas. E o coração a sangrar, sempre a sangrar; com que crueldade eu o sinto ser apunhalado! Que finos e dolorosos são os fios que o cortam! Ó minha cruz, eu te amo! Ó Mãezinha, eu sou Vossa; dai-me força e amai por mim a Jesus, amai-O em nome de todas as almas.

Ontem, não sei dizer como foi dolorosa a minha viagem para o Horto. A noite era escuríssima, e eu fui tão ligada aos sofrimentos; não digo a este nem àqueles; foi a todos; era um mundo deles, sentir mesmo que arrastava o mundo, que ele me esmagava. Era tal a minha união à dor, eram tão inquebráveis as prisões que a ele me prendiam, que nem um só momento dela me podia libertar, nem um só membro, nem um mínimo bocadinho de carne podia ser da dor, dos espinhos libertada. Que dureza tinha para mim a humanidade! Senti e vi Jesus a tremer, a chorar e a suar sangue, e até pelos ouvidos o derramava. Senti-O a estender os braços, e a oferecer ao Pai o cálice, amargurado. E dali fui com Ele, de mãos atadas, para a prisão; e, de novo, levei comigo o mesmo mundo e arrastava-me, a esmagar-me. Esta manhã, não podia respirar; não podia viver estava tomada de pavor; sentia os olhos colados pelo sangue, que brotava do grande capacete de penetrantes espinhos, que me cingiam à cabeça. Assim segui às escuras e estreitas ruas do Calvário, e sempre a cair sobre mim uma chuva de maus-tratos e de ferros cortantes, que me dilaceravam as arnês. Vi tantos pedacinhos com grandes rastos de sangue perdidos por entre as lajes. Oh! como foi dolorosa a viagem! Quanto me custou chegar ao Calvário! E quanto me custou ver feras, medonhas feras, em tão grande número, a beberem o sangue, que de Jesus corria; eram com certeza feras só na aparência, porque Jesus murmurou e deixou gravado na minha alma: melhor era para Mim, não sofria tanto, se o Seu divino sangue fosse, na realidade, bebido pelas feras; são piores do que elas. Senti que em muitos corações aumentava o ódio, o aborrecimento contra Jesus, um desejo de O ver desaparecer dos seus olhares venenosos, fosse como fosse, custasse o que custasse. Jesus, que via e penetrava no íntimo de todos mais sofria, e mais aumentava a Sua agonia; e num brado fortíssimo chamou pelo Pai. Ao ver-se por Ele abandonado, aumentou a amargura e o Seu desfalecimento. Como homem, já não podia viver, era mortal, eu sentia-O em mim, a dar os Seus últimos arrancos. Mas como era suave e doce a agonia do Seu espírito, os últimos momentos de Jesus na terra. Expirei com Ele. Ah! Se com a mesma doçura, a mesma semelhança, eu expirasse na morte verdadeira, na morte que será a vida, que se dará a vida Eterna! Veio Jesus, deu luz a toda a minha alma e disse:

― Minha filha, Minha filha, Minha Alexandrina, Alexandrina das dores, deixa-Me que te dê mais este título de Minha esposa, Alexandrina das dores. Tem coragem! A alma pura posso compará-la à água pura, à água cristalina, em vidro de cristal fino, posta aos raios de sol a ser observada. Quantas coisas aparecem; o que descobrem esses raios de sol! A alma és tu; o sol, observador sou Eu que tudo em ti descubro, e a Meus divinos olhos, tudo aparece. Esse tudo que Eu vejo e faço que tu vejas é o meio de que Me sirvo para purificar a tua alma para poderes passar deste Calvário, deste leito de dores ao Céu. Faço que vejas em ti todas as manchas, para delas te purificares, para te ver tão pura, tão pura, Minha pomba querida, para que esta pureza em ti transpareça e a possas comunicar às almas. São tuas as manchas que ao sol da Minha pureza e grandeza aparecem mas não são tuas, filha querida, atende bem ao que te digo, as maldades, os crimes, esse mundo de horrores, que em ti sentes e descobres. Ó maravilhas, ó maravilhas, tão pouco conhecidas e compreendidas! A alma vítima vê-se coberta e responsável de todos os crimes, e, ao mesmo tempo, possuidora do Seu Deus com todas as Suas grandezas. Quanto ela sofre ter que aguentar e enfrentar o imundo com o que há de mais puro e santo! Confia, filha querida; és vítima, mas não são teus esses crimes. Entreguei-te o mundo, para o salvares, mas não é tua a maldade dele. Acode-lhe, acode-lhe.

― Ó meu Deus, eu não posso acudir-lhe; não sei o que hei-de fazer, não tenho que Vos dar para o salvar. Salvai-o Vós, Jesus, acudi-lhe, são Vossos filhos e Vós sois todo-poderoso e todo amor. Eu sinto que o meu sofrimento nenhum valor tem.

― Minha filha, minha filha, és poderosa, tens comigo todo o poder. Tudo o que faço, tudo o que peço, o Meu apelo urgente é para lhe acudir. Se te for dado ver como Eu sou ofendido, é necessário um milagre para conservar-te a vida. A maldade atingiu o seu auge, não pode aumentar mais, mas pode e aumenta o número dos que Me ofendem. A impureza é veneno, que se alastra. Dá-Me dor, esposa das dores. Repara como sou ferido.

Neste momento vi cair sobre Jesus um nunca acabar de maus-tratos. Jesus era espancado, esbofeteado, escarrado, açoitado, arrastado; era o mundo sobre Ele. Levantei as mãos e gritei:

― Jesus, sou a Vossa vítima.

E, como se fosse possível abrir o peito e dar-lhe entrada em meu coração, disse-Lhe:

― Fugi, Jesus, entrai no meu coração; caia sobre mim essa chuva de sofrimentos, mas livrai-Vos Vós de serdes ferido.

Eu senti com que um impulso de amor me obrigasse eu mesma a rasgar o peito, para dar entrada a Jesus. Ele entrou e escondeu-se, mas, antes de entrar, levantou-me, porque estava caída; desfaleci com a visão dos Seus sofrimentos. Ele deu-me vida ao coração, que de dor me parecia morrer.

― Minha filha, dá-me então tudo, tudo o que te pedir, todo o sofrimento, alegre, para consolares o Meu Divino Coração, para Me desagravares, para Eu não ser ferido; dá-Me tudo, para Eu poder tudo apresentar ao Meu Eterno Pai, para abrandar a Sua justiça. Acode, acode, às almas.

― Meu Jesus, ó meu amor, aceitai o meu sofrimento e o do mundo inteiro, como se eu dele pudesse dispor; uni-os aos sofrimentos e méritos da Vossa santa paixão, uni mais ainda todo o amor do Céu ao Vosso amor e ao da querida Mãezinha; formai de tudo uma escora que sustente toda a justiça divina, para a não deixar cair. Quero acudir às almas, a todas as almas e também ao martírio dos corpos, se puder ser, Meu Jesus. Misericórdia, misericórdia, meu Amor.

― Pede sempre, sofre sempre; a salvação das almas é tudo; és comigo poderosa. Recebe agora a gota do Meu Sangue Divino, que brota do Coração, a arder de amor. Sem ele não podes viver, sem esta vida divina não podes resistir à dor.

A gota do preciosíssimo Sangue de Jesus caiu por entre labaredas de fogo no meu coração, que logo se dilatou; mas Jesus não o deixou dilatar-se por muito tempo; veio logo como médico, cicatrizou a abertura, e disse:

― Vai, esposa, amada; vai sofrer, vai para a cruz, vai para a dor. Sofre mergulhada nestas chamas, sofre abrasada neste amor; vai espalhá-lo, vai atá-lo na humanidade. Vai confiada; não te enganas, Jesus não te deixa enganar. És de Jesus, vais para Jesus; és das almas, vítima das almas. Coragem, coragem!

― Obrigada, meu Jesus. Sofro tudo sem condição, a não ser a do Vosso amor, a da Vossa graça e força; não posso sozinha, tenho medo, meu Jesus.

Que horror eu tenho a ter que ditar tudo o que me diz Jesus! Se não me vem uma graça do Céu, desisto, não o posso fazer. Se me davam uma ordem para não escrever mais nada, que alívio tão grande para a minha alma atribulada; que consolação a minha; até me parece que deixava de sofrer. Mas isso não quero; sou a vítima de Jesus.

16 de Maio de 1947 – (sexta-feira)

Quero subir na escada do amor, e não consigo; sinto que desci ao último degrau. Jesus nada pode esperar de mim; não sei amá-Lo, não tenho forças para O amar. Quero abraçar a minha cruz, a cruz que Ele me dá, e não posso; este meu abraço é cair com ela, desfalecida, sem jamais poder levantar-me. Quero fazer tudo o que é bom e santo, e nada faço; pobre de mim! Quero ser só de Jesus, da Mãezinha e das almas, e não sou de ninguém nem para ninguém. Não sou eu, não vivo, não existo; existe, vive em mim o mundo cheio de maldade, cheio de crimes, todo revoltoso contra o Senhor; é uma vergonha de morte. Sinto-o a crucificar Jesus. Em mim vive outra vida a enfrentar este mundo. Com que dó, com que com compaixão o enfrenta, o contempla! É por forçado a castigá-lo e não quer. Esforça-se, faz tudo para não bater, não punir. Eu que não existo, sou, ou estou no meio destas duas vidas; a vida do mundo quero moderá-la, transformá-la para ser outra. E na vida de Deus, nada mais faço; imploro misericórdia, abro os braços, levanto as mãos, curvo-me diante desse poder supremo para receber todos os golpes, para ser esmagada por toda a Sua divina justiça. Meu Deus, não vivo e sou mundo, não vivo e possuo a vida de Deus, não existo e vivo para o mundo e vivo para Jesus, não sou nada e tenho que aguentar sobre mim toda a maldade humana e todo o poder, todo o amor e toda a justiça de Deus. Se eu soubesse dizer este teatro doloroso que ora sinto, ora vejo em minha alma! O amor do Céu não pode enfrentar a maldade da terra.

Apoderou-se de mim tão grande medo do demónio, que é por vezes um grande pavor. Não tenho tido combates com ele, mas sinto-o em trono, no meu coração; é rei absoluto de todo o meu ser; sou toda demónio, sou toda inferno. Repetidas vezes, sinto cheiro ao queimado; parece-me estar a cama, a roupa e eu toda a arder. Que gemidos tão dolorosos e tão horrorosos tormentos deste inferno! Não posso consentir ser eu inferno e ser demónio. E tudo isto às cegas, em trevas tão profundas; e eu sempre a correr a mergulhar-me nelas, a atirar-me, louca, para elas, como se fosse um poço sem fundo. São dolorosas estas trevas; e tremenda esta cegueira; mas não sei pelo quê, eu quero-as, tenho sede delas; quero-lhes tanto, como se elas fossem feitas só de consolação e amor. Tenho sede e não me sacia de beber nelas e sempre nelas me mergulhar. Como pode ser, meu bom Jesus, querê-las e temê-las; sofrer nelas e amá-las. Bendito sejais por tudo, meu Senhor; sou a Vossa vítima.

O dia da Ascensão de Jesus ao Céu foi para mim cheio de noite escura; foi uma morte total de todas as coisas. Até no Céu era noite e reinava a morte. Não pude ansiar pela minha Pátria, nem recordar o que se passava lá. Caminhei para o Horto sempre arrastada pela maldade. O meu coração tornou-se uma bola, um entretenimento dos homens; em tão curta viagem, recebeu todos os maus-tratos. Os caminhos eram ladrilhados de agudos e variados espinhos para o ferirem. Vi ao lado, em visão bem clara, o Calvário, e, no cimo, a cruz. A cruz era a minha, não digo bem, era a de Jesus. Quando assim falo, é dele e só dele, porque é Ele a sofrer em mim, eu só O acompanho. Senti que Ele se queria refugiar, e para uma gruta me refugiei com Ele. O que ali sofreu Jesus! O sangue que Ele soou! O sangue que caiu do Seu Divino Coração duramente espremido, enquanto o cálice da amargura, transbordou fora. Ofereceu-o ao Pai; Este mandou o Anjo, a confortá-Lo. Ela desceu e colocou-se, ao lado de Jesus, como para O levantar. O Calvário com a cruz não desapareceu. O mundo com a sua maldade continuou a agravar os Seus sofrimentos. Depois, o beijo de Jesus e nada mais. Hoje, de manhãzinha, entrei nas ruas do Calvário. Quase no princípio, caiu Jesus, pela primeira vez; caiu sobre a cruz, feriu gravemente o Seu santíssimo rosto e peito. Desfalecida, oprimida por tão grande peso, segui com Ele o caminho do calvário. Caiu, segunda vez, e eu caí também. Senti e ouvi os estalos das pancadas que despedaçavam o Seu santíssimo corpo. Cheguei ao cimo, vi a esponja, que de nada valia para a sede, em que ardia Jesus. No alto da cruz, de todas as feridas dos espinhos saíam raios doirados; formavam um só brilhante. Estes raios, este sol resplendoroso enchiam a terra, mas este levantou sobre eles negras muralhas, para deles se esconder; rejeitou-os. Daqui nasceu o brado e a agonia contínua de Jesus. Sofri com Ele até ao último momento, até que agonizei e deixei o coração mais duro que a dura pedra. Veio, pouco depois Jesus; transformou-o de dureza para luz e bondade.

― Minha filha, escola das maravilhas, de todas as maravilhas de Jesus, rainha do mundo o qual eu quero e é urgente que a esta escola venha todo aprender. És escola de maravilhas, porque em ti há do mais alto e sublime; em ti há tudo o que é do Céu, tudo o que é de Deus. És rainha do mundo, porque to entreguei e confiei para o salvares. Quero que em ti aprenda; e quanto tem que aprender! Em ti aprende a amar, a sofrer, a cumprir em tudo a lei do Senhor; em ti pode admirar as maravilhas, que o mesmo Senhor em ti depositou. Não foi para ti, Minha esposa querida, que assim te fez rica e poderosa; foi para as almas, foi para as almas, foi para as salvar.

― Ó meu Jesus, ó meu Jesus, como eu sou pequenina, como me sinto humilhada, queria desaparecer de diante de Vós. A minha humilhação não é por ouvir-Vos falar assim, porque falei das Vossas coisas, mas sim por me teres escolhido para depositária das Vossas graças, preferindo-me a tantas criaturas. Que vergonha, meu Jesus!

― Criei-te para esta vida, para a salvação das almas, para a missão mais sublime. Eu encontrei em ti, na mais tenra idade, o que não encontro nas outras criaturas. Digo-te, não para elogio, porque sem Mim nada podes, mas sim para tua força e conforto. Tem coragem! Tu serás para o mundo uma nova arca de Noé. Tu serás para toda a humanidade o sol, que a ilumina. Coragem, Minha redentora, Minha crucificada. O teu amor, o teu sofrimento é a arca de salvação. Confia, confia; são tuas as almas. Vou dar-te com a gota do Meu Divino sangue uma efusão do meu amor, sabes para quê? Para o dares, para o distribuíres; e para que em teus olhares e vida transpareça tudo o que é celestial. Desce o Céu a assistir.

Um bando de Anjos mais vasto que a chuva miudinha desceram, a baterem as asas, cheios de luz. Mais atrás, um bando sem número de pombas brancas. Por último desceu a Mãezinha, coroada de rainha, num grande trono; colocou-se à minha frente; senti como se o meu peito fosse aberto, e a Mãezinha colocou no meu coração as Suas Santíssimas mãos. Do coração divino de Jesus saiu para o meu, fogo, muito fogo; e por último a gotinha de sangue. Com este calor ardente e o sangue de Jesus, o coração dilatou-se, fiquei sem poder respirar. A Mãezinha fazia do coração uma bola que ela acariciava; com estas carícias e beijos, que ela me dava, aguentei o amor de Jesus.

― Minha filha, coragem, coragem ― disse-me Ela.

O peito cerrou e a Mãezinha com os Anjos e o bando das pombas brancas principiou a subir. Ao vê-La partir, disse-lhe:

― Muito obrigada, Mãezinha; levai-me convosco para o Céu.

― Espera, Minha filha, mais um pouco; tem coragem! Depressa virás para a tua Pátria.

― Não demora, não demora o teu Céu, Minha filha ― continuou Jesus, que ficou comigo. Viste o bando das pombas brancas? Foram de almas que estão no Céu já salvas por ti. Diz-Me muitos actos de amor; tens por cada um uma alma. É a troca; vê que vale a pena. Mas olha; quem muito dá muito quer receber. Eu tudo te dou; enriqueço-te, mas quero dor, sempre dor, dor sem igual; é com o amor a moeda das almas. Confia em Mim, estrela do mundo, flor mimosa do Paraíso. Vai para o teu posto, vai para a tua cruz; saboreia tudo o que é dor, que é um sorriso contínuo para o teu Jesus.

Fiquei com tantas saudades da Mãezinha e tantas saudades do Céu e tão grande horror e aborrecimento do mundo!

― Quem poderá aqui viver, meu Jesus, só com a Vossa graça, a Vossa vítima. Tende sempre diante de Vós o meu pobre coração agradecido.

23 de Maio de 1047 – (sexta-feira)

O que fizeram os santos, porque não o faço eu também? Tem sido esta a interrogação, que neste mês da Mãezinha tenho feito a mim mesma. O que os santos fizeram! Mas eu não sei o que foi. Eles certamente amaram muito a Jesus e tudo sofreram por Ele. Mas eu não sei amá-Lo, desconheço o amor; e nada sofro porque não sou quem sofre, mas sim Jesus em mim. O que hei-de dar então? Ai, pobre de mim! Nada tenho a não ser o mundo horroroso, o mundo vergonhoso das minhas maldades e misérias. Ó meu Deus, eu Deus, como eu me vejo e sinto num mundo de podridão; tenho nojo de mim mesma. Desfaz-se a minha carne na maior imundice. Mas tenho sede, sede abrasadora, sede insaciável de amor a Jesus. Sinto-me como se estivesse mergulhada no mar sempre a beber, sem dele sair, sem nunca me saciar. Estou como o peixinho; quanto mais nada, mais quer nadar; quanto mais me mergulho, mais necessidade tenho de me mergulhar. Morro à sede, sem sair da água, sem deixar de beber. Queria dar-me a Jesus, queria dar-Lhe a as almas, todas, todas as almas. Quando falo de Jesus, do Seu divino amor e das Suas almas, não sei que sinto, sinto-me a desaparecer. Que loucura o amor de Jesus! Que valor têm as nossas almas! Não posso pensar que alguma se perca, que para alguma fosse inútil o Sangue de Jesus derramado. Não tenho coração nem espírito que aguente com estes pensamentos. O amor de Jesus, o amor de Jesus por nós! Sinto um não sei quê, dentro de mim, que me obriga a querer ir a Roma. Não é para ver sua Santidade; não é para ver os lugares santos nem para contemplar tantas maravilhas, se bem que tudo isso seria para mim motivo de grande alegria. A minha necessidade não é essa. Eu queria de sua Santidade um não sei quê, que mais ninguém me pode dar. Eu queria lançar-me a seus pés, beijá-los, regá-los com as minhas lágrimas. Estou convencida que isto o fazia compadecer de mim; estou certa que assim a minha alma recebia o que ela anseia e eu desconheço. Ó meu Jesus, Vós sabeis bem que isto eu não posso fazer; supri Vós, por misericórdia, doutra forma, a minha falta.

Continuo a ter grande medo, grande horror ao demónio. E continuo ainda a senti-lo no meu coração, sentado em trono como rei; tem mesmo na cabeça coroa como de rei e na mão direita um pau ou ferro preto, de meio para cima, com duas grandes galhas. Ele está em grande sossego; sabe que Ele é o Senhor; não teme que o deite fora; está orgulhoso como senhor de si mesmo. Meu Deus, que grande horror! O demónio dentro de mim! E agora, nestes últimos dias, sinto em mim Jesus, mas fora do coração, e a alma vê-O com o peito aberto, de cada lado da abertura, as suas divinas mãos para melhor mostrar a chaga do Seu Divino Coração profundamente aberta e a sangrar. Jesus aponta o Seu Coração divino; com os Seus olhares ternos e meigos, cheios de amor, convida o meu coração a entrar. Ele quer-me inteiramente, esquece o meu passado. Que convite tão enternecedor! Faz-me doer tanto o coração! Jesus, de pé, sempre a chamar-me com doçura a entrar nele. Eu faço-me surda, desvio dele os meus olhos, não faço o mais pequenino esforço por deitar fora o demónio. E Ele nem sequer estremece, no seu grande orgulho, está sossegado. Que quadro doloroso! O demónio dentro e Jesus fora! O amor a enfrentar a maldade. E eu preferir o demónio a Jesus! Que horror, que horror de morte!

Na tarde de ontem, senti que no meu pescoço me foram lançadas grossas cordas, e todas as mãos humanas por elas me arrastaram até me conduzirem ao Horto. Esta mesma força de maldades obrigaram o Céu com toda a justiça divina a descer lá sobre mim a esmagar-me. O peso foi tanto, que me rompeu todas as veias; o sangue regou a terra, a larga distância. Ali vi Jesus com antecipado sofrimento, com o Seu divino coração aberto, a dar de beber às almas. Umas arrumavam-se Dele, com aborrecimento; desprezavam tudo, nem no sangue de Jesus queriam tocar; outros bebiam-no friamente, com indiferença, como se nada fosse; vinham outros, que o bebiam com mais amor; iam outros que bebiam com loucura e não queriam deixar de beber; veio outra que passou sobre todas, e, numa sede insaciável, bebeu, bebeu, entrou pela chaga do Coração divino de Jesus, perdeu-se Nele e não apareceu mais. Depois subi ao Horto, ou subiu-o Jesus em mim, atropelada debaixo de uma chuva de empurrões e pontapés. Eu sentia no meu corpo os vestidos colados com o sangue já seco. Na grande sala de Anás, vi a multidão que seguia Jesus, eram homens, só homens com armas e paus. Quando o malvado deu a bofetada em Jesus, foram tantas as gargalhadas e o bater de palmas, como se fosse praticada a mais bela das acções. Como Jesus se fazia pequenino e estava humilhado! O príncipe na sua vaidade, elevou-se às alturas; via-se como que adorado por quantos o rodeavam. Como Jesus foi desfalecido para a prisão! Que tristeza a Sua! E ali sozinho! Que pena eu tive de Jesus! Lembrei-me então Dele, preso nos sacrários, pois agora na terra outra prisão não tem. Fiz um sacrifício, fiz alguns actos de amor; pedi à Mãezinha para ir comigo a todos os sacrários e os entregar a Jesus por mim, e lá me deixar para sempre prisioneira com Ele.

Hoje de manhãzinha, sem nisso pensar, senti a alma ir ao cárcere, ao encontro de Jesus; encontrei-O triste, na mesma tristeza que eu senti e sem ter as belezas de Jesus; estava desfiguradíssimo, era já quase um cadáver. Desci com Ele, com Ele fui coroada de espinhos, com Ele fui açoitada, com Ele ouvi as algazarras dos que se regozijavam de O ver sofrer. Com Ele segui o Calvário. Ao cimo dele vi despirem Jesus; não O vi crucificar. Mas pouco depois, o meu corpo era a cruz, onde Ele estava pregado. Os espinhos da Sua sagrada cabeça feriam-me a mim também. Sentia o Seu divino Coração cercado de miudinhos, mas agudos espinhos, que me cingiam e feriam também o meu. Quando Jesus movia os Seus lábios, para bradar ao Pai eu sentia-os e via-os mover. Quando a esponja lhe foi por eles passada, no coração senti como Ele saboreava não por si, mas em sinal de agradecimento, como se lho tivesse feito por amor. Bem intimamente na alma se gravaram também os olhos de Jesus, quando Ele os levantava ao Pai, e via que eram uns olhares mais ternos. Perto de Jesus agonizar, fez-se noite no Calvário, e reinou um profundo silêncio; só se ouviam os Seus suspiros divinos. Quase tudo se retirou, apavorado, e já a tomarem qualquer acontecimento. Era o temor e não o amor a causa desse pavor. Ficou a Mãezinha com a Sua dor e agonia a acompanhar Jesus. Como Ela sofria e Ele com Ela! Indizível é a dor. Sofri tudo e nesta dor expirei. Veio Jesus, chamou-me:

― Minha filha, coração grande, coração ardente, coração de fogo, sacrário da minha habitação; és o meu Céu na terra, paraíso das Minhas delícias. Sim, aqui delicio-me; posso dizer que ainda há corações na terra, mas bem poucos, que Me amam e onde Eu tenho a Minhas delícias. O teu é um desses, permite-Me que te diga; confia em Mim, que sou O teu Jesus: o teu coração é o que Me ama sobre todos, e sobre todos no que mais Me delicio. O teu amor delicioso, Eu o coloco na taça da tua dor; é uma oferta contínua, dia e noite, sem parar um momento, que Eu ofereço a Meu eterno Pai. Esta taça de dor e de amor delicioso é escora que sustenta o braço da Sua justiça pendente a cair sobre a terra. Dá-Me dor, dá-Me amor, dá-Me tudo, Minha filha. O Meu eterno Pai ao aceitar e contemplar a oferta, que Lhe dou, vai esquecendo como sou ofendido. Oferece-Me, filha querida, todo o teu martírio, une-o ao Meu sangue Divino e às dores da Minha Bendita Mãe, e nesta união, na renovação contínuo da Minha paixão, tu receberás do Céu toda a força, todas as graças, todo o poder, para acudires às almas. Salva-mas, salva-mas, que são Minhas. E vê o trato que Me dão.

Quando Jesus levantava para o Seu Eterno Pai uma taça formosíssima, era belo, cheio de luz. Quando me disse para eu ver o mau trato, que Lhe davam as almas, caiu por terra, feito um mendigo, sem formosura, sem luz e sem nada. Caiu de repente com os maus-tratos, que Lhe davam, como uma árvore, que num rápido momento é cortada. Quando vi Jesus caído, lancei-me a Ele, deitei-Lhe as minhas indignas mãos e bradei-Lhe:

― Levantai-Vos, levantai-Vos, meu Jesus: quero cair eu, debaixo desta chuva de maldades, mas não quero ver-Vos sofrer. Dizei-me, Jesus, o que posso dar-Vos, o que posso fazer.

― Dor, dor Minha filha; dor e amor. Pede, pede aos que cuidam da Minha divina causa; diz-lhes que Jesus pede: quero oração, quero penitência, quero vida pura, quero vida nova. Que não cessem de pedir isto aqueles, a quem confiei aquilo que mais caro tenho na terra.

― Meu Jesus, tudo Vos dou sem ter que Vos dar; não sei amar-Vos, não sei sofrer, dou-Vos tudo o que é Vosso; sou a Vossa vítima.

― Amas-me, filha querida; sabes sofrer e comigo tudo vences. Vou pedir-te alguns combates do demónio; dá-mos, confia que não Me ofendes. Eu queria que a tua vida, esposa querida, fosse espalhada, depressa chegasse aos confins do mundo como chuva de Formosas rosas caídas do Céu. Que chuva de maravilhas, bálsamo de salvação para as almas. Recebe a gota do Meu sangue Divino; corre o sangue de Jesus nas tuas veias, é a tua vida, é a vida que espalha, é a vida que infundes nos corações e nas almas. Deixa-Me unir o centro dos dois; não deixo que o teu se dilate.

Jesus uniu os nossos corações, a gotinha do Seu divino sangue caiu no meu e Ele logo os separou; acariciou-me e disse-me:

― É a vida é a força do tua dor. Vai, esposa, vai, amada, vai para a cruz que te espera; leva a graça, leva o sorriso, leva o conforto, beija-a abraça-a, não Me deixes mais. Eu opero milagres sobre a tua vida; sem este milagre não resistirias a tanto sofrer. Quando deixar de o operar, a tua alma voará ao Céu como pomba branca, saída da prisão. Está bem perto, tem coragem! Vai dar-te às almas, vai salvá-las. Vê quanto Eu faço por elas; mesmo assim ofendido, abro-lhes o peito, ofereço-lhes o coração; e elas como demónio em seus corações não Me dão aceitação, recusam a entrada, preferem-na a ele. Não és tu que possuis em ti o demónio; é o mundo, é o mundo; tu és vítima. Coragem, coragem! Leva amor, leva a tua cruz. O mundo é teu; confiei-to; acode-lhe, salva-o com a tua dor, com o teu amor, com o teu calvário.

― Obrigada, meu Jesus

30 de Maio de 1947 – (sexta-feira)

Não sei o que é a minha vida; estou na terra e parece-me que não estou; vivo, e, por vezes, passo as horas, como se não vivesse; sofro, e sinto passar-se o tempo, como se não sofresse. Não vivo, nunca vivi; não sofro, nunca sofri; não amo, nunca amei. É o que eu sinto. Meu Deus, meu Deus, como é que eu existo, e a parecer-me não existir? A minha vida é lodo, é lama presa, são maldades vergonhosas. Que trapo desfeito em lepra nojenta. É o que eu sou, é o que eu vejo em mim, é a vida que vive e reina em todo o meu ser. Mas tenho sede, sede de pureza, sede de graça, sede de amor, sede das almas. Tenho tantas ânsias de possuir a Jesus, de enlouquecer por Ele, que, fitando o Seu divino Coração, digo-Lhe: deixai-me, Jesus, entrar nessa chaga divina, nesse Coração de amor; quero esconder-me, desaparecer, derreter nesse fogo, como gelo que derrete com o sol e desaparece escondido na terra. Dai-me amor, Jesus; escondei-me, não quero aparecer no mundo. Toda a terra Vos dá louvor, Jesus; e eu nada Vos dou. Quando chegará o dia que eu Vos possa louvar e amar eternamente e em Vós saciar todos estes desejos e ânsias que me consomem? Sinto-me morrer, meu Jesus, por não Vos amar, por nada ter que Vos dar e por não Vos salvar as almas. Vede até onde chega o meu desfalecimento.

A noite de sábado para domingo do Divino Espírito Santo foi noite de tormento, de penoso martírio para mim. Ainda cedo, cerca das dez horas, vi à minha frente uns grandes arcos guarnecidos de medonhas serpentes; eram elas que formavam esses arcos, pois outra coisa eu não via; eram elas que os guarneciam, pendentes para um lado e para o outro, uma e outra cabeça, uma e outra cauda. As cabeças tinham os olhos vivíssimos, medonhos, cheios de malícia. Até aqui não me assustei. Passado algum tempo, sentia essas serpentes, junto de mim; parecia-me ter a cama cheia. Ouvia o seu rastejar, como se fossem pelo chão, as suas grandes escamas pegavam-me na roupa, como grandes farpas. Queria desviar-me delas, e não podia. Tinha medo, mais que medo, grande pavor. Queria luz, queria chamar a minha irmã, mas não o conseguia. Não sei se sim se não, mas não me recordo de chamar por Jesus nem pela querida Mãezinha. Juntaram-se a estas uns bichos pequenos que eu desconhecia, mas eram assustadores. Não tinha lugar na minha cama que não estivesse ocupado pelas serpentes. Senti no meu corpo uma dor tão aguda, pareceu-me que fui por uma mordida; senti que esta mordedura me envenenou toda; o veneno espalhou-se em todo o meu ser, repentinamente. Disse para mim: vou morrer já, morro envenenada; esperava a morte. De um momento para o outro, senti uma força, uma coragem, tentei esmagar uma que passava ao meu lado; calquei-a; na minha mão direita, tinha como que um ferro agudo, como se fosse uma lança. Esforcei-me por trespassar com esse ferro a cabeça da serpente. Trespassei-a, calquei-a, mas ela ficou com vida; pode retirar-se de mim. Quando esta desapareceu, já todas as outras tinham desaparecido. Eu não morri, mas todo aquele veneno ficou em comigo; e tal veneno é que tudo pode envenenar.

Passaram-se uns dias e noites sem que o demónio viesse com os seus ataques atormentar-me, embora, por vezes, tentasse assaltar-me. Mas sempre veio com três assaltos seguidos. Não sei como ele se fez senhor de todos os meus sentidos; olhos, ouvidos, tacto, sentidos. O meu coração era dele; era dele todo o meu ser. Principiaram os convites para o mal, as maldades, por fim a luta. Pude dizer a Jesus e à Mãezinha que me valessem, que não queria pecar, que era a Sua vítima. Não pude benzer-me, nem pegar, para as mãos no meu crucifixo. Parecia-me que ele conseguia de mim quanto queria e, de um combate para o outro, eu ficava presa a ele, presa pela malícia, presa pela maldade. Compreendi alguma da sua malícia. Por mais esforço que fizesse para não ouvir o que ele me dizia, tinha que ouvir. As bagadas de suor corriam; o coração batia aflitivamente. Não podia libertar-se dele. A voz de Jesus e a um sinal de retirada, ele fugiu. Jesus dizia: aparta-te, maldito, para o lugar que tu escolheste; já basta; deixa-a, que é a minha vítima. Fiquei libertada e pude tomar a minha posição. Mas ele, ainda ao longe, tentava seduzir-me e prender-me novamente a ele. Fiquei na dor e no receio de ter pecado. Só depois de Jesus ter vindo ao meu coração, sosseguei mais. Ele deu-me a Sua doce paz.

Ontem, perto do cair da tarde, vi dois rostos unidos: o de Jesus e o de Judas, que deu o beijo traidor em Jesus. Vi estes rostos, e eles estavam unidos ao meu. Foi tal a amargura que senti com aquela visão. Um rosto tão belo e tão puro e outro tão cruel e parecido com Satanás, que me levou ao Horto, no qual principiei a ver e a sentir Jesus, ora de uma forma, ora de outra. Quando Ele mais precisava dos Apóstolos, os seus amigos, companheiros de tanto tempo, menos os tinha, maior era a sua despreocupação; dormiam sossegados, a bom dormir. Jesus sofria com este afastamento, mas estava contente por eles dormirem. Prostrado por terra, em agonia, banhado em sangue, levanta-se depois. E eu sentia-O na minha alma, gravado bem profundamente, os Seus cabelos ensopados e as gotas do Seu divino sangue a correrem ainda mais, muito mais. Sentia os Seus divinos olhos abertos, levantados ao Céu. E em meu coração sentia os Seus lábios a repetirem, uma e outra vez: Pai, Pai, Pai, afasta-Me este cálice, se é possível; mas faça-se a Tua vontade; Eu quero morrer para dar a vida. Nestes momentos Jesus tinha a formosura de Jesus. A Sua calma estava jubilosa de tanto sofrer. Que alegria a de Jesus, por dar a vida por nós! Veio Judas de encontro ao Horto, ali beijou o rosto inocente, e, logo, todos os soldados caíram por terra. Jesus, entregue aos seus maus-tratos, mais ainda do que até ali, se viu dos seus amigos abandonado; fugiram, deixaram-No sozinho.

Hoje, pela manhã, caminhei para o Calvário. Por mais que eu queria desviar os sofrimentos de Jesus do meu pensamento, não por não querer pensar neles, mas sim para me livrar de ilusões, prende-se a eles o meu coração; desvia-se deles o espírito, mas o coração cola-se, a alma tudo sente. Caminhei com O meu Jesus; parecia-me caminhar, a passos de gigante. No meu desfalecimento, o Calvário não chegava, mas vinham-me, de encontro ao peito, todos os sofrimentos dele; feriam-me o coração. Quase sem vida cheguei ao cimo. Pregada na cruz, ondas de sofrimentos, vindas de mares e mares sem fim, levantavam-se sobre a cruz. Jesus, numa sede insaciável, bebia incessantemente, e, como num eterno abraço, as estreitava. Com que doçura Ele o fazia, sabia e via muito bem que Sua morte dava a vida; que a Sua dor era um maná, o bálsamo fecundo, a vida das almas. A esta bondade e amor de Jesus, veio levantar-se o mundo em grande revolta e ódio; parecia cair sobre a cruz uma chuva de instrumentos, que dilaceravam os restos das carnes de Jesus. Era o mundo lodacento, apodrecido, a atirar contra o sol mais brilhante a sua podridão, para encobrir seus raios. Eram estes os sentimentos da minha alma. Que sentimentos tão profundos! Jesus, ao ver que o mundo desperdiçava o Seu sangue divino e a tantos não aproveitava a Sua morte, agonizou, e eu com Ele. Depressa voltou novamente a dizer-me:

― Minha filha, esposa querida, coração do Meu coração, luz dos Meus divinos olhos, vem saciar-te, vem ao amor, vem receber vida; recebe para ires espalhá-lo. Consola-Me, acode às almas; as tíbias arrefecem, gelam cada vez mais, os pecadores fogem-Me. Acode-lhes, pede-lhes que escutem a voz de Jesus, que atendam ao Seu chamamento. Tem dó de Mim, vê a Minha agonia. Dá-Me dor, dá-Me dor, a tua dor é de salvação.

― Ó meu Jesus, sofro tanto pelas almas e elas gelam, e os pecadores fogem-Vos? De que vales então os meus sofrimentos? Eu quero sofrer tudo, mas não Vos quero ver sofrer, quero sofrer tudo, mas quero salvá-las; e nada faço, e nada faço, meu Jesus.

― Ai do mundo sem ti, ai do mundo sem o teu martírio! O teu sofrimento vence o coração de Deus; o teu martírio é de redenção. Eu farei que tenhas todo o poder sobre as almas. Que maravilhas, que grandes transformações Eu por ti opero nelas! Que grandes prodígios, depois da tua morte! Tens todo o poder sobre elas, e poderosa és sobre os demónios. A visão que te dei das serpentes, foi para dar luz; estudem-na bem para bem a compreenderem. Escolhi a festa do Divino Espírito Santo; deixem-se iluminar pela sua luz. Os arcos levantados eram as torres maliciosas de Satanás. Ele envenenou tudo, a malícia subiu ao seu auge. As arcadas eram arcadas sedutoras. Tu não foste pela serpente envenenada; ela não te mordeu; foste apenas vítima. Não te disse Eu já há muito tempo que, à semelhança de Minha Bendita Mãe, serias poderosa sobre os demónios. Era um Anjo, à semelhança de outro anjo, a combater a serpente maligna. Uma virgem, à semelhança doutra virgem, Minha Mãe Santíssima, a calcá-la, a aniquilá-la. Ela gemia sobre o teu poder; mas sua vida continua, o veneno continua a envenenar e continuará sempre até ao fim. É o retrato do paraíso; luta e vencerás; combate e nada temas. Coragem, cofre riquíssimo, mar imenso das maravilhas de Jesus.

― Mas Jesus, tenho tanto medo do demónio e receio tanto enganar-me! Sou a Vossa escrava, confio na Vossa misericórdia.

― Não temas o maldito, Minha filha; ele não vence, nada poderá contra ti; tu não Me ofendes. O segundo ataque que te pedi, foi a reparação da família. Que crimes tão grandes se comentem entre os esposos! Confia em Mim; tu não te enganas. O teu sofrimento, mesmo quando estás em colóquios comigo, sou Eu que o permito; são colóquios dolorosos, é maior a reparação que Me dás, e o proveito é para as almas. Para veres que não te enganas, retira-te agora de Mim, deixa-Me ficar sozinho.

― Não posso, Jesus; estou presa a Vós, deixai-me então que eu vá.

― Compreendes então, filha querida, que não te enganas, que estás na verdade, que estás comigo?

― Sim, Jesus; agora compreendo, não tenho dúvidas. Não sei que luz e fogo é este; sinto o meu coração arder.

― É a luz do Divino Espírito Santo, é o fogo do Meu divino amor. Enche-te, toma conforto; e recebe juntamente a tua vida, a gotas do Meu Divino Sangue.

Jesus fez outra vez do Seu Coração uma canequinha, pela qual deixou cair no meu a gotinha do Seu Sangue divino; colocou-a novamente dentro do Seu Santíssimo peito, cerrou-o, cerrou o meu e disse-me:

― A cruz espera-te; vai para ela, abraça-a, beija-a, é a cruz da redenção. A tua dor, o teu amor salva as almas. A tua dor não ma negues. Vai para o mundo com o teu martírio, leva a minha graça, leva o meu divino amor. Semeia, semeia com canseira, semeia com o teu sorriso.

― Obrigada, obrigada, meu Jesus. Sim, eu vou, mas fico convosco; eu vou, mas vinde comigo, sede a minha força.

6 de Junho de 1947 – (sexta-feira)

Não posso estar aqui; não vivo, não sei viver. Tenho medo do mundo; que horror ele me causa; não sei se é ele que me crava tantos punhais; não digo bem, sinto-me a ser o mundo e sou eu própria a cravá-los, a assassinar-me a mim mesma!

Por vezes, a minha alma vê Jesus, feito enfermeiro, a querer entrar a este mundo, que sou eu mesma. Rodeia, rodeia uma e outra vez este monstro mundial, para curar-lhe as chagas de entro e de fora. Jesus anda cheio de amor e doçura, mas não tem estrada. Esta rocha dura não quer ouvir o Seu convite de ternura, não quer deixar-se curar. Que pena eu tenho não consentir que Jesus seja o meu enfermeiro! Ele quer acariciar-me, e eu não deixo, revolto-me contra Ele, obrigo-O a afastar-se de mim. Apesar de ser eu que O não quero, nem quero a Suas bondades, ternuras e carinhos, a alma chora por não O querer, por não lhe dar entrada, por não O amar. Que pena eu tenho de Jesus! Sofro ao mesmo tempo com Ele. Sou o mundo e sou Jesus; peco e quero pecar; amo e quero amar; e este amor é louco, não tem limites, ama e não olha a quem; o que quer é ser aceite. Se este amor fosse eu, e minhas não fossem as maldades! Mas ai pobre de mim! O amor é de Jesus, as maldades são minhas. Abracei-me à minha cegueira com tal afecto, com tal amor, que não mais a largarei; ela só me causa sofrimento, só me mostra que sou lodo e lama, mas eu quero e neste estreito abraço mais me vou mergulhando nela. O que é bom, o que é de Jesus, não aparece nas minhas medonhas trevas. Mas o que posso eu esperar, o que posso eu ver, se nada há em mim de bom, nada tenho de encantador que a mim pertença. Sou miséria, só miséria; ó Jesus, compadecei-Vos de mim! Tenho recebido, nestes dias algumas, algumas graças, alguns mimos do Céu, que eu não mereço. Agradeço-as a Jesus e à querida Mãezinha, mas este meu agradecimento não chega.

Por não chegar o meu agradecimento e por temer ao máximo estes mimos, não chego a gozar da alegria e consolação que eles me possam dar. Bendito seja o Senhor. Tudo para Vós, meu Jesus. Estou a recordar, passo por passo, tudo o que se passou, dias antes da minha partida para a Foz. A coragem que pedia a Jesus e à Mãezinha, a confiança que neles depositei no meio de tanta amargura. Quatro anos são passados; nada esqueci, todos esses sofrimentos parecem ser de hoje. Meu Jesus, sou a Vossa vítima.

Sinto em mim o ódio do demónio; ele quer matar-me, a fogo e a espada. Ele vê-se agora forçado a deixar o trono do meu coração; teima, faz violência para não sair. Ao ver que não tem remédio senão retirar-se, odeia-me, uiva desesperado. Sinto os seus rancores, ouço o seu uivar.

Na tarde de ontem, senti em mim um mundo de bronze, o qual tinha de ser regado com sangue de Jesus. Fui para a ceia com Ele e com os Apóstolos. Vi novamente a bênção do pão e do vinho que veio a ser o Divino Corpo e Sangue de Jesus. Encantou-me o seu Santíssimo Rosto no momento da bênção, a arder de amor, todo inflamado em fogo, de olhos fitos no Céu. Todos comungaram, até mesmo Judas, que logo ficou como um condenado do inferno, tal era o seu desespero. E quase logo saiu com a saca do dinheiro para O ir vender. Vi o discípulo amado, inclinado sobre o peito de Jesus e sentia os seus corações a palpitar de amor, um pelo outro. Se eu soubesse corresponder ao amor de Jesus e amar como aquele discípulo amado. Seguiu-se depois a despedida de Jesus da Bendita Mãezinha; foi a despedida mais dolorosa. Ficaram esmagados de dor os Seus Santíssimos corações. Foi neste esmagamento, nesta amargura que com Jesus segui para o Horto; com Ele fui lá ainda mais esmagada com a montanha do Calvário e a cruz que sobre nós veio cair. Fui espremida, suei sangue e assim segui para a prisão.

Hoje, cedinho ainda, lá me foram buscar. Levaram-me sem piedade, e logo, com furor rancoroso, me açoitaram e coroaram de espinhos. Com o rosto coberto de escarros assim segui ao Calvário; aqui e além caía, aqui e além, parecia morrer. Novas descargas de açoites, em viagem tão penosa, caíram sobre mim. Cheguei ao cimo do Calvário com todo o desfalecimento. Fui crucificada, e, ao ser a cruz voltada para revirar os cravos, foi meu rosto no solo muito ferido, e uma golfada de sangue me veio aos lábios. Custa-me tanto falar assim! Foi Jesus, não fui eu, que assim foi ferido; mas não sei exprimir-me doutra forma. Levantada ao alto da cruz, senti que Jesus estendeu os seus olhares divinos pelo Calvário, por toda a humanidade. Com esta visão tremi e senti o corpo gelar; não eram os meus que viam, eram os de Jesus, mas com Ele em mim tudo vi e senti. A vista de tanta ingratidão fez com que Jesus levantasse para o Pai os Seus olhares divinos, cheios de compaixão e pedir perdão para os que O feriam; não pediu vingança, desculpou-os. Ficou em extrema agonia e eu com Ele. Quando Jesus expirou eu senti morrer o meu corpo e sentia que uma vida estava separada de mim, mas não me pertencia.

Estive um pedaço sem Jesus me falar; demorou a chegar, ou melhor, a fazer que eu O sentisse e ouvisse. Quando Lhe aprouve, disse-me:

― Minha filha, Minha filha, Minha filha, demorei a chegar, venho desfalecido; fui maltratado, quero refugiar-me. Dás-me entrada no teu coração?

Vi que Jesus vinha como se não pudesse segurar-se, banhado em suor, a escorrer sangue e sem nenhuma beleza. Ao vê-Lo assim exclamei:

― Ó meu Jesus, em que estado Vós vindes! Entrai no meu pobre coração; esta morada não digna de Vos receber, mas já que assim o quereis, entrai e descansai.

― Eu sou a Vossa filha mais pobre e miserável, mas quero cuidar de Vós, quero limpar-Vos as lágrimas e os suores e curar-Vos essas feridas; quero curar-Vos e consolar-Vos, e não sei como. Sou a Vossa vítima. Não Vos digo que aceiteis que eu Vos cure com o meu amor, com as minhas ânsias.

E, com Jesus inclinado sobre o meu peito, fiquei como que a curá-Lo, e a limpar-Lhe o suor e as lágrimas, porque soluçava profundamente. Fiquei como que não soubesse o que mais fazer nem dizer a Jesus, tal era a minha compaixão. De repente vi-O curado, alegre e formoso.

― Alegraste-Me, consolaste-Me, minha filha, já não estou ferido, já Me sinto bem. Sabes quem assim Me maltratou? Foram os sacerdotes, foram os sacerdotes. Obrigaram-Me a descer do Céu à terra, às suas indignas mãos para Me crucificarem em seus sujos corações. Juntaram os seus crimes ao de toda a humanidade ingrata. Se não fossem os teus sofrimentos para quantos já se lhes tinha aberto o inferno e já estavam condenados. Coragem, confia em mim. Dá-Me dor, toda a dor, e não digas que os teus sofrimentos nada valem; valem tudo para as suas almas. Dás-Me tudo que te pedir? Dás-Me toda a dor que te exijo?

― Tudo, tudo, meu Jesus; nada Vos nego. Só Vos peço a graça e a força divina.

― São para o mundo, filha querida; o meu divino coração é amor, só amor, quer abrasá-lo, quer queimá-lo, quer salvá-lo. E é por ti que Eu o abraço, que lhe dou esse amor; e é de ti que Eu Me sirvo para o salvar. Pede, pede oração, pede penitência; diz que é Jesus a pedi-la, diz que é Jesus que pede com urgência. Depressa, depressa, a empregarem-se os meios, a aplicar-se a medicina por Mim indicada. Abre o meu Divino Coração; és senhora dele, tens a chave, dá-lhes entrada. Abre-se o meu divino Coração cheio de amor e misericórdia, para o receber. E abre-se a abóbada do firmamento para sobre a terra culpada, descarregar Meu Pai, a Sua justiça divina. Que escolha. Meu Pai não pode ver-Me ofendido. O que espera o mundo! As nações preparam-se falsamente com armamentos e artes venenosas. Estão a enceleirarem-se, à semelhança da formiga. Acode-lhe, acode-lhe, dá-Me a tua dor. E, com mais vida e coragem ma poderes dar, recebe a gota do Meu Divino Sangue, não mais deixarei de ta dar. Recebe-a por um tubo, formado do meu amor, que será para o teu coração fogo divino, uma transfusão de amor.

O tubo era cor de fogo, a gotinha de Sangue de Jesus caiu no meu coração e nele em todo o peito desfez-se aquele tubo como se fosse uma nuvem. Fiquei a arder e mergulhada naquele fogo doirado. Naqueles momentos tinha a minha alma toda a luz, Jesus não deixou o coração dilatar-se, acariciou-me e deu-me no rosto um ósculo divino.

― Vai sorridente para a tua cruz, vai espalhar este amor, vai infundi-lo nos corações. Tu és um portento de graças e maravilhas do Senhor. És e serás sempre a honra e a glória de Portugal, a luz e a salvação de todo o mundo. Confia, confia. Coragem, coragem.

― Obrigada, obrigada, meu Jesus.

7 de Junho de 1947 – (1º sábado)

Estou sempre com medo do demónio; temo ceder às suas malditas seduções e temo ofender Jesus. Ele continua desesperado contra mim; ouço os seus uivos, sinto o seu ódio. Se ele pudesse derrotar-me, onde estaria eu. Queria levar a minha vida a praticar o bem, a fazer bem a todos. A todos queria consolar e confortar; a todos queria amar e levar comigo para o Céu. Não sei o que sinto; não é o meu coração que anseia isto; não é o meu coração que ama e a todos quer salvar. Que ternura eu sinto, ternura que não é minha! Foi nestas ânsias dolorosas de querer amar e não amar, de querer fazer bem e não fazer, de querer salvar e não salvar, que eu recebi o meu Jesus. Ele bem depressa transformou tudo, serenou-me, deu-me luz e acendeu mais fogo em meu coração, avivando o que já tinha.

― Minha filha, minha filha, hei-de abrasar-te, hei-de queimar-te e consumir-te no Meu divino amor. Tu amas-Me, tu amas-Me e dás às almas o Meu amor divino; criei-te para elas, para as salvares. São tantas a ofenderem-Me, mesmo aquelas consagradas a Mim. Custa tanto ser maltratado por aqueles que se dizem Meus amigos! Como está o mundo! Ai dele sem este calvário! Coloquei-te aqui, crucificada nesta cruz, para que, com esta crucifixão contínua, por ti as almas recebessem as Minhas Divinas graças e amor, por ti elas fossem salvas.

― Ó meu Jesus, como eu sou pequenina, como me sinto envergonhada diante da Vossa divina presença. Queria esconder-me, desaparecer de todos. Quem sou eu e quem sois Vós? Que vergonha terdes-me escolhido para as Vossas coisas, para a missão das almas. Não sei o que fazer, não sei o que dizer; sou a Vossa vítima.

― É assim pequenina e no escondimento, sem estares escondida, que Eu te quero. É nesta pequenez e escondimento que se encobrem as Minhas maravilhas. Minha filha, aqui tens o Meu divino coração e O da Minha bendita Mãe; quero uni-los ao teu; são teus. Os vossos corações são o depósito de todas as graças, de todas as riquezas e amor divino; o teu é o canal por onde elas passam às almas. Todo este amor, todas estas graças se irradiam em ti; transmite-as, infunde nos corações este amor, junta a ele a tua dor, salva, salva o mundo. Consola-Me, consola a Minha Bendita Mãe Oh! como Ela está triste!

― Como hei-de eu consolar o meu Jesus, como hei-de consolar a minha querida Mãezinha! Como pode a escrava consolar o seu Senhor! Eu prometo, Jesus, fazer actos de amor e reparação quantos me forem possíveis, para assim ver a alegria em Vossos Santíssimos Corações.

Que confusão a minha quando recebi das mãos de Jesus os Seus Corações a arder de amor e no mesmo instante o meu juntar-se a Eles. Estavam como a avezinhas no ninho, de biquinhos abertos, sequiosos e famintas. Fiquei com os corações na minha mão, dentro duma taça doirada.

― Diz, Minha filha ao teu Paizinho que todo este amor lhe pertence. Para grande mestre das grandes almas, ele terá sempre para tudo toda a luz do Divino Espírito Santo; e em tudo quanto fizer, não erra; será sempre iluminado e guiado por Ele. Dá-lhe o meu Divino Coração e O da Minha Bendita Mãe, cheios de amor, coragem e confiança. Diz-lhe que estou com ele, e não lhe falto e que é assim que Eu trato as almas que escolho inteiramente para Mim. Diz ao teu médico (que o fiz procurador da Minha divina causa. Que continue a desempenhar a sua missão. Estou contente com ele. Eu encaminho as coisas, guio seus passos, para ele em tudo fazer a Minha divina vontade. Dá-lhe todo o Meu amor com o da Minha Mãe Bendita, na certeza que terá sempre a Nossa protecção em todas as coisas, para ele e para todos os que mais ligados estão por laços de amor no seu coração. Diz-lhe que a prova de quanto o amo está em pô-lo à frente de cuidar daquele que tem na terra a mais alta e sublime missão.) O mesmo digo para aqueles que com ele trabalham, te rodeiam, amparam e cuidam de ti: isto é, para todos aqueles a quem tu mais amas e mais intimamente tens em teu coração. O sinal mais certo de que Jesus e Maria muito as amam é tu amá-los também. Vem, Minha Mãe Bendita, consolar com o teu carinho a nossa filhinha e desabafar com ela as tuas mágoas.

Veio a Mãezinha, na mão direita trazia o Seu Santíssimo Coração e na esquerda o manto; entregou-me tudo e disse-me:

― Minha filha, à semelhança do meu divino Filho, entrego-te o Meu Santíssimo Coração com a chave; abre e fecha dentro dele as almas, para que elas do meu passem ao de Jesus. Eu estou triste com os crimes da humanidade. Há tanta imodéstia! O pecado da carne leva tantas almas às portas do inferno! Há tantas infidelidades nos casados! Que desonestidade! E contra mim são proferidas tantas blasfémias! Negam a Minha Virgindade, negam a Minha dignidade de Mãe de Deus. Promete consolar-Me! Pega o meu manto, cobre com ele o mundo, salva-o que é Meu filho.

― Prometo, Mãezinha, com a graça de Jesus fazer tudo para consolar-Vos e reparar tão grandes crimes.

Veio Jesus, e eu fiquei entre os dois. A Mãezinha beijou-me, abraçou-me, acariciou-me com Jesus. Os nossos rostos e lábios estavam unidos, como unidos tinham estado os nossos corações. Recebi força, recebi amor. Jesus acrescentou: tudo isto farei que transpareça em ti.

― Vai, pomba branca; vai alma fiel, vai tesoureira das riquezas divinas; vai distribuir pelo mundo, vai semear as flores do jardim celeste, nascidas e florescentes em ti. Coragem, coragem!

― Obrigada, meu Jesus; obrigada Mãezinha.

13 de Junho de 1947 – (sexta-feira)

A minha vida é morte; continuo a viver a vida dos mortos. Que imensa sepultura, em que podridão estou sepultada; causa-me nojo, causa-me horror. Sinto-me a ser comida pelos bichos escondidos nesta podridão; sinto-os a mexer e remexer nesta imundice. E não tenho outra vida a não ser esta, nem outra luz a não serem as trevas do meu espírito. Triste cegueira que não me deixa ver senão horrores nojentos, apodrecidos. E eu tanto a amo, abracei-a tanto e sinto não poder estar neste mundo sem ela. Quanto mais me orgulho, mais me quero mergulhar. Quantas mais trevas, mais trevas anseio. Ó amor do meu Jesus, não vivo, não conheço, não vejo; as coisas do Senhor não mas mostram a minha cegueira, as minhas trevas. Não posso pensar que não amo a Jesus e tanto anseio amá-Lo e fazê-Lo amado pelas criaturas. Quero subir para Ele e caio. Não me revisto Dele nem das Suas coisas; nada compreendo do que é do Céu. Que pobre e ignorante que eu sou! É por isso que eu sofro e quase me chego a persuadir que a minha vida, de tudo o que diz respeito às coisas do Senhor é uma ilusão minha; não digo intrujice porque não quero enganar ninguém. Como pode Jesus descer do mais alto ao mais baixo? Bendito Ele seja.

O demónio tem lutado para me levar a praticar tantos males; só com a graça de Jesus poderei resistir. Sinto-me como se fosse por ele arrastada para a maldade, para os vícios. Parece-me que estou revestida dele e de tudo o que a ele pertence. Não tive os combates apesar de os esperar, porque a grande tormenta que ele me causava me levava a crer que ele viesse. Mas nem por isso deixei de sofrer, ao sentir-me por ele arrastada, seduzida para tantas coisas fracas e parece-me que estou dele revestida e mergulhada em todos os tormentos do inferno. Se ao menos com os meus sofrimentos evitasse o pecado! Se com tudo isto, eu amasse a Jesus e O visse em todos os corações amado! Tenho vivido, nestes dias, sem procurar viver, a minha vida de há quatro anos na Foz. Como eu recordo todos os sofrimentos, gestos e palavras. Está tudo tão gravado em mim e tão profundamente, que jamais se apagará. Tudo isto por amor do meu Jesus e às almas; e nem mesmo assim O amo e as salvo. Meu Jesus, que pena eu tenho de não Vos pertencer inteiramente. Lembro com profunda dor e vivas saudades o Santo Sacrifício da Missa. Já aos anos que eu a não tenho no meu quartinho! Não voltarei a ter este mimo do Céu? Estou pronta, Jesus, para em tudo ser a Vossa vítima. O meu coração, o meu espírito voa a Roma; não só acompanhando os que já partiram para lá, mas também para já estar junto de Sua Santidade para implorar e receber dele aquilo que não sabe, mas que anseia e sabe que só dele virá. Pobre de mim! Tudo anelo e nada possuo a não ser miséria.

Ontem, logo que caiu a tarde, senti como se me tirassem um vestido mundial, que me tornou o escândalo de toda a gente, tal era a podridão, de que ele era feito. E assim vestida vergonhosamente, segui e cheguei ao Horto. Ali, desceu o Céu, a esmagar-me, e toda a humanidade a rasgarem-me e a arrancarem-me do corpo todos os nervos e veias. O que ali sofreu Jesus, dentro em meu pobre corpo, que tinha o Horto, o Calvário, a cruz e a morte! Ao receber o beijo de Judas vi, não o meu rosto, mas o de Jesus e o dele muito unidos, e fiquei a sentir, por muito tempo, que aquele beijo, ingratidão e traição se iam repetir, através de todos os tempos. Oh! Como transbordou o cálice da amargura, enchido de sangue inocente.

Na manhã de hoje caí desfalecida ao pé da coluna; recebi a chuva de açoites, que sobre mim foi descarregada, e vi Jesus, dentro em mim, no mesmo sofrimento, de olhos fitos no Céu, em sinal de oração a Seu Eterno Pai. Fui coroada de agudíssimos espinhos; tomei a cruz, segui o Calvário; saiu-me ao encontro a Mãezinha. Que dor senti com o seu pranto e dor! As lágrimas que no Seu rosto corriam, corriam-me no coração. Em todo o percurso do Calvário não perdi mais a união com Ela. Eu não arrastava só a cruz, arrastava-A também a Ela, ou melhor, arrastava a Sua dor. Mais adiante veio a Verónica com todo o sentimento de amor limpar o rosto de Jesus gravado no seu. Jesus deixou-Lho imprimido como recompensa, ela apertou-o ao coração como o maior tesouro e na verdade o era. Se eu soubesse amar a Jesus como a Verónica O amou! Se eu assim O abraçasse para não mais O deixar! Ó meu Deus, ó meu Jesus, pobre de mim que nada sou e nada sei! Cheguei ao Calvário; caído ao pé da cruz, antes de nela ser crucificada, nova descarga de pancadas feriu e despedaçou mais o resto das minhas carnes. No alto da cruz não senti outra coisa a não ser Jesus com os Seus olhares divinos a ver todo o mundo, toda a ingratidão e com a vista do corpo fitar o firmamento a orar e a desculpar-nos a Seu Eterno Pai. Agonizou, expirou e eu com Ele. Tão depressa morri que logo vivi; foi Jesus que me deu a vida, chamou-me e disse-me:

― Vem, Minha filha, ao Meu amor, ao Meu divino coração é o dia dele; vem gozar do Céu, vem receber amor. Eu quero-te pura, sem manchas; quero-te digna de Mim. Esforça-te, corrige-te, de todos os teus defeitos. Dizia-te até agora que precisava das tuas faltas para Me esconder; agora digo-te: não as quero para mais Eu em ti aparecer. Quero que tudo o que é Meu em ti transpareça; quero que os teus olhares tenham a pureza dos Meus; quero que os teus lábios tenham o sorriso, a doçura dos Meus; quero que o teu coração tenha a ternura, a caridade e o amor do Meu; em suma: quero que em tudo Me imites, quero-te semelhante a Mim; quero que todo o teu corpo seja o Corpo de Jesus, um outro Cristo. És a nova redentora. Quero-te pura, pura com a Minha mesma pureza, quero-te digna de Mim, quero-te preparada para voares ao Céu. A dor e o Meu divino amor purifica-te; a dor e o Meu divino amor são de salvação para as almas. Vou ferir-te o coração; vai ser aberto pelo anjo S. Gabriel, para, depois, por essa abertura, por essa chaga trespassarem os raios do sol, os raios do Meu amor, para dele passarem ao mundo, passarem às almas. Antes disso, quero injectar-to de amor, quero preparar-to para receber o golpe. Em todo este tempo gozarás do Céu, gozarás do Paraíso; Jesus, no mesmo instante, não sei com quê, regou-me o coração com uma chuva miudinha doirada; aquela chuva causticou-me e parecia-me tê-lo separado do corpo[2].

Ao meu lado direito estava a Mãezinha, à frente, Jesus, e, à esquerda, o Anjo com uma lança na mão. Por cima de nós e em nós desceu o Céu com todo o seu azul, guarnecido de Anjos; muito no cimo, um grande trono da SS.ma Trindade. Tudo era luz, gozo, doçura e amor. A vida do Céu! A vida das almas! Vivia-se ali, mergulhada naquele amor de gozo, parecido com uma nuvem ou fumo branco, que por si se sustenta e conserva no ar; era um nadar de doçura. A um sinal de Jesus, o Anjo levantou a lança, cravou-ma no coração; trespassou-mo, dum lado ao outro; não senti dor. No mesmo momento que ele retirou a lança, vieram do coração de Jesus para o meu muitos raios de amor mais belos que ouro, mais brilhantes e encantadores do que os raios do sol ao nascer. Trespassaram-me todo o coração esses raios, e pareciam reflectir-se no mundo e nele se espalharem. É indizível o gozo e o fogo que eu senti. Disse-me, do lado, a Mãezinha.

― Minha filha, Minha filha, salva o mundo, salva os meus filhos, salva-os comigo, salva-os com Jesus. Coragem, muita coragem, Eu serei contigo! Já reflectiste que faço do teu quarto a Cova de Iria? Já reflectiste que, como em Fátima, aqui desço todos os meses, não falando nas vezes que, como hoje, venho a convite do Meu Filho? É para te dar conforto e encorajar. Recebe as minhas carícias.

Apresentou-me Jesus uma cruz, pôs-me sobre ela; por trás Dele estava outra, era a de Jesus.

― Minha filha, a alma, que sofre por amor, goza na cruz. Aqui a tens; é tua no Céu, é tua na terra. Em tudo te assemelhas a Mim. A Minha acompanhou-me do nascimento ao Calvário, e aqui a tenho resplandecente no Céu. Recebe a gota do Meu Divino Sangue. Recebe a vida, leva a vida, dá-a às almas. Não contes, filha querida, acudir-lhes aos corpos; o mundo não se regenera, não há emenda de vida, tem de ser punido, tem de cair sobre ele a justiça de Meu Pai. Mas prometo-te que a tua nobre missão será desempenhada com todo o brilho na terra e no Céu. Confia, confia; as almas por ti são salvas.

Recebi de Jesus o Seu Sangue Divino, que caiu do Seu Coração para o meu. Deixei de ver os Anjos, a Mãezinha, o Céu; ficou só Jesus. Disse-Lhe ainda com o coração a arder:

― Ó meu Jesus, eu não temo a cruz, temo a minha miséria. Com a Vossa graça divina suportarei todo o peso que me esmaga. O que eu não sei, meu Jesus, é como me hei-de tornar digna de Vós. Eu, Jesus, eu, meu amor, eu, a mais pobre e indigna das Vossas filhas temo e tremo.

― Coragem, esposa amada! És pequenina para seres grande; sentes-te horrorosa para seres Formosíssima. Essa podridão é do mundo, não é tua. Coopera Comigo, Eu tornar-te-ei digna de Mim, farei que tenhas toda a graça e pureza, que de ti exijo. Vai contente e alegre, vai para a cruz.

― Obrigada, meu bom Jesus; dizei por mim um outro obrigada à querida Mãezinha. Eu vou para a cruz, só por Vosso amor e por amor às almas. Mas vou ainda confiada que hei-de vencer o Vosso Divino Coração e Vós vencereis o Vosso Eterno Pai, para que o mundo seja poupado à Sua justiça Divina.

Ai, meu Deus, o tempo passa, foge e eu sem virtudes, sem amor. Que pobreza a minha! Quando recordo o tempo, que passei neste colóquio, sinto-me mais forte. Oh, como Jesus é bom!

20 de Junho de 1947 – (sexta-feira)

As minhas trevas aumentaram tanto, tanto, que sinto, como se me tirassem a luz da eternidade. Se lembro o purgatório, medito no Céu, tudo são trevas, tudo é cegueira. Ó meu Deus, até mesmo a luz do paraíso se apagou. O mesmo se dá com as ânsias de amar a Jesus. São tão fortes! Aumentam tanto! Assim como aumenta o sentimento de O não amar, de não conhecer o Seu divino amor e de O não fazer amado. Derreto-me em desejos, em ardentes ânsias de O conhecer, de O amar, de O possuir, e nada consigo. Ó Jesus, como tudo isto fere profundamente o meu coração e dilacera todo o corpo até o destruírem, como se fossem dentes de ferro! Tudo por Vosso amor, meu Jesus, e pelas almas. Aceitai como se, a cada momento, me oferecesse a Vós como vítima. Tanto queria ter que Vos dar, meu Jesus, e amar-Vos até à loucura! Mas, ai! Pobre de mim, que nada tenho, e tudo o que é Vosso se me apaga. Quanto eu sofro, quanto eu sofro! Por Jesus querer que eu me corrija dos meus defeitos e me torne digna Dele, eu não sou capaz de me emendar, de uma vez para sempre, e nunca, por mim me poderei tornar digna de Jesus. O que hei-de eu fazer, Senhor? O que posso eu esperar, a não ser confiar em Vós, que podeis fazer de mim um instrumento, digno de Vós manejardes. Quero esconder-me, quero fugir para onde nunca mais possa ser vista. Não quero saber do mundo nem de nada, que nele existe. Se houvesse um lugar, onde pudesse esconder-me, para só sobre mim os olhares de Jesus, para só Nele pensar, Dele falar e para Ele viver! Que medo tenho do mundo e das criaturas! A minha alma sente que de alguma coisa, a meu respeito, se vai tratar, que muito se tem falado e se vai falar. Ela está com isso apavorada. Que ao menos Jesus se sirva de tudo isto, para reparar tantas ofensas, feitas ao Seu Divino Coração e ao Coração Imaculado da querida Mãezinha. São tantos os espinhos que me ferem! Jesus de tudo se serve para me martirizar. Bendito Ele seja.

O demónio tem trabalhado com todo o interesse para levar-me ao mal. Como ele trabalha para a perdição das almas! Com as suas maldosas lições estava sempre a temer os seus assaltos. Passaram-se uns dias e noites só com as ameaças. Veio na madrugada, veio com todo o furor e maldade diabólica. Todo o meu corpo parecia ser demónio. Por serem graves as coisas, que ele me apresentou, entendo não devê-las explicar aqui. Ele vinha com lanças nas mãos; entendi que era para cravar no Coração Divino de Jesus. Ao segundo combate, interveio Jesus, obrigou-o a retirar-se, disse-lhe: afasta-te, maldito, já tenho da Minha vítima a reparação, que desejava. Estava cansada, em suores; o coração batia aflitivo. Por vezes tinha repetido a oferta de vítima, chamando por Jesus e pela Mãezinha, não com o fim de me virem falar, mas sim para me acudirem, para eu não pecar. Ai, como são dolorosos estes combates! O demónio fugiu; a dor ficou com o grande receio de ter pecado.

Na tarde de ontem, vi o Horto com toda a dor. Digo vi, mas foi a alma que senti e viu as oliveiras, que iam ser testemunhas de tanta agonia, e o lugar, e o solo que ia ser ensopado com o suor de sangue. Aquela visão deixou-me o coração a sangrar e o espírito em negras trevas. Ao anoitecer, senti o Judas com o seu rosto tão gravado em minha alma, parecia que estava ali retratado com o seu rosto desesperado, com olhares e cabelos aterradores. Ao terminar da ceia, senti como se a Mãezinha beijasse e abraçasse, pela última vez Jesus. Que doçura era a dela! Que triste foi a despedida! Oh! Como falavam um ao outro aqueles corações. Cheguei ao Horto, ali desceu sobre mim a justiça do Eterno Pai, como se fosse um fogo vingador. Tinha nas mãos o cálice, que com tal justiça transbordava fora. Veio um Anjo, em tamanho natural, e pôs-se ao lado de Jesus, que estava em mim, como que ampará-Lo. Fui presa com Jesus, e para esta prisão vieram tantos, tantos homens com paus; com seus escárnios e maus-tratos, nos acompanharam, à presença dos pontífices e à prisão! Quando Jesus estava já lá sozinho, eu sentia a Sua tristeza, enfraquecimentos e suores, que LHE banhavam o corpo. Lá O deixei até hoje.

De manhãzinha, da prisão vi o Calvário e a cruz; segui para ele com ela. A meio do caminho, foi tão grande a queda e a descarga de açoites que sobre o meu corpo caíram! Foi tal a crueldade e o rancor com que fui arrastada pelas cordas a tão grande distância! E se eu fosse arrastada sozinha! Mas ia Jesus comigo. Que pena a minha! Crucificada na cruz, depois de muitos insultos e blasfémias, senti a esponja passar-me nos lábios e senti, antecipadamente, a lança, que abriu o lado e atravessou o Coração divino do meu Jesus. Ó dor, ó dor indizível! Depois de tudo isto, eu sentia Jesus como que a querer despregar os braços da cruz para abraçar o Calvário, abraçar o mundo, que assim O feria. Que doçura e amor saíam daquele coração divino aberto. As lágrimas da Mãezinha corriam dentro de mim. Nesta dor, neste mar de ingratidão expirei com Jesus. Ele não se apressou em vir ressuscitar-me. Ao dar-me a vida, disse-me:

― Minha filha, a cruz é sinal de predilecção; a cruz é selo dos Meus eleitos. Aqueles a quem mais amo, aqueles que escolhi para Mim, para serem grandes na terra e no Céu, embora deseje vê-los pequeninos a Meus divinos olhos, são os que mais dores, tristezas e amarguras recebem, enviadas por Mim. Assim é, Minha querida filha, porque muito te amo, porque te amo sobre todas as criaturas da terra, muito te faço sofrer. Amas sem igual, sofres sem igual. Todo aquele que quer e ama o sofrimento, quer e ama a Mim. Tu amas-Me; confia. Apago em ti as Minhas coisas, faço-te sentir que não Me amas, para mais Me ansiares, para mais Me possuíres. Se soubesses como Me alegro e consolo com as tuas ânsias de amor! Como prémio desta consolação e desempenho da tua missão sublime, tens o Meu divino amor com toda a abundância, possui-lo com a maior intensidade, que uma criatura humana pode possuí-lo; tens todas as Minhas graças, todas as Minhas riquezas, todas as maravilhas celestes. Dou-te o poder, Minha filha, dou-te esta promessa: podes a todos quantos te pedirem a fé, a graça e a conversão, dar o Meu divino amor; enfim tudo quanto for para a alma, podes, em Meu nome, dizer: tudo receberás; sim, Minha filha, por ti tudo lhes será dado. Criei-te para lhes dares a vida e a saúde das almas e não a dos corpos, não é essa a tua missão, mas isto não impede que Me peças a sua cura. Quantos por ti têm recebido a cura dos corpos e ainda receberão. Mas a das almas, a missão para que te criei, se tu soubesses, Minha querida, a transformação, as curas prodigiosas que neste Calvário, neste quartinho se tem operado! Coragem. A tua cruz dá o brilho às almas, é luz que irradia por esse mundo além. Dá-Me dor, dá-Me dor, Minha filha; se não fosse ela, oh! como Eu hoje já tinha sido ferido! A reparação que te pedi, foi pelos sacerdotes. Pedi-te a reparação para não precipitar alguns no inferno. Dá-Me dor, deixa que a tua cruz raie no mundo como raios de sol dourado. Nela vives, nela morrerás, e no Céu brilhará com todo o resplendor.

― Meu Jesus, sinto-me pequenina, dia a dia me afundo mais. Vede quanto eu sofro, ao ouvir-Vos dizer tantas coisas. Vede quanto eu sofro, por não me recomendar dos meus defeitos, como Vós desejais. E vejo, meu Jesus, que nunca por mim me poderei tornar digna de Vós. O que hei-de eu fazer, meu Senhor, senão pedir-Vos com toda a alma e coração para que ponhais em mim toda a Vossa dignidade e depois dizer-Vos: descei, Jesus, já sou digna de Vós com o que é Vosso. Tende dó de mim ó meu bom Jesus; não sei o que hei-de fazer, não tenho forças para mais.

― Que grande meio Eu consegui, Minha querida filha, para te fazer sofrer. Nada temas, tem coragem! É verdade que te quero pura, pura só para MIM, para Eu mais poder aparecer, mas Eu encarrego-Me de suprir o que te falta; não te deixo resvalar. E tu, nessa ansiedade de em todas as tuas palavras, acções e de em todo o teu viver, seres pura, vais subindo, subindo, mais te aproximas, mais te unes a Mim. Fala, Minha filha, fala da vida interior, da vida íntima comigo, dá-a às almas, ensina-lhes esta vida íntima que tanto Me agrada, de que tu só sabes viver; é a gota do Meu Divino Sangue. Vem, deixa-Me unir o Meu Divino Coração ao teu.

Jesus tomou o Seu divino Coração, colocou-O sobre o meu, a gotinha do Seu preciosíssimo sangue caiu, mas Jesus não levantou do meu o Seu divino Coração; ficaram unidos o Coração de Jesus e o meu, como se fosse um só coração e Jesus continuou:

― Vais ficar por algum tempo nesta união; recebe de Mim toda a vida e conforto, bebe, bebe, saboreia este amor, sacia a tua sede; vai repartir, deixa-a transparecer a todos quantos de ti se aproximam, infunda-a nas almas, reparte, semeia. Fala-lhes da Minha bendita Mãe, do Seu amor, da Sua protecção, do quanto é necessário reparar o Seu Santíssimo Coração. É com ela que tu salvas as almas; sim, só as almas; os corpos já não contes, Minha filha. O mundo, o mundo, que ingrato, que cruel; perde-se, está louco, está louco a ofender-Me. Vai depressa para a tua cruz, para a cruz, que te espera, que é cruz de salvação. Dá-Me dor, dá-Me dor, dá-Me dor para morreres de amor.

― Dou-Vos dor, dou, meu Jesus; dou-Vos tudo quanto Vos aprouver pedir-me. Vou para a minha cruz, e vou contente; vou, mas vou ainda confiada. Quero as almas, quero as almas, mas, se puder ser também os corpos. Ó meu Jesus, sou a Vossa vítima. Sede comigo, e aceitai o meu eterno obrigada. Fiquei por muito tempo a sentir o Coração divino de Jesus, unido ao meu, e sentia-me mais forte.

27 de Junho de 1947 – (sexta-feira)

Tenho que fugir, tenho que esconder-me, e não sei onde; não posso estar aqui. Que horror me causa o mundo com as suas coisas, com os seus habitantes! Para onde fugir, meu Jesus? Onde poderei esconde-me, a não ser no Vosso divino Coração? Mas a, pobre de mim, não tenho força, não sou digna de ser recebida por Vós. Estou cansadíssima, morro com ânsias de amar o meu Jesus. Quanto mais anseio, quanto mais peço, menos compreendo, menos conheço o Seu Divino amor. Sinto-me a morrer faminta e sequiosa; não encontro o que anseio; nem eu mesmo sei o que a minha alma deseja. Quero levantar-me e voar, voar ao alto, ir ao encontro da fonte em que anseia beber. As minhas trevas que eu amo e abraçai, estão em indizível aumento. Este voo, que eu anelei, vai, de momento a momento, ao Seu encontro. Tudo são trevas debaixo da terra, na terra, no ar, no firmamento. A minha alma ainda continua a alguma coisa querer de Roma. O meu coração está unido, preso por assim dizer ao Santo Padre; espera e confia que dele tem muito que receber.

Foi-me dado o gosto, por pessoa muito querida, de eu ouvir pela rádio a canonização de S. João de Brito. Ouvi Sua Santidade falar; sentia, tanto ao vivo, a presença de nosso Senhor nele, que me parecia ser a voz do próprio Jesus. Assisti à Santa Missa; ai, nem sei dizer o meu contentamento. Há quase seis anos que não tinha tido essa dita. Pedi tantas coisas a Jesus! Pedi-Lhe tudo o que era Dele para os que me são mais queridos, para a minha família, para todos os que às minhas pobres orações se recomendam, e por fim para o mundo inteiro. Ao ouvir o que se passava em Roma, lembrava-me do Céu, sim do Céu que em nada se pode comparar com as coisas da terra. Oh! Como eu acompanhava tudo isto! Com o sorriso nos lábios, satisfeita pela que ouvia, mas na dor mais profunda que se pode imaginar; o coração estava triturado e alma acompanhava, como que a chorar, o meu sorriso. Não se passou um momento sem ele sentir que ela chorava. As lágrimas da alma, a dor do coração eram imensamente maiores do que o contentamento e o sorriso dos lábios. Este contentamento e sorriso eram como que coisas humanas, que apesar de serem em mim, pareciam não me pertencerem. Por tudo louvei o Senhor e bendisse a minha cruz. Quero deixá-Lo desfazer-me em dor, para consolá-Lo e salvar-Lhe as almas. O que hei-de fazer, meu Jesus? O que daria eu por uma só alma! Sou pobre, dai-me a Vossa riqueza para com ela Vo-las comprar. Estou insatisfeita, sem ter que dar e sem saber falar para Jesus. Estou cheia de medo, sem saber de quem e porquê. Sinto que nova descarga de sofrimentos vem sobre mim; abro os braços para receber novos cravos; fito os olhos em Jesus para Dele receber conforto e para que Ele seja em mim o sinal d aceitação a tudo.

Ontem à tardinha, o meu coração revestiu-se doutro coração; este coração era mundial; estava nojento, negro de podridão; com ele ficou o meu escondido. O coração mundial cravava para dentro do seu muitas setas, muitas lanças. Principiou a minha agonia, sem nada dar a conhecer. Fui para a ceia e da ceia para o Horto. A caminho dele seguiam-me os Apóstolos, cansados pelas grandes maravilhas e coisas que tinham visto e ouvido de Jesus. A viagem foi silenciosa, mas, naquele silêncio, quantas coisas lhes dizia Jesus; como os amava e lhes falava naquele silêncio aquele divino Coração tão oprimido pela dor e também pelo cansaço! Por entre a escuridão das oliveiras, Jesus apressou o passo, foi para a gruta orar. Os apóstolos adormeceram. Sentia a aflição, o suor de Jesus, o palpitar do Seu divino Coração, espremido não sei por quem até dar sangue, que encheu até transbordar o cálice, que em Suas divinas mãos estava. Jesus ía a desfalecer; veio um Anjo amparar-Lhe o braço, que sustentava o cálice. Sentia a grande conformidade e aceitação de Jesus com a vontade do Seu Eterno Pai, e, nesse momento, os Seus divinos olhos estavam fitos no Céu; sentia-os na minha alma como dois sois ao raiar. A justiça divina caía, não sobre o coração podre, mundial, mas sim sobre o que por dentro estava, tão ferido pelo de fora. Fui cheia de maus-tratos para a prisão. Hoje, senti-me sempre com a cruz em todo o caminho do Calvário. Que escuridão; que desfalecimento; como eu ía oprimida pela cruz! Como o meu rosto foi ferido e o corpo pelas lajes arrastado; só perto da montanha me foi tirada a cruz, mas eu sentia-me como se sempre levasse o seu peso. Fui crucificada e levantada ao alto; nova chuva de sangue saiu das feridas dos espinhos, novamente profundas e alargadas. Não era a minha cabeça, era a cabeça sacrossanta de Jesus que eu sentia em mim. Esta dor veio tirar mais a vida do meu coração, já quase moribundo; para melhor me fazer compreender foi o coração divino de Jesus e não o meu. Sentia Jesus beber todo o sofrimento do Calvário tão sofregamente, que não levantou dele Seus divinos lábios; era a fonte de remissão e de salvação; queria bebê-la até ao fim. Que loucura de amor Jesus tem por nós! Com Ele enlouqueci, agonizei e expirei. Ele veio depressa; desceu como que numa nuvem que logo nela me absorveu. Jesus vinha resplandecente de glória, tudo eram raios de luz os quais logo penetraram todo o meu corpo.

― Minha filha, anjo de pureza, venho a ti, cheio de amor. Que grande reparação e consolação tenho tirado do teu sofrimento! Que beleza a tua alma; como ela se tem purificado! Com o teu esforço e desejo de emenda dos teus defeitos, como te tens tornado digna de Mim. Feliz a alma, ditosa a alma, que se deixa guiar, moldar e trabalhar pelo Artista divino. Como está rica! Eu trabalho e tu cooperas com o Meu trabalho. Escuta o que Eu te digo, Minha querida, esposa fiel, mensageira de Jesus. Venho hoje, na última sexta-feira do mês do Meu divino amor, dar-to com toda abundância. Ó maravilha, dou-to e faço o milagre de aguentares com ele. Daqui em diante, ocultarei mais as Minhas divinas palavras; será, como há tempos te prometi, um êxtase mais de amor. Mas, nem gozando deste amor, estarás sem dor. É um meio que Eu uso, filha querida, de esconder para ti as Minhas graças, as Minhas riquezas, as maravilhas prodigiosas, que opero em tua alma. Assim posso evitar qualquer falta da tua fraqueza, por mais leve que ela fosse; assim posso tirar para as almas grande proveito. Promete-lhes, promete-lhes, em Meu nome, a salvação, o perdão das suas culpas, a graça de não Me ofenderem; promete-lhes tudo o que é Meu, àqueles que o quiserem receber. Espalha, transmite, irradia todo esse amor, que hoje te dou. Criei-te para elas, por ti lhes dou tudo.

Quando Jesus disse que me dava todo o Seu divino amor, saíram das Suas divinas chagas e da Sua sacrossanta Cabeça, das feridas dos espinhos raios de fogo como raios de sol. Do Seu sagrado lado, da chaga do divino Coração vieram uns poucos de raios, juntos de encontro ao meu, vieram como setas que me feriram, e, ao mesmo tempo, abrasaram. Embebida naquele amor pareceu-me deixar; ao mesmo tempo que gozava, sofria; o coração ardia, todo o corpo parecia nadar em amor, mas a alma chorava e que dorida que ela estava. Meu Jesus, por que é que eu gozo e choro ao mesmo tempo? Pode mais a dor do que a alegria, por que é, meu Jesus?

― Minha filha, minha filha, quero que sofras no gozo por aqueles que nos prazeres se satisfazem e alegram. É sempre um meio de acudires às almas e de em ti esconder as Minhas maravilhas.

― Meu Jesus, a minha alma chora como chorava ao ouvir o que se passava em Roma. É sempre o mesmo fim que tendes em vista?

― Não, Minha filha, as lágrimas da tua alma serão um dia a alegria, a honra e a glória, não só de Roma, mas sim de todo o mundo e mais ainda de Portugal. Não virá longe esse dia; que grande triunfo no Céu! Dá, esposa Minha, tudo às almas, sofre por elas, salva-as.

― Meu Jesus, não quero fazer-Vos uma pergunta, mas queria dar o conselho que me foi pedido. O que hei-de dizer? Não quero nada contra a Vossa Santíssima vontade.

― Fala, Minha querida, falará contigo o divino Espírito Santo. É chegada a minha hora, os caminhos estão-lhe abertos, já não posso estar mais tempo ferido. Vem receber agora a gota do Meu divino Sangue, o Sangue que é a tua vida, o Sangue que é a vida das almas, o Sangue que corre em tuas veias, o Sangue de Cristo na sua crucificada. Quantas almas há, Minha filha, que se possuíssem este Sangue o guardariam como as mais santas relíquias. Vais recebê-las por um tubo feito do Meu divino amor. Será por este tubo que sempre o receberás.

Jesus tomou um tubo doirado, introduziu-o em meu coração, e sobre ele colocou o Dele. A gotinha do Sangue caiu, o meu ficou a dilatar-se; Jesus logo retirou o Dele, e, no mesmo momento, ficou ao meu lado cravado numa cruz. Ao vê-Lo assim, logo parou a dilatação.

― Minha filha, Minha filha, é sempre na cruz crucificada comigo que Eu te quero; é sempre a dor que te peço; dá-Me dor, salva-Me as almas; vive na cruz, nela morrerás, mas abrasada em amor, Eu to prometo, é Jesus que to afirma. Coragem! Eu estarei sempre contigo. Dá-Me dor; acode ao mundo, perde-se, está em perigo.

― Obrigada, meu Jesus. Sou a Vossa escrava, sou sempre a vítima do Vosso divino amor e das almas. Dai-me graça, dai-me força, não me deixeis um momento sozinha.


[1] Parece haver algumas deficiências na cópia do texto que estamos a utilizar.
[2] Compare-se esta narrativa com aquela que fez Santa Teresa de Ávila, beneficiada com a mesma visão e ferida da mesma maneira:

« Via um anjo ao pé de mim, para o lado esquerdo, em forma corporal, se o que não costumo ver senão por maravilha. Ainda que muitas vezes se me representam anjos, é sem os ver, senão como na visão passada, que disse antes. Nesta visão quis o Senhor que o visse assim: não era grande mas pequeno, formoso em extremo, o rosto tão incendido, que parecia dos anjos mais sublimes que parecem todos se abrasam. Devem ser os que chamam Querubins, que os nomes não mos dizem, mas bem vejo que no Céu há tanta diferença duns anjos a outros e destes outros a outros, que não o saberia dizer. Via-lhe nas mãos um dardo de oiro comprido e, no fim da ponta de ferro, me parecia que tinha um pouco de fogo. Parecia-me meter-me este pelo coração algumas vezes e que me chegava às entranhas. Ao tirá-lo, dir-se-ia que as levava consigo, e me deixava toda abrasada em grande amor de Deus. Era tão intensa a dor, que me fazia dar aqueles queixumes e tão excessiva a suavidade que me causava esta grandíssima dor, que não se pode desejar que se tire, nem a alma se contenta com menos de que com Deus. Não é dor corporal mas espiritual, embora o corpo não deixa de ter a sua parte, e até muita. É um requebro tão suave que têm entre si a alma e Deus, que suplico à Sua bondade o dê a gostar a quem pensar que minto ». (Livro da Vida, cap. 29-13)

 

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