"Deixai que a vossa vítima seja esmagada por vosso amor!..."
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"Que tremenda e aterradora é a Justiça divina!"
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Capítulo 19
SOB A IRA
DE DEUS
Para que
sobre os pecadores não caia a ira de Deus a esmagá-los, como eles
merecem, tem a vítima que suportar de algum modo os efeitos dessa ira
divina, à imitação de Cristo no Horto prostrado por terra e a bradar: "Pai,
se é possível, passe de Mim este cálice!" O mais amargo da Paixão de
Cristo foi ver-se como que objecto dessa ira, por ter tomado sobre si
tudo aquilo que no mundo a provoca: os nossos pecados. Por isso
sentia-se como que abandonado, repelido por seu Eterno Pai: "Meu Deus,
meu Deus, porque me abandonastes?"
As
grandes vítimas tomam parte nessas aflições máximas de Cristo para
completarem o que falta à sua Paixão: Adimpleo quae desunt passionum
Christi in carne mea: Completo na minha carne o que falta aos
sofrimentos de Cristo (Col 1,24). Não admira então que
encontremos nos escritos da Alexandrina tantas passagens em que a vemos
debaixo dessa ira de Deus.
A 2.3.39,
mostra a saudade que sentia por não ter podido comungar, na ausência do
Pároco:
O não comungar é ainda para maior martírio. Ai, quanto
sofre a minha alma!
Ó meu Jesus, e quanto sofreste Vós por mim! Deixai que a
vossa vítima seja esmagada por vosso amor!...
Meu Paizinho, no momento em que pronunciei esta palavra,
rolei pela cama. Todo o peso da justiça divina caiu
sobre mim. Bradava-me Nosso Senhor:
— Vingança, vingança! A justiça de Deus tem de
satisfazer-se na vítima da Humanidade!...
— Tudo, tudo, meu Jesus que for do vosso divino agrado,
mas salvai o mundo. Mas não me falteis com o vosso
divino auxílio; sem Vós nada posso.
É impossível explicar a aflição e o medo destes momentos
e o estado em que me deixa a minha alma. Que noite tão
tremenda! Não posso falar mais.
A 3.4.39:
No fim de
comungar, caiu sobre mim o peso esmagador, o aniquilamento e Jesus
bradava-me:
— Infame, cruel, não correspondes às graças do teu Deus,
do teu Criador!
Miserável: olha a tua miséria. Toda a miséria da
humanidade é tua: toda a gravidade dos seus crimes. Que
vergonha! Paga-me.
Agora digo eu: que vergonha, que medo eu sentia do
Eterno Pai!
A aflição da minha alma não a posso explicar. Sentia no
meu interior necessidade de me esgaçar toda, de aflita.
Eu era retalhada ao fio da espada. O meu coração era-me
arrancado fora, mastigado com dentes, até estar bem
desfeito e lançado fora.
Com a aflição e o medo apetecia-me desatar em choro mas
não chorei. A tristeza e a dor continua a fazer-se
sentir.
Quatro
meses depois, a 22.7:
O meu Jesus continua a ralhar-me; continuo a rolar na
cama.
Meu Deus, meu Deus, como eu tenho medo!
Hoje dizia-me assim:
— Cruel! Insensata! De ti esperava tudo: desprezaste-me,
calcaste aos pés o alimento da tua alma e de todas as
almas. Desafias com os crimes mais horrendos a justiça
divina. Criei-te para mim, desprezaste-me; abandonaste o
teu Deus, o teu Criador: és digna de morte, és digna de
inferno!
Que grande aflição eu sentia na alma e no corpo! Tais
eram os arrancos que eu dava que parecia que ficava tudo
em bocadinhos. Custa tanto suportar a ira de Nosso
Senhor! O abandono dele e de todos!...
No dia
seguinte:
Já que hoje tenho portadora, não posso deixar de lhe
dizer umas palavrinhas de Nosso Senhor que me causaram
extrema agonia na minha alma. Sentia que mãos imundas me
apertavam a garganta; e Nosso Senhor dizia-me:
— Maldita! Satanás é o teu senhor. Expulsaste-me a Mim,
para ele te possuir. Ele quer instalar-te em corpo e
alma no aposento dele que é o inferno: és digna dele! As
tuas paixões desregradas to fizeram merecer.
Converte-te: ouve a voz do teu Deus; deixa-me de novo
tomar posse do teu coração, para poderes ser digna da
minha mansão celeste. Para que Eu te possa instalar lá,
arrepia caminho!
O meu coração estava duríssimo e não queria ouvir a voz
de Nosso Senhor: Ele irritado contra mim, deixava cair o
peso de sua justiça e dizia que me esmigalhava:
— Olha o caminho que trilhas; olha como Me tratas, os
maus-tratos que me dás. Converte-te, converte-te, porque
te quero para Mim!
Todo o meu corpo ficava alanceado; mas não valeu nada o
chamamento de Nosso Senhor: fiquei morta por completo...
— Meu Jesus, é tudo por Vós; aceitai a minha desolação e
os meus dolorosos e tristes sofrimentos, para
reconciliar e abrasar no vosso amor todos os vossos
discípulos; sou vítima deles: aceitai-me, Jesus.
A
6.12.39:
O meu Jesus hoje estava muito zangado comigo. Antes de O
receber, estava numa noite escura e o meu coração
amargurado de dor. Parecia-me que não valia nada o que
orava nem tudo o que fazia.
Depois de O receber, por uns rápidos momentos,
iluminou-se um pouquinho a alma; varreu-se a tempestade
e fiquei em paz: foi para voltar mais fortemente. Numa
escuridão assustadora, já sem poder respirar, principiou
Nosso Senhor a dizer-me assim:
— Ai, ai de ti, miserável; ai de ti, maldita, e de todo
aquele que Me ultraja, que Me ofende a ponto de merecer
a minha ira, a minha cólera, a minha justiça vingadora!
Para eles já não é coração de Pai, já não tem ternuras
nem amor! Sou juiz, mas juiz que castiga com toda a
severidade e sem dó nem compaixão. És tu o réu de toda a
Humanidade, o réu que merece todo o castigo da Justiça
divina.
Eu sentia que Nosso Senhor lá do alto me olhava com toda
severidade e descarregava sobre mim vingança e castigo,
para me destruir. O coração batia com tanta força:
parecia não me caber no peito; queria sair fora e
rastejar na lama com desespero e aflição. O peso da
Justiça divina deixava-me esmagadinha.
O que hei de eu dizer-vos, meu Jesus, depois de tudo
isto? Sem um momento de arrependimento por me ter
oferecido a Vós como vítima, renovo a minha oferta.
Descarregai sobre mim tudo, tudo: não deixeis nada para
os pecadores, a não ser ternura, amor e compaixão! Os
vossos ralhos são a prova do amor que me tendes: dão-me
a conhecer que não rejeitastes a minha oferta e serei
portanto, vítima até à morte, vítima dos pobrezinhos,
vítima de reparação e amor.
Quero que as flores que adornam a minha cruz sejam só
sofrimentos.
Ó sofrimentos amados, resgate e conquista das almas e do
amor do meu Jesus! Quem uma vez abraçou os sofrimentos
por amor daquele que lhos envia não os pode deixar
jamais!
Mais
terríveis o que lemos a 6.2.40:
Hoje tem sido outro dia de grande tormento. Tenho
vergonha de viver no mundo. Estou receosa de mim mesma.
Se me contemplo, enojo-me. Nosso Senhor ralhou-me. Rolei
pela cama. Ele dizia-me:
— O cheiro do teu corpo é nauseabundo. A peste dos teus
vícios invadiu o mundo. Desgraçada! Nem todos os crimes
dos condenados do inferno te deixavam tão coberta como
estás! Não te lavas jamais a não ser com o sangue de
vítimas inocentes. Caia sobre ti a ira de Deus, um fogo
de maldição!
Eu estava sozinha num mundo escuro e de podridão. Com
muito custo, porque nem podia respirar, dizia a Nosso
Senhor:
Ó Jesus, caia sobre mim e sobre o mundo inteiro o fogo
do vosso amor. Seja essa a vossa maldição. Eu não recuso
dar-vos o meu sangue até à última gota. Em troca só
quero amor. É com ele e com a minha dor que eu comprarei
as almas.
E agora a
ira de Deus ameaçando com o inferno; 11.4.40:
Esta manhã, depois de possuir a Jesus no meu coração,
estava fria e morta. Queria dizer-lhe tantas coisas;
queria amá-Lo pelos que O não amam, amá-Lo com todo o
amor do Céu e da Terra; queria dar-me inteiramente a
Ele, que Ele me possuísse para sempre.
Mas a morte reinava; sombras assustadoras me cobriam. De
nada valiam os meus desejos. Tudo era perdido e inútil.
Rolei pela cama, ao mesmo tempo que Jesus me ralhava,
dizendo-me:
— Desgraçada, desgraçada! O teu sono é mortal; vão
acordar-te os horrores do inferno!
Ai de ti, se não te convertes! Espera-te o inferno
ladeado de demónios, de fogo e de almas ardendo, ardendo
eternamente. Converte-te, vem a Mim, vem ao meu Divino
Coração que está aberto para receber-te...
Não
resistimos a copiar deste mesmo mês de Abril, a 17, esta passagem
belíssima:
Onde é que está o meu Jesus? Para onde se escondeu Ele?
Ai do meu coração e da minha alma que estão sem vida!
Não podem passar sem Jesus. Não O vejo, não O sinto, mas
parece que o Céu se rasga, que Ele desce às nuvens e as
faz cair sobre a Terra, ficando eu no meio para ser
esmagada. É tremenda a justiça de Deus! Está armada
sobre mim. Eu não tento fugir: em vão o conseguiria.
Como pode ser isto? Jesus não tem na Terra mais ninguém
para castigar? Sou eu, só eu que mereço castigo? Sou eu
e sempre eu que estou coberta de todos os crimes! O
inferno abre-se abaixo de mim: estou prestes a cair, nem
um fiozinho me prende. O meu coração parece não caber no
peito com aflição... Nem posso falar nem respirar.
Se os pobres pecadores sentissem o que eu sinto, vissem
os horrores que vejo, não pecavam, com certeza.
E agora
segue-se esta linda prece:
Ó meu Jesus, o que eu sou e de que estou coberta! Não
tenhais nojo: aproximai-vos. O vosso sangue divino regou
a Terra, abriu o Céu.
Permiti que vá agora o meu lavar as almas dos pobres
pecadores.
Permiti que o mesmo sangue possa incendiar por toda a
Terra o vosso amor, para que possamos dizer todas as
almas da Terra numa só voz: reina o amor de Jesus em
todos os corações, arde o mundo numa só chama por amor
de Jesus.
Morreu o pecado: já não existe! Jesus já não é mais
ofendido. Na Terra já só há amor, amor, amor!
Às vezes
sente a Alexandrina mais expressamente a ira do Eterno Pai, como por
exemplo lemos a 14.5.40:
...O mundo em treva revolta-se todo contra mim e eu
sinto-me humilhada, reduzida ao nada. Estou coberta de
crimes e de imperfeições e tenho vergonha de Jesus;
temo a justiça do Eterno Pai.
Nosso Senhor hoje, ao baixar ao meu coração, suavizou a
minha dor. Uma lampadazinha se acendeu na minha alma.
Apagou-se bem rápido; fiquei na maior escuridão e num
estado abominável e vergonhoso. Sentia a justiça do
Eterno Pai a destruir-me; ficava como reduzida a
pó...
E a
25.10.40, Jesus convidava-a para a Paixão: era sexta-feira:
— Minha filha, meu anjo, anjo querido do meu Divino
Coração, é chegada a hora de mais amor. É chegada a hora
de mais alegria e consolação para Mim.
Vem, vem ver o teu Calvário. Como está lindo! De seco e
espinhoso que era, está quase todo transformado em
viçosas e perfumadas flores. Tantos lírios e açucenas!
Coragem, anima-te. Vem contente transformar em rosas os
espinhos que ainda faltam. E depois, o Céu, o teu Jesus
e a tua Mãezinha querida! Coragem, deixa-te crucificar,
para me salvares os pecadores, para dares a paz ao
mundo. Tens o teu Jesus com tua Mãezinha para te
auxiliarem.
— Sim, Jesus, vou alegre, vou contente, porque a minha
alegria está em consolar-Vos, em sofrer por Vós. Quero
dar-Vos as almas, quero salvar o mundo, mas não posso
sozinha, não tenho força. Conto convosco, meu Jesus.
Fui para o Horto, tudo me convidava para a tristeza e
solidão. Ao ver-me tão abandonada, senti tal dor no meu
coração, que me fazia chorar rios de lágrimas; parecia
que morria. Uma onda de crimes, um mundo de maldades e
imundícies caía sobre mim. Faziam que a vergonha mais se
apoderasse de mim e mais desejos tinha de me esconder e
mais medo sentia ainda. Ao mesmo tempo que me parecia do
meu corpo sair tanto sangue que banhava a Terra e as
almas.
Sim: sei que todo o sangue e toda a dor eram de Jesus.
Ai, quem me dera poder exprimir-me; mas não sei! (Note-se
aqui a identificação das suas dores com as de Cristo que
nos revelam ao mesmo tempo a grande união a que já
chegou com Ele).
Jesus sentiu uma dor de morte, ao ver as almas que foram
remidas e lavadas com o seu divino sangue, diante dos
seus divinos olhos lançarem-se ao lodo, às imundícies,
só entregues ao pecado! A aflição, o medo e a dor
aumentou tanto, tanto: fazia sentir pavor! (É o
coepit pavere – começou a sentir medo - de Cristo no
Horto).
Se houvesse milhões de mundos para esconder tudo isto!
O Eterno Pai estava todo irado. A sua justiça divina
prestes a descarregar-se desabridamente. Parecia que se
abria a abóbada do céu e sobre mim; caía em negros
pedaços, com tal horror que parecia-me que todas as
minhas veias se rasgavam e esguichavam fontes de sangue.
Meu Deus!...
Mais
tarde, a 25.8.42, encontramos em seus escritos:
Não custam as nossas ofertas a Jesus; dizer-Lhe que todo
o corpo é dele; dizer-Lhe: sou vossa para o martírio
e para a Cruz. Mas quando se sentem os rigores da
sua divina justiça, quando Ela dá sinal que tomou a
sério e se utilizou do frágil instrumento, para assim
salvar o mundo, é de morrer.
Que tremenda e aterradora é a Justiça divina!
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