

Vozes autorizadas
explicaram esta devoção e a sua história. Uma delas e não a mínima, foi a do
Papa Pio XII que sobre esta devoção publicou uma Carta Encíclica — “Haurietis
aquas in gaudio” — da qual nos vamos servir largamente.
Para
começar, o Sumo Pontífice precisa, falando dessa devoção que ele pensa ser da
maior utilidade para a Igreja:
«É persuasão nossa
que o culto tributado ao amor de Deus e de Jesus Cristo para com o género
humano, através do símbolo augusto do Coração trespassado do Redentor, nunca
esteve completamente ausente da piedade dos fiéis, embora a sua manifestação
clara e a sua admirável difusão em toda a Igreja se haja realizado em tempos não
muito distantes de nós, sobretudo depois que o próprio Senhor revelou este
divino mistério a alguns de seus filhos após havê-los cumulado com abundância de
dons sobrenaturais, e os elegeu para seus mensageiros e arautos»
.
Depois, uma referência
às almas consagradas a Deus, particularmente aquelas que “tributaram culto de
adoração, de acção de graças e de amor à Humanidade santíssima de Cristo, e de
modo especial às feridas abertas no seu corpo pelos tormentos da paixão
salvadora”.
Mais adiante, na mesma
Carta Encíclica, o “Pastor Angélico” propõe de nos “indicar somente as etapas
gloriosas percorridas por este culto na história da piedade cristã”, e
continua: ”mister é recordar, antes de tudo, os nomes de alguns daqueles que
bem podem ser considerados os porta-estandartes desta devoção, a qual, em forma
privada e de modo gradual, foi-se difundindo cada vez mais nos institutos
religiosos”.
Todos esses nomes nos
são conhecidos e, se alguns faltam nessa lista, é porque vieram depois, o que
não quer dizer que possam ter menos importância.
Pio XII enumera:
“Distinguiram-se por haver estabelecido e promovido cada vez mais este culto ao
Coração sacratíssimo de Jesus: São Boaventura, São Alberto Magno, Santa.
Gertrudes, Santa Catarina de Sena, o Beato Henrique Suso, São Pedro Canísio e
São Francisco de Sales”.
Como podemos
verificar, Pio XII, parando em S. Francisco de Sales, não vai mais longe do que
o século XVII. Foi neste século que nasceu, viveu e morreu Santa Margarida Maria
Alacoque, assim como nele viveram alguns mais que o bom Papa vai citar.
«A São João Eudes
deve-se o primeiro ofício litúrgico em honra do Sagrado Coração de Jesus, cuja
festa se celebrou pela primeira vez, com o beneplácito de muitos bispos de
França, a 20 de outubro de 1672. Mas entre todos os promotores desta excelsa
devoção merece lugar especial Santa Margarida Maria Alacoque, que, com a ajuda
do seu director espiritual, o Beato Cláudio de la Colombière, e com o seu
ardente zelo, conseguiu, não sem admiração dos féis, que este culto adquirisse
um grande desenvolvimento e, revestido das características do amor e da
reparação, se distinguisse das demais formas da piedade cristã».
Era cedo de mais para
que Pio XII pudesse citar Henri Ramière, Jesuíta de renome que consagrou a sua
vida a propagar a devoção ao Sagrado Coração de Jesus e que para isso fundo o
“Apostolado da Oração”; cedo para falar do Padre Matéo Crawley, o “inventor” da
“Hora Santa”, cedo para falar de Edite Royer, a quem muito se deve na mesma
propagação e na edificação da igreja do Sacré-Coeur de Paris; cedo para falar da
Beata Maria Drost, superiora do Bom Pastor, no Porto, e a quem se deve a
consagração do mundo ao Coração de Jesus, consagração concretizada por Leão XIII
em 1899, pouco tempo depois da morte da irmã Maria do Divino Coração Drost; cedo
para falar de Clara Ferchaud, protegida de Pio XI, e que passou toda a sua vida
a lutar para que essa devoção não “arrefecesse” e para que a efígie do Coração
de Jesus fosse colocada na bandeira nacional francesa, o que esteve prestes a
concretizar-se se não fosse a intervenção nefasta da maçonaria.
Mas o Sumo Pontífice
explica porque não foi mais longe na enumeração dos intervenientes nesta
“campanha” em favor da devoção ao Sagrado Coração de Jesus:
«Basta essa
evocação daquela época em que se propagou o culto do Coração de Jesus para nos
convencermos plenamente de que o seu admirável desenvolvimento se deve
principalmente ao facto de se achar ele em tudo conforme com a índole da
religião cristã, que é religião de amor. Por conseguinte, não se pode dizer nem
que este culto deve a sua origem a revelações privadas, nem que apareceu de
improviso na Igreja, mas sim que brotou espontaneamente da fé viva, da piedade
fervorosa de almas predilectas para com a pessoa adorável do Redentor e para com
aquelas suas gloriosas feridas, testemunhos do seu amor imenso que intimamente
comovem os corações».
Logo a seguir, como se
ele desejasse tecer um paralelo entre a tradição da Igreja e as revelações
privadas, neste caso aquelas da Santa de Paray-le-Monial, ele diz:
«Evidente é,
portanto, que as revelações com que foi favorecida Santa Margarida Maria não
acrescentaram nada de novo à doutrina católica. A importância delas consiste em
que ― ao mostrar o Senhor o seu Coração sacratíssimo ― de modo extraordinário e
singular quis atrair a consideração dos homens para a contemplação e a veneração
do amor misericordioso de Deus para com o género humano. De facto, mediante
manifestação tão excepcional, Jesus Cristo expressamente e repetidas vezes
indicou o seu Coração como símbolo com que estimular os homens ao conhecimento e
à estima do seu amor; e ao mesmo tempo constituiu-o sinal e penhor de
misericórdia e de graça para as necessidades da Igreja nos tempos modernos».
Na história desta
devoção encontramos numerosas vezes não só santos franceses, mas muitas
iniciativas do povo gaulês com vista a levar mais além o
que
já estava então estabelecido. A “Filha mais velha da Igreja” foi na verdade um
centro de onde irradiaram muitos pedidos e muitas iniciativas nesse sentido. É
isso mesmo que explica Pio XII, logo a seguir:
«A essa primeira
aprovação, dada em forma de privilégio e limitadamente, seguiu-se, a distância
de quase um século, outra de importância muito maior, e expressa em termos mais
solenes. Referimo-nos ao decreto da Sagrada Congregação dos Ritos de 23 de
agosto de 1856, anteriormente mencionado, com o qual o nosso predecessor Pio IX,
de imortal memória, acolhendo as súplicas dos bispos da França e de quase todo o
orbe católico, estendeu a toda a Igreja a festa do Coração sacratíssimo de
Jesus, e prescreveu a sua celebração litúrgica
. Esse fato merece ser recomendado à lembrança perene
dos fiéis, pois, como vemos escrito na própria liturgia da festa, “desde então o
culto do sacratíssimo Coração de Jesus, semelhante a um rio que transborda,
superou todos os obstáculos e difundiu-se pelo mundo todo”».
Algumas páginas mais
adiante — como se Pio XII desejasse precaver-se contra os ataques que não
faltariam para criticar a sua posição tão marcada na difusão intensa desta
devoção, que não sendo nova, era então dum grande socorro para a Igreja —,
escreve:
«Desde quando
promulgou os primeiros documentos oficiais relativos ao culto do Coração
sacratíssimo de Jesus, tem sido constante persuasão da Igreja, mestra da verdade
para os homens, que os elementos essenciais desse culto, quer dizer, os actos de
amor e de reparação tributados ao amor infinito de Deus para com os homens,
longe de estarem contaminados de materialismo e de superstição, constituem uma
forma de piedade em que se põe plenamente em prática aquela religião espiritual
e verdadeira que o próprio Salvador anunciou à samaritana: “Já chega o tempo, e
já estamos nele, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e
em verdade”»
(Jo 4,23-24).
Para apoiar
solidamente a ideia da necessidade, da oportunidade e do bem que pode trazer a
propagação constante e rápida desta devoção, o Soberano Pontífice acrescenta
pouco depois:
«Do elemento
corpóreo, que é o Coração de Jesus Cristo, e do seu natural simbolismo, é
legítimo e justo que, levados pelas asas da fé, nos elevemos não só à
contemplação do seu amor sensível, porém a mais alto, até à consideração e
adoração do seu excelentíssimo amor infuso, e, finalmente, num voo sublime e
doce ao mesmo tempo, até à meditação e adoração do amor divino do Verbo
encarnado; já que à luz da fé, pela qual cremos que na pessoa de Cristo estão
unidas a natureza humana e a natureza divina, podemos conceber os estreitíssimos
vínculos que existem entre o amor sensível do Coração físico de Jesus e o seu
duplo amor espiritual, o humano e o divino. Em realidade, não devem esses amores
ser considerados simplesmente como coexistentes na adorável pessoa do Redentor
divino, mas também como unidos entre si com vínculo natural, nisto que ao amor
divino estão subordinados o humano, o espiritual e o sensível, os quais são uma
representação analógica daquele».
E, como para concluir
todos os argumentos apresentados, ainda que não termine aqui a Carta Encíclica,
Pio XII escreve:
«Assim sendo,
facilmente deduzimos que, pela própria natureza das coisas, o culto ao
sacratíssimo Coração de Jesus é o culto ao amor com que Deus nos amou por meio
de Jesus Cristo, e, ao mesmo tempo, o exercício do amor que nos leva a Deus e
aos outros homens; ou, dito por outra forma, este culto dirige-se ao amor de
Deus para connosco, propondo-o como objecto de adoração, de acção de graças e de
imitação; e tem por fim a perfeição do nosso amor a Deus e aos homens mediante o
cumprimento cada vez mais generoso do mandamento “novo”, que o divino Mestre
legou como sagrada herança aos seus apóstolos quando lhes disse: “Um novo
mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei... O meu
preceito é que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei” (Jo 13,34; 15,12)».
Para terminar, e antes
de oferecer a sua bênção paterna aos cristãos do mundo inteiro, o “Pastor
Angélico” escreve:
«Entrementes,
animado de doce esperança, e já pressagiando os frutos espirituais que da
devoção ao sagrado Coração de Jesus hão de transbordar copiosamente na Igreja se
esta devoção, conforme explicamos, for entendida rectamente e praticada com
fervor, a Deus suplicamos que, com o poderoso auxílio da sua graça, queira
atender estes nossos vivos desejos, e fazer que, com a ajuda divina, as
celebrações deste ano aumentem cada vez mais a devoção dos féis ao sagrado
Coração de Jesus, e assim se estenda mais por todo o mundo o seu império e reino
suave; esse “reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino de
justiça, de amor e de paz” (do Missal Romano: Prefácio de Cristo Rei)»
.
Outros autores
modernos, falando do passado histórico desta devoção, transportam-nos ao século
XIII: é o caso da escritora francesa Paulette Leblanc que no seu volumoso
trabalho sobre a “Teologia do Coração de Jesus”, nos fala de Ubertino de
Casale:
«Ubertino de
Casale — escreve ela — nascido em 1259,
franciscano, muito influenciado pela mística franciscana Ângela de Foligno, foi
um doutor medieval do Coração de Jesus. Segundo ele, o Coração de Jesus, fonte
de toda a graça e de todo o mérito, é um abismo de amor, de dor e de força. O
sacrifício que Cristo fez dele mesmo, tanto sobre a Cruz que sobre os altares, é
o sinal do sacrifício invisível e inefável que Ele faz continuamente dele mesmo
no templo imenso do seu Coração. Toda a vida de Cristo foi uma Missa solene na
qual Jesus era ao mesmo tempo o templo, o altar, o sacerdote, a hóstia e o Deus
aceitando o sacrifício. Ubertino coloca-nos directamente na presença da teologia
do Coração Eucarístico».
O mesmo autor, na
mesma obra, fala-nos dum outro apóstolo infatigável desta devoção, do qual
anunciámos o nome acima: Henri Ramière.
«Atormentado pela
preocupação da salvação eterna dos homens, Henri Ramière, fundador do “Apostolado
da Oração”, compreendeu muito rapidamente que “é apenas e na oração, unida à
adoração sacrificial do Coração de Jesus, que cada pessoa humana pode… amar
todos os seus próximos incluindo os que parecem mais distantes.” Para ele, a
Igreja co-redentora é simbolizada pela oferta diária ao Coração de Jesus. “A
devoção ao Sagrado Coração bem compreendida, é a religião encarada sob o seu
aspecto mais luminoso e mais consolador”».
Para terminar este voo
rápido sobre as origens da devoção ao Sagrado Coração de Jesus, convém lembrar
aqui as promessas feitas pelo Senhor a Santa Margarida Maria Alacoque em
Paray-le-Monial:
«Falando a Santa
Margarida Maria, Jesus prometeu a todos aqueles que honrassem o seu Divino
Coração:
“Dar-lhes-ei
todas as graças necessárias ao seu estado.
Porei paz em
suas famílias.
Consolá-los-ei em todas as suas aflições.
Serei o seu
refúgio na vida e principalmente na morte.
Derramarei
abundantes bênçãos sobre todas as suas empresas .
Os pecadores
acharão no meu Coração o manancial e o oceano infinito de misericórdia.
As almas
tíbias tornar-se-ão fervorosas.
As almas
fervorosas altear-se-ão, rapidamente, às eminências da perfeição.
Abençoarei as
casas, onde se expuser e venerar a imagem do meu Sagrado Coração.
Darei aos
sacerdotes o dom de abrandarem os corações mais endurecidos.
As pessoas
que propagarem estas devoção, terão os seus nomes escritos no meu Coração, para
nunca dele serem apagados”.
E esta promessa
extraordinária:
Prometo-te, pela
excessiva misericórdia e pelo amor Todo-Poderoso do meu Coração, conceder a
todos que comungarem nas primeiras sextas-feiras de nove meses consecutivos, a
graça da penitência final, que não morrerão em minha inimizade, nem sem
receberem os seus sacramentos, e que o meu divino Coração lhes será seguro asilo
nesta última hora».
Continuemos o nosso
estudo e, como Alexandrina, sentemo-nos “junto do altar do Sagrado Coração de
Jesus”, de maneira a estarmos mais perto da “fonte de água viva”, aquela que
apaga para sempre a sede das coisas do mundo e nos alimenta para a vida eterna.



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