Alexandrina de Balasar

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CAPÍTULO 25

Trata da maneira como se entendem estas falas que Deus faz à alma, sem se ouvirem, e de alguns enganos que pode haver nisso e em que se conhecerá quando é engano. É muito proveitoso para quem se encontrar neste grau de oração, porque é muito bem explicado e de grande doutrina.

1.  Parece-me que será bom declarar como é este falar de Deus à alma e o que ela sente, para que V. Mercê o entenda? Porque, desde esta vez que disse, em que o Senhor me fez esta mercê, até agora, tem sido muito frequente, como se verá no que está por dizer.

São umas palavras muito bem articuladas, mas que não se ouvem com os ouvidos corporais, e se entendem muito mais claramente que se se ouvissem. Deixar de ó entender, por mais que se resista, é impossível. Cá na terra, quando não queremos ouvir, podemos tapar os ouvidos ou prestar atenção a outra coisa, de modo a que, embora se oiça, não se perceba. Nestas práticas, porém, que Deus faz à alma, não há nenhum remédio, porque, embora me pese, me fazem escutar e estar o entendimento tão atento para compreender aquilo que Deus quer que entendamos, que não há querer ou deixar de querer. Aquele que tudo pode, quer que entendamos que se há-de fazer o que Ele quer, e mostra-Se verdadeiro Senhor nosso. Isto tenho eu experimentado muito, porque andei quase dois anos resistindo, pelo grande medo que trazia, e ainda agora tento fazê-lo algumas vezes, mas de pouco me aproveita:

2.  Quisera eu declarar os enganos que pode aqui haver, (ainda que, para quem tenha muita experiência, julgo que serão poucos ou nenhum; mas esta experiência há-de ser muita) e a diferença que há, de quando o espírito é bom ou mau, ou como também pode ser apreensão do mesmo entendimento ― o que poderia acontecer ― ou falar o mesmo espírito a si mesmo. Isto não sei se pode ser, mas ainda hoje me pareceu que sim.

Quando é obra de Deus, tenho bem provado que, em muitas coisas que. se me diziam dois ou três anos antes, todas se têm cumprido, e até agora nenhuma tem saído mentira; e outras coisas onde se vê claramente ser espírito de Deus, como depois se dirá.

3.  Parece-me a mim que, estando uma pessoa a encomendar uma coisa a Deus, com grande afecto e preocupação, poderá afigurar-se-lhe que percebe alguma coisa, se isso se fará ou não, e isto é muito possível. Embora quem tenha entendido desta outra maneira, verá claramente o que é, porque é muita a diferença. Se é coisa fabricada pelo entendimento, por muito subtil que seja, ele entende que é ele quem ordena algo e quem fala. O que não é outra coisa senão alguém estar a compor o que há-de dizer ou a escutar o que outro lhe diz, e verá o entendimento, que então não escuta, pois que actua; e as palavras que ele assim fabrica são como coisa surda, fantasiada, e não têm a claridade destas outras. Aqui está na nossa mão tanto o distrair-nos como calar quando falamos; neste não há meio.

E outro sinal, maior que todos, é que estas falas do entendimento não operam. Esta outra que diz o Senhor, são palavras e obras. Mesmo que as palavras não infundam devoção, mas repreensão, logo à primeira dispõem uma alma e a habilitam, enternecem, dão luz, regalam e aquietam. E se a alma estava com aridez ou alvoroço ou desassossego de alma como com a mão lho tira; ainda melhor: dir-se-ia que o Senhor quer que se entenda que é poderoso e que Suas palavras são obras.

4.  Parece-me que esta diferença é, nem mais nem menos como a que há quando falamos ou ouvimos. Porque o que eu falo, como já disse, eu o vou ordenando com o entendimento; mas se me falam, não faço mais que ouvir sem nenhum trabalho. No primeiro caso é como uma coisa que nós não podemos bem deter minar se é ou não, é como alguém que está meio adormecido; no outro é voz tão clara, que não se perde uma slaba do que se ouve dizer. E acontece ser em momentos em que o entendimento e a alma estão tão alvorotados e distraídos, que não acertariam a ajustar uma boa razão e, no que lhe dizem encontram cozinhadas grandes sentenças que ela, mesmo estando muito recolhida, não poderia alcançar e, à primeira palavra, como digo, de todo a mudam. Especialmente no arroubamento, em que as potências estão suspensas, como se entenderão coisas que antes não tinham ainda vindo à memória? Como virão então, se quase não opera, e a imaginação está como embevecida?

5.  Advirta-se que quando se vêem visões ou quando se ouvem estas palavras, nunca é ― a meu parecer ― enquanto a alma está unida no mesmo arroubamento; porque então, como já deixei declarado, creio que na segunda água, de todo se perdem todas as potências e, segundo me parece, ali nem se pode ver, nem entender, nem ouvir. Está toda ela debaixo de outro poder, e neste tempo, que é muito breve, não me parece que o Senhor lhe deixe liberdade para nada. Passado este breve tempo, em que a alma fica ainda em arroubamento, é que se dá isto que digo; porque ficam as potências de modo que, embora não estejam perdidas, quase nada operam; estão como absortas e incapazes de concertar razões. E há tantas para se perceber a diferença entre umas e outras que, se alguma vez se engana, não serão muitas.

6.  E digo que, se é alma exercitada e está de sobreaviso, o verá muito claramente; porque, deixadas à parte outras coisas por onde se vê o que tenho dito, o que o entendimento fabrica não produz nenhum efeito, nem a alma o admite. É que a estas coisas (por muito que nos pese), não se dá crédito, antes se vê que é tudo devaneio do entendimento; é quase como não se fazer caso duma pessoa que se sabe ter frenesim.

Mas a outra fala é como se ouvíssemos uma pessoa muito santa ou letrada e de grande autoridade, que sabemos que não nos há-de mentir. E ainda é baixa comparação, porque estas palavras trazem algumas vezes consigo uma tal majestade que, sem nos lembrarmos de quem as diz, se são de repreensão fazem tremer; e se são de amor, fazem desfazer-se a alma em amar. E são coisas que, como tenho dito, estavam bem longe da memória e, de repente, dizem-se sentenças tão grandes que, para as poder ordenar, seria preciso muito tempo. De modo nenhum, julgo eu, se pode então ignorar não ser coisa fabricada por nós.

Assim, nisto não há que me deter, pois só por maravilha me parece que pode haver engano em pessoa experiente, se ela mesma, com advertência, não se quer enganar.

7.  Tem-me acontecido muitas vezes, se tenho alguma dúvida, não acreditar o que me dizem e pensar que será ilusão da imaginação (isto, depois de passar o arroubamento, que então é impossível duvidar); mas depois de muito tempo, vemos isso cumprir-se, porque o Senhor faz com que fique na memória e que não se possa olvidar. O que é formado pelo entendimento é como um primeiro movimento do pensamento que passa e se esquece. Estoutro é como obra que, embora passe o tempo e se esqueça um pouco, não é tão de todo que se perca a memória do que, enfim, se disse, salvo se já foi há muito tempo, ou se são palavras de favor ou doutrinação. As de profecia, porém, não esquecem, a meu parecer, ao menos a mim, ainda que tenha pouca memória.

8.  E torno a dizer que, se uma alma não for tão desalmada que queira fingir (o que seria muito mal feito), dizendo que entende ou ouve, não sendo assim; deixar de ver claramente que é ela quem compõe as palavras e as diz dentro de si, parece-me que isso não leva caminho, se é que entendeu o espírito de Deus, porque, se assim não for, por toda a vida poderá permanecer nesse engano e parecer-lhe que ouve, embora eu não sei como isso possa ser. Ou esta alma o quer entender ou não. Se se está moendo com o que ouve e de nenhum modo quereria entender coisa alguma, por causa de mil temores e outras muitas razões que há para desejar estar quieta em sua oração sem estas coisas, porque dá tanto lugar ao entendimento para compor e ordenar razões? Pois é preciso haver tempo para isto. Aqui, porém, sem perder nenhum, ficamos ensinadas e entendem-se coisas que parece seria preciso um mês para as ordenar, e o mesmo entendimento e alma ficam espantados dalgumas coisas que se entendem.

9.  Isto é assim, e quem tiver experiência verá que, ao pé da letra, é tudo tal como digo. Louvo a Deus porque assim o soube dizer. E acabo dizendo que ― segundo me parece ― sendo tais coisas, fantasia do entendimento, quando quiséssemos as poderíamos entender, e até, de cada vez que temos oração, nos poderia parecer que ouvimos. Mas com estas outras não é assim; pois estarei muitos dias em que, embora queira entender alguma coisa, é impossível; e quando outras vezes não quero, como já disse, tenho de a entender.

Parece-me que, quem quisesse enganar os outros dizendo que percebeu ser de Deus aquilo que forjou por si mesmo, pouco lhe custa dizer que o ouviu com os ouvidos corporais; e assim é certo que, de verdade, jamais pensei que havia outra maneira de ouvir nem de entender; até que o vi por mim e assim, como disse, me custou grande trabalho.

10. Quando é obra do demónio, não só não deixa bons efeitos, mas deixa-os maus. Isto tem-me acontecido, mas não mais de duas ou três vezes, e logo fui avisada pelo Senhor ser coisa do demónio. Deixada à parte a grande secura que fica, é uma inquietação na alma à maneira de outras muitas vezes em que o Senhor tem permitido que eu tenha grandes tentações e trabalhos de alma de diferentes maneiras, e até que me atormente muitas vezes, como adiante direi. É uma inquietação que não se sabe entender donde vem, senão que parece que a alma resiste e se alvorota e aflige sem saber de quê, porque, o que o demónio lhe diz, não é mau, senão bom. Penso que um espírito pressente o outro. O gozo e o deleite que o demónio dá é, a meu parecer, de maneira bem diferente. Poderá enganar com estes gostos a quem não tiver ou tenha tido outros de Deus.

11. Digo gostos de verdade, uma recreação suave, forte, profunda, deleitosa, pacífica; e não umas devoçõezitas da alma, de lágrimas e outros sentimentos pequenos, florzitas que murcham com o primeiro sopro de perseguição e se perdem. A estas não as chamo devoções, ainda que sejam bons princípios e sentimentos santos, mas não para se poder determinar estes efeitos de bom e mau espírito. E assim, é bom andar sempre com grande cautela, porque, pessoas que não estão mais adiantadas do que isto na oração, facilmente poderiam ser enganadas se tivessem visões ou revelações.

Eu nunca tive coisa alguma destas últimas enquanto Deus, só por Sua bondade, não me deu oração de união, a não ser a primeira vez que disse que, há muitos anos, vi a Cristo, e prouvera a Sua Majestade que eu então entendesse que era verdadeira visão, como depois entendi, o que não me fora pequeno bem. Nessas outras nenhuma suavidade fica na alma, mas ela como que espantada e com grande desgosto.

12. Tenho por muito certo que o demónio não enganará ― nem Deus lho permitirá ― a alma que em coisa alguma se fia de si e está fortalecida na fé, e de si entende que, por um ponto de fé, morreria mil mortes. Com este amor à fé que Deus logo infunde, uma fé viva, forte, ela procura andar sempre conforme ao que ensina a Igreja, perguntando a uns e a outros, como quem já assentou fortemente nestas verdades, que nem quantas revelações pudesse imaginar ― até mesmo que visse os céus abertos ― a demoveriam de um só ponto do que ensina a Igreja.

Se alguma vez se visse vacilar no seu pensamento contra isto ou se detivesse a dizer: «Pois se Deus me disse isto, também pode ser verdade, como o que dizia aos santos», não digo que chegue a acreditar, mas que o demónio a começa a tentar ao primeiro movimento. E deter-se nele, já se vê que seria malíssimo. Mas nem mesmo os primeiros movimentos creio que virão muitas vezes neste caso, se a alma está nisto tão forte como o Senhor torna aquelas a quem concede mercês. Parece-lhe que desafiaria os demónios sobre a menor das verdades que a Igreja crê.

13. Digo que, se não vir em si esta grande fortaleza e que a devoção ou visão a ajude, não a tenha por segura.

Porque, embora não se sinta logo o dano, pouco a pouco poder-se-ia tornar grande. Ao que eu vejo e sei por experiência, de tal maneira fica a certeza de que é Deus quando vai conforme à Sagrada Escritura, e por um tudo-nada que disto torcesse, eu teria sem comparação muito mais firmeza em crer que é do demónio do que agora tenho de que são de Deus, por muito grande que a tenha. Porque então nem é preciso andar à busca de sinais, nem que espírito é, pois é tão claro este sinal para provar que é demónio, que sé então todo o mundo me assegurasse que é Deus, eu não lhe daria crédito.

O caso é que, quando é demónio, parece que se escondem todos os bens e fogem da alma, segundo fica desabrida e alvorotada e sem nenhum efeito bom. E embora pareça incutir desejos na alma, não são fortes; a humildade que deixa é falsa, alvorotada e sem suavidade. Parece-me que, quem tiver experiência de bom espírito, o compreenderá.

14. Contudo, pode o demónio usar de muitos embustes, e assim não há nisto coisa tão certa como temer e andar sempre com cuidado é ter mestre que seja letrado, e não lhe calar nada. Com isto, nenhum dano pode vir; ainda que a mim muitos me têm vindo por estes temores demasiados que têm algumas pessoas. Especialmente aconteceu-me uma vez que se reuniram muitos, a quem eu dava grande crédito, e havia razão para que se lhes desse. E conquanto eu já só tratasse com um, quando ele me mandava que falasse a outros, uns com os outros tratavam muito de meu remédio, pois me tinham muita amizade e temiam que fosse enganada. Eu também trazia em mim grandíssimo temor quando não estava em oração, porque, estando nela e fazendo-me o Senhor alguma mercê, logo ficava com segurança. Creio que eram uns cinco ou seis, todos muito servos de Deus, e disse-me meu confessor que todos concordavam em que era demónio; que não comungasse tão amiúde e que procurasse distrair-me e evitasse a solidão. Era eu medrosa em extremo, como tenho dito. Ajudava a isso o mal de coração, pois até sozinha num quarto não ousava estar de dia muitas vezes. Como vi que tantos o afirmavam e como eu não o pudesse crer, deu-me grandíssimo escrúpulo, parecendo-me pouca humildade. Pois, se todos eram, sem comparação, de melhor vida do que eu e letrados, como não os havia de crer? Esforçava-me o mais que podia para os acreditar e pensava na minha ruim vida e que, conforme a isto, deviam dizer a verdade.

15. Fui à Igreja com esta aflição e entrei num oratório. Tinha deixado muitos dias de comungar, deixado a solidão que era toda a minha consolação, sem ter pessoa alguma com quem tratar, porque todos, eram contra mim. Uns, parecia-me, troçavam de mim quando disso tratava, como se eu me iludisse; outros avisavam o confessor que se guardasse de mim; outros ainda, diziam que era claramente do demónio. Só o confessor, embora se conformasse com eles - para provar-me, segundo depois soube -, me consolava sempre e me dizia que, embora fosse demónio, não ofendendo eu a Deus, não me podia fazer nada, que isso se me tiraria; que o pedisse muito a Deus. E ele e todas as pessoas que confessava e outras muitas o pediam muito e eu, em toda a minha oração e quantos entendia eram servos de Deus, para que Sua Majestade me levasse por outro caminho. E isto durou-me não sei se dois anos em que foi contínuo pedi-lo ao Senhor.

16. Para mim, nenhuma consolação bastava, quando pensava ser possível o demónio falar-me tantas vezes. Porque, apesar de não tomar horas de soledade para a oração, em meio de conversas o Senhor me fazia entrarem recolhimento e, sem eu o poder evitar, me dizia o que queria; e eu, ainda que me pesasse, era obrigada a ouvi-Lo.

17. Estando, pois, uma vez sozinha, sem ter pessoa em quem descansar, não podia rezar, nem ler; estava como uma pessoa espantada de tanta tribulação e temor de que o demónio me podia enganar, toda alvorotada e aflita sem saber que fazer de mim. Nesta aflição me vi algumas, e até muitas vezes, embora não me pareça que nenhuma em tanto extremo como esta. Estive assim quatro ou cinco horas, em que não houve para mim consolação alguma nem do Céu nem da terra, senão que me deixou o Senhor padecer temendo mil perigos. Oh! Senhor meu, como sois Vós o amigo verdadeiro! E quão poderoso, quando quereis, podeis e nunca deixais de querer, se Vos querem! Louvem-Vos todas as coisas, Senhor do mundo! Oh! quem desse vozes por ele, para dizer quão fiel sois a Vossos amigos! Todas as coisas faltam; Vós, Senhor de todas elas, nunca faltais. Pouco é o que deixais padecer a quem Vos ama. Oh! Senhor meu, que delicada, doce e saborosamente os sabeis tratar! Oh! quem nunca se tivesse detido a amar ninguém, senão a Vós! Parece, Senhor, que provais com rigor a quem Vos ama para que, no extremo do trabalho, se entenda o maior extremo do Vosso amor. Oh! Deus meu, quem tivesse entendimento e letras e novas palavras para encarecer Vossas obras como as concebe minha alma! Falte-me tudo, Senhor meu, mas se Vós não me desamparais, eu não Vos faltarei a Vós. Levantem-se contra mim todos os letrados, persigam-me todas as coisas criadas, atormentem-me os demónios; não me falteis Vós, Senhor, que eu já tenho experiência do lucro com que deixais a quem só em Vós confia.

18. Estando eu, pois, nesta grande aflição (ainda não tendo então começado a ter nenhuma visão), só estas palavras bastaram para ma tirar e aquietar-me de todo: Não tenhas medo, filha, sou Eu e não te desampararei; não temas. Parece-me que, conforme eu estava, seriam precisas muitas horas para me persuadir a que sossegasse e que ninguém disso seria capaz.

E eis-me aqui, só com estas palavras, sossegada, com fortaleza, com ânimo, com segurança, com uma quietude e luz que, num momento, vi a minha alma feita outra, e parece-me que sustentaria, contra todo o mundo, que aquela fala era de Deus. Oh! que bom Deus! Oh! que bom Senhor e que poderoso! Não só dá conselho, mas remédio. Suas palavras são obras. Oh! valha-me Deus, como fortalece a fé e se aumenta o amor!

19. Assim é que, de certeza, muitas vezes me lembrava de quando o Senhor mandou aos ventos que estivessem quedos no mar, quando se levantou a tempestade. E assim eu dizia: Quem é Este a quem assim obedecem todas as minhas potências e que num momento dá luz em tão grande escuridão e torna brando um coração que parecia pedra, dá água de lágrimas suaves onde parecia que por muito tempo havia de haver secura? Quem infunde estes desejos? Quem dá este ânimo? Que pensei eu, e o que temo? Que é isto? Eu desejo servir a este Senhor; não pretendo outra coisa senão agradar-Lhe. Não quero contentamento, nem descanso, nem outro bem, senão fazer Sua vontade. Disto, bem certa estava, como me parece, e podia afirmar. Pois, se este Senhor é poderoso, como vejo e sei que é, e se os demónios são seus escravos (e disto não há que duvidar pois é de fé), sendo eu serva deste Senhor e Rei, que mal me podem eles fazer a mim? Porque não hei-de ter fortaleza para bater-me com todo o inferno?

Tomava uma cruz na mão e parecia-me verdadeiramente dar-me Deus ânimo, pois me vi outra em breve tempo, e não temeria lutar com eles a braços, parecia-me que facilmente, com aquela cruz, os venceria a todos. E assim disse: "agora vinde todos que, sendo eu serva do Senhor, quero ver o que me podeis fazer".

20. Sem dúvida me parecia que me tinham medo, porque fiquei sossegada e tão sem temor de todos eles que, até hoje, se me tiraram todos os medos que costumava ter. Pois, ainda que algumas vezes os veja, como depois direi, não mais lhes tenho tido medo, antes me parece que eles mo têm a mim.

Ficou-me um tal domínio sobre eles, dádiva concedida pelo Senhor de todos, que deles não se me dá mais que de moscas. Parecem-me tão cobardes que, em vendo que os têm em pouco, perdem toda a força. Não sabem estes inimigos reais acometer, senão a quem vêem que se lhes rende ou quando o permite Deus para maior bem de Seus servos que tentem e atormentem.

Prouvera a Sua Majestade temêssemos a quem devemos temer e entendêssemos que nos pode vir maior dano dum pecado venial do que de todo o inferno junto, pois isso é mesmo assim.

21. Que espantados nos trazem estes demónios, porque nós nos queremos espantar com os nossos apegos às honras e fazendas e deleites! Então, juntos eles connosco, que somos contrários a nós mesmos amando e querendo o que devíamos aborrecer, muito dano nos farão; porque, com as nossas próprias armas, fazemos que pelejem contra nós, pondo em suas mãos aquelas com que nos devemos defender. Esta é a grande lástima; mas se tudo aborrecemos por Deus e nos abraçamos com a cruz e tratamos de O servir de verdade, o demónio foge destas verdades como de pestilência. É amigo de mentiras e a mesma mentira. Não fará pacto com quem anda na verdade.

Quando vê obscurecido o entendimento, ajuda lindamente a que se turbem os olhos; porque se vê alguém já cego em pôr seu descanso em coisas vãs, e tão vãs que as deste mundo parecem jogos de crianças, já vê que esse é criança, pois procede como tal e atreve-se a lutar com ele uma e muitas vezes.

22. Praza ao Senhor que eu não seja destes, mas que me favoreça Sua Majestade para que tenha por descanso o que é descanso, e por honra o que é honra, e por deleite o que é deleite, e não tudo ao revés e, uma figa para todos os demónios! e eles ter-me-ão medo a mim. Não entendo estes nossos medos: é demónio! é demónio! quando podemos dizer: Deus! Deus! e fazê-lo tremer. Sim, pois bem sabemos que não se pode mover se o Senhor não lho permite. Que é isto?! É, sem dúvida, ter eu mais medo aos que lhe têm tão grande medo do que a ele mesmo, porque o demónio não me pode fazer nada e estes, em especial se são confessores, inquietam muito e tenho passado alguns anos de tão grande trabalho, que agora me espanto de como o pude sofrer. Bendito seja o Senhor que tão deveras me tem ajudado!

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