Alexandrina de Balasar

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CAPÍTULO 10

Começa a declarar as mercês que o Senhor lhe fazia na oração. Como nos podemos ajudar e o muito que importa que entendamos as mercês que o Senhor nos faz. Pede a quem envia esta relação da sua vida que fique no segredo o que escrever daqui em diante, já que lhe mandam declarar em pormenor as mercês que lhe faz o Senhor.

1.  Tinha eu algumas vezes, como já disse, embora com muita brevidade, o começo do que agora direi. Acontecia-me, nesta representação que eu me fazia de me pôr ao pé de Cristo - da qual já falei e até algumas vezes lendo, vir-me a desoras um tal sentimento da presença de Deus, que de nenhuma maneira podia duvidar que estivesse dentro de mim e eu toda engolfada n'Ele.

Isto não era a modo de visão. Creio ser o que se chama mística teologia. Suspende a alma de maneira que toda parece estar fora de si. Ama a vontade, a memória ― segundo julgo ― está quase perdida, o entendimento não discorre, a meu parecer, mas não se perde; no entanto, como digo, não trabalha, senão que está como que espantado do muito que alcança; porque quer Deus entenda, que daquilo que Sua Majestade lhe representa, nenhuma coisa entende.

2.  Primeiro tinha tido mui de contínuo uma ternura que, em parte, algo dela ― ao que me parece ― se pode procurar. É um regalo que nem é de todo bem sensível, nem é bem espiritual. Tudo é dado por Deus. Mas penso que para isto podemos contribuir muito, considerando nossa baixeza e a ingratidão que temos para com Deus, o muito que fez por nós, Sua Paixão com tão graves dores, Sua vida tão atormentada; e deleitando-nos de ver Suas obras, Sua grandeza, o quanto nos ama e outras muitas coisas em que tropeça muitas vezes quem com cuidado quer aproveitar, embora não ande com muita advertência. Se, a par disto, há algum amor, regala-se a alma, enternece-se o coração, vêm as lágrimas. Algumas vezes parece que as arrancamos à força; outras que o Senhor no-las dá para não podermos resistir. Parece que nos paga Sua Majestade aquele cuidadito com um dom tão grande como é o consolo que dá a uma alma ver que chora por tão grande Senhor; e não me espanto, pois lhe sobra razão de se consolar. Ali se regala, ali folga.

3.  Parece-me bem esta comparação que agora se me oferece: estes gozos de oração são como os que devem ter aqueles que estão no Céu, pois, como não vêem mais do que o Senhor ― conforme ao que merecem ― quer que vejam e vêem seus poucos méritos, cada um está contente no lugar onde está. E isto, apesar de haver tão grande diferença entre gozar e gozar no Céu, muito mais do que aqui há duns gozos espirituais a outros, que é grandíssima.

E, verdadeiramente, uma alma, ainda no princípio, quando Deus lhe faz esta mercê, quase lhe parece que já nada mais há a desejar e dá-se por bem paga de tudo quanto tem servido. E tem sobrada razão: pois uma lágrima destas que, como digo, quase nos esforçamos por ter ― embora sem Deus não se faça coisa alguma ―, parece-me a mim que nem com todos os trabalhos do mundo se pode comprar, porque com elas se ganha muito. E que maior ganho que o de ter algum testemunho de contentarmos a Deus?

Assim, quem aqui chegar, louve-O muito, reconheça-se por muito devedor, porque já parece que o Senhor o quer para Sua casa e escolhido de Seu reino, se não volta atrás.

4.  Não se preocupe dumas humildades que há ― das quais penso tratar ― que lhes parece humildade não entender que o Senhor lhes vai dando dons. Compreendamos bem bem como isto é, que no-los dá Deus sem nenhum merecimento nosso e agradeçamo-lo a Sua Majestade; porque, se não conhecermos que recebemos, não nos estimulamos a amar. E é coisa muito certa que, quanto mais nos virmos ricos, reconhecendo que somos pobres, mais proveito nos advirá, e até mesmo mais verdadeira humildade. O resto é acobardar o ânimo e dar-lhe a entender que não é capaz de grandes bens e, começando o Senhor a dar-lhos, começa-se a atemorizar com medo de vanglória.

Creiamos que, Quem nos dá os bens, nos dará graça para que, começando o demónio a tentar neste ponto, o entendamos e nos fortaleça para resistir; digo, se andamos com lhaneza diante de Deus, pretendendo contentá-Lo só a Ele e não aos homens.

5.  É coisa muito sabida amarmos mais uma pessoa quando muito nos lembramos das boas obras que nos faz. Pois, se é lícito e tão meritório, termos sempre na memória que de Deus temos o ser e que nos criou do nada e nos sustenta e de todos os mais benefícios da Sua morte e trabalhos, que muito antes de nos, criar já os tinha feito por cada um dos que agora vivem, por que não será lícito reconhecer e ver e considerar muitas vezes que costumava falar em vaidades e agora me concedeu o Senhor que não queira falar senão d'Ele? Eis aqui uma jóia que, lembrando-nos que é dada e que já a possuímos, forçosamente convida a amar: este é o fruto da oração fundada na humildade.

Pois, que será quando virem em seu poder outras jóias mais preciosas, como têm já recebido alguns servos de Deus de menosprezo do mundo e até de si mesmos? É claro que se hão-de ter por mais devedores e mais obrigados a servir e entender que não tinham nada disto e a reconhecer a liberalidade do Senhor. A uma alma tão pobre e ruim e de nenhum merecimento como a minha, que bastava a primeira destas jóias e sobrava para mim, quis dar-me mais riquezas do que eu pudera desejar.

6.  É mister haurir daqui forças de novo para servir e procurar não ser ingrato porque, com essa condição, as dá o Senhor. Se não usamos bem do tesouro e do alto estado em que nos põe, Ele no-lo tornará a tirar e ficaremos muito mais pobres; e Sua Majestade dará as jóias a quem com elas brilhe e aproveite a si e aos outros.

Pois, como aproveitará e gastará com largueza quem não entende que está rico? É impossível ―, a meu parecer ―, dada a nossa natureza, ter ânimo para grandes coisas quem não compreende que é favorecido por Deus. É que somos tão miseráveis e tão inclinados às coisas da terra, que mal poderá aborrecer, de facto, tudo o que é cá de baixo e com grande desapego, quem não entender que tem algum penhor lá de cima. É com estes dons que o Senhor nos dá a fortaleza que perdemos com os nossos pecados. E, como poderá desejar que todos se descontentem com ele e o aborreçam, e como praticará todas as demais grandes virtudes que possuem os perfeitos quem não tiver alguma prova do amor que Deus lhe tem, juntamente com uma fé viva? É tão falho de vida este nosso natural que nos deixamos levar pelo que vemos presente; assim estes mesmos favores são os que despertam a fé e a fortalecem. Bem pode ser que eu, como sou tão ruim, julgue por mim. Outros haverá que não precisem mais que da verdade da fé para fazer obras muito perfeitas; mas eu, como miserável, de tudo isto tenho precisado.

7.  Estes, eles o dirão. Eu digo o que passou por mim, conforme me mandaram. Se não estiver bem, rasgá-lo-á aquele a quem isto envio; melhor de que eu, saberá entender o que vai mal. A este suplico, por amor do Senhor, que o que até aqui tenho dito da minha ruim vida e pecados, o publique; desde já lhe dou licença, e a todos os meus confessores, que também o é aquele para quem isto vai. E se quiserem, já em minha vida, para que não se engane mais o mundo, pois pensa que há algum bem em mim. E certo certo, com verdade digo, pelo que agora entendo de mim: dar-me-á grande consolo.

Para o que de aqui em diante disser, não a dou; nem quero, se a alguém o mostrarem, digam quem é, por quem isto passou, nem quem o escreveu. Por isso não me nomeio, nem a ninguém; mas escreverei tudo o melhor que puder para não ser conhecida. E isto, peço-o por amor de Deus. Bastam pessoas tão letradas e graves para autorizar alguma coisa boa, se o Senhor me der graça para a dizer, porque, se o for, será Sua e não minha; pois eu, nem tenho letras, nem boa vida, e não sou ajudada por letrado nem por pessoa alguma. Só os que me mandaram escrever sabem que o escrevo, e ao presente não estão aqui. É quase furtando o tempo e com pena, porque me estorva de tecer, e estou em casa pobre e com muitas ocupações. Ainda assim, se o Senhor me tivesse dado mais habilidade e memória, eu poder-me-ia aproveitar do que tenho ouvido ou lido, mas é pouquíssima a que tenho. Se, pois, algo de bom eu disser, é que o Senhor o quererá para algum bem; o que for mal será meu e V. Mercê o tirará.

Para uma e outra coisa nenhum proveito tem o dizer o meu nome. Em vida, está claro que se não há-de dizer o bem; depois de morta, não há para quê, a não ser para perder autoridade o bem e não se lhe dar nenhum crédito, por ser dito de pessoa tão baixa e tão ruim.

8.  E por pensar que V. Mercê fará isto por amor do Semnhor lhe peço e os demais que o hão de ver, escrevo com liberdade; de outro modo teria grande escrúpulo, menos de dizer meus pecados que, para isto não tenho nenhum. No mais, basta ser mulher para me caírem as asas, quanto mais mulher e ruim. E, assim, tudo o que for mais do que dizer simplesmente a história da minha vida, tome-o V. Mercê só para si ― pois tanto me tem importunado para que escreva alguma declaração das mercês que Deus me faz na oração ― se for conforme às verdades da nossa santa fé católica. E se não, V. Mercê queime-o logo, que a isto me sujeito. Direi, pois, o que se passa em mim para que, sendo conforme a isto, lhe possa ser de algum proveito e, se não for, desenganará a minha alma para que não ganhe o demónio onde me parece que ganho eu. Bem sabe o Senhor, como depois direi, que sempre tenho procurado buscar quem me ilumine.

9.  Por mais claramente que eu queira dizer estas coisas de oração, será bem escuro para quem não tiver experiência. Alguns impedimentos direi que, a meu entender, não deixam ir adiante neste caminho, e outras coisas em que há perigo, e do que o Senhor me tem ensinado por experiência, e que depois tratei com grandes letrados e pessoas espirituais de há muitos anos. E vêem que em só vinte e sete anos ― que há que tenho oração ― e apesar de andarem tantos tropeços e tão mal este caminho ―, metem dado Sua Majestade a experiência como a outros em quarenta e sete e em trinta e sete, que têm caminhado por ele com penitência e grande virtude.

Seja bendito por tudo e sirva-se de mim, por Quem é Sua Majestade, que bem sabe o meu Senhor que não pretendo outra coisa nisto, senão que seja louvado e engrandecido um pouquito por se ver que, em um muladar tão sujo e de mau odor, se fizesse horto de tão suaves flores. Praza a Sua Majestade, que por minha culpa, não as torne eu a arrancar e volte a ser o que era. Isto peço, por amor do Senhor, que o peça V. Mercê, pois sabe quem eu sou com mais clareza do que me deixou aqui dizer.

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