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PONTOS DE REFLEXÃO
A Palavra que a liturgia de hoje nos apresenta convida-nos a
manter com Deus uma relação estreita, uma comunhão íntima, um diálogo
insistente: só dessa forma será possível ao crente aceitar os projectos de Deus,
compreender os seus silêncios, respeitar os seus ritmos, acreditar no seu amor.
O Evangelho sugere que
Deus não está ausente nem fica insensível diante do sofrimento do seu Povo… Os
crentes devem descobrir que Deus os ama e que tem um projecto de salvação para
todos os homens; e essa descoberta só se pode fazer através da oração, de um
diálogo contínuo e perseverante com Deus.
A primeira leitura dá
a entender que Deus intervém no mundo e salva o seu Povo servindo-Se, muitas
vezes, da acção do homem; mas, para que o homem possa ganhar as duras batalhas
da existência, ele tem que contar com a ajuda e a força de Deus… Ora, essa ajuda
e essa força brotam da oração, do diálogo com Deus.
A segunda leitura, sem
se referir directamente ao tema da relação do crente com Deus, apresenta uma
outra fonte privilegiada de encontro entre Deus e o homem: a Escritura Sagrada…
Sendo a Palavra com que Deus indica aos homens o caminho da vida plena, ela deve
assumir um lugar preponderante na experiência cristã.
LEITURA I – Ex
17,8-13a
O que nós temos no Livro do Êxodo não é o retrato de um Deus
injusto e parcial, que ajuda um Povo a derrotar e a chacinar outros povos; mas é
uma catequese em que um Povo, olhando para a sua história numa perspectiva de
fé, constata a presença e a acção de Deus nesse processo de libertação que os
trouxe da escravidão para a liberdade. Os teólogos de Israel quiseram ensinar –
embora servindo-se de formas de expressão típicas da sua época – que Deus não
ficou de braços cruzados diante do sofrimento do seu Povo e que, por isso, veio
ao seu encontro, conduziu-o, deu-lhe forças e permitiu-lhe ser senhor do seu
destino… Portanto, é a Deus que Israel deve agradecer a sua salvação. Hoje,
somos convidados a percorrer um caminho seme-lhante e a descobrir o Deus
libertador vivo e actuante na nossa história, agindo no coração e na vida de
todos aqueles que lutam por um mundo mais justo, mais livre e mais humano.
Israel descobriu que, no plano de Deus, aquilo que oprime e destrói os homens
não tem lugar; e que, sempre que alguém luta para ser livre, Deus está com essa
pessoa e age nela.
É exactamente por a ajuda de Deus ser decisiva na luta por um
mundo mais livre e mais humano que os catequistas de Israel sublinham o papel da
oração… Quem sonha com um mundo melhor e luta por ele, tem de viver num diálogo
contínuo, profundo, com Deus: é nesse diálogo que se percebe o projecto de Deus
para o mundo e se recebe d’Ele a força para vencer tudo o que oprime e escraviza
o homem. A oração que dá sentido e conteúdo à intervenção no mundo faz parte da
minha vida?
LEITURA II – 2
Tim 3,14-4,2
Dizer que a Escritura é inspirada por Deus significa que ela
contém as palavras que Deus quer dirigir-nos, a fim de nos indicar o caminho
para a vida plena… No dizer de Leão XIII, a Escritura é “uma carta outorgada
pelo Pai celeste ao género humano viandante longe da sua pátria, e que os
autores sagrados nos transmitiram” (Providentissimus Deus, nº 4). A Escritura
deve, pois, assumir um lugar prepon-derante na nossa vida pessoal e na vida das
nossas comunidades cristãs. Isso acon-tece? Que lugar ocupa a leitura, a
reflexão e a partilha da Palavra de Deus na minha vida? Que lugar ocupa a
Palavra de Deus na vida e na experiência das nossas comu-nidades cristãs? O que
é que assume um valor mais determinante na experiência cris-tã: as práticas
rituais, as devoções particulares, as leis e os códigos, ou a Palavra de Deus?
Porque a Palavra de Deus aparece envolta em roupagens e géneros
literários típicos de uma época e de uma cultura determinada, é preciso
estudá-la, aprender a conhecer o mundo e a cultura bíblica, compreender o
enquadramento e o ambiente em que o autor sagrado escreve… As nossas comunidades
cristãs têm o cuidado de organizar iniciativas no campo da informação e do
estudo bíblico, de forma a proporcionar aos nossos cristãos uma informação
adequada para compreender melhor a Palavra de Deus? E quando há essa informação,
os nossos cristãos têm o cuidado de a aproveitar? Porquê?
A leitura que nos foi proposta chama, também, a atenção daqueles
que estão ao serviço da Palavra: eles devem anunciá-la em todas as
circunstâncias, sem respeito humano, sem jogos de conveniências, sem atenuarem a
radicalidade da Palavra; e devem, também, preparar-se convenientemente, a fim de
que a Palavra se torne atraente e chegue ao coração dos que a escutam… É assim
que procedem aqueles a quem a Igreja confia o serviço da Palavra?
EVANGELHO – Lc
18,1-8
Porque é que Deus permite que tantos milhões de homens
sobrevivam em condições tão degradantes? Porque é que os maus e injustos
praticam arbitrariedades sem conta sobre os mais débeis e nenhum mal lhes
acontece? Como é que Deus aceita que 2.800 milhões de pessoas (cerca de metade
da humanidade) vivam com menos de três euros por dia? Como é que Deus não
intervém quando certas doenças incuráveis ameaçam dizimar os pobres dos países
do quarto mundo, perante a indiferença da comunidade internacional? Onde está
Deus quando as ditaduras ou os imperialismos maltratam povos inteiros? Deus não
intervém porque não quer saber dos homens e é insensível em relação àquilo que
lhes acontece? É a isto que o Evangelho de hoje procura responder… Lucas está
convicto de que Deus não é indiferente aos gritos de sofrimento dos pobres e que
não desistiu de intervir no mundo, a fim de construir o novo céu e a nova terra
de justiça, de paz e de felicidade para todos… Simplesmente, Deus tem projectos
e planos que nós, na nossa ânsia e impaciência, não conseguimos perceber. Deus
tem o seu ritmo – um ritmo que passa por não forçar as coisas, por respeitar a
liberdade do homem… A nós resta-nos respeitar a lógica de Deus, confiar n’Ele,
entregarmo-nos nas suas mãos.
Para que Deus e os seus projectos façam sentido ou, pelo menos,
para que a aparente falta de lógica dos planos de Deus não nos lancem no
desespero e na revolta, é preciso manter com Ele uma relação de comunhão, de
intimidade, de diálogo. Através da oração, percebemos quem Deus é, percebemos o
seu amor e a sua misericórdia, descobrimos a sua bondade e a sua justiça… E,
dessa forma, constatamos que Ele não é indiferente à sorte dos pobres e que tem
um projecto de salvação para todos os homens. A oração é o caminho para
encontrarmos o amor de Deus.
O diálogo que mantemos com Deus não pode ser um diálogo que
interrompemos quando deixamos de perceber as coisas ou quando Deus parece
ausente; mas é um diálogo que devemos manter, com perseverança e insistência.
Quem ama de verdade, não corta a relação à primeira incompreensão ou à primeira
ausência. Pelo contrário, a espera e a ausência provam o amor e intensificam a
relação.
A oração não é uma fórmula mágica e automática para levar Deus a
fazer-nos as “vontadinhas”… Muitas vezes, Deus terá as suas razões para não dar
muita importância àquilo que Lhe pedimos: às vezes pedimos a Deus coisas que nos
compete a nós conseguir (por exemplo, passar nos exames); outras vezes, pedimos
coisas que nos parecem boas, mas que a médio prazo podem roubar-nos a
felicidade; outras vezes, ainda, pedimos coisas que são boas para nós, mas que
implicam sofrimento e injustiça para os outros… É preciso termos consciência
disto; e quando parece que Deus não nos ouve, perguntemos a nós próprios se os
nossos pedidos farão sentido, à luz da lógica de Deus.
Padre José Granja,
Reitor da Basílica dos Congregados, Braga. |