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PONTOS DE REFLEXÃO
PRIMEIRA LEITURA
ISm
16,lb.4.6-7.10-13a
Depois de
Abraão e Moisés, a liturgia quaresmal propõe-nos a figura de David, o
pequeno pastor de Belém sagrado rei de Israel. O Povo de Deus, fixado na
terra prometida aos antepassados, no meio de muitas dificuldades, espera
um Messias, isto é, um «ungido», um consagrado que lhe dê unidade, paz e
segurança, um rei segundo o coração de Deus e não segundo os homens (cf.
v. 7). Saul, na sua grandeza, é rejeitado da linha do plano salvífico
divino (cf. v. 1); será o pequeno David a ser «ungido com óleo no meio
dos irmãos». (Cf. v. 13)
A cena, na
pequena Belém, retrata o tema da «pequenez». Não é o primogénito, nem os
sete filhos mais velhos de Jessé, que o pai apresenta ao profeta, que
são escolhidos por Deus para a unção, mas sim o oitavo, o mais novo,
aquele em quem ninguém sequer pensa (cf. w. 6-11).
Um coração
humilde e aberto para Deus: isto é o que David pode apresentar ao
Senhor, e que o Senhor bem vê e acolhe, no interior de uma categoria, a
do pastor, que, ao de lá das imagens idílicas a que estamos habituados,
no mundo judaico era julgada uma das mais vis. Este nada aos olhos do
homem é grande aos olhos de Deus: este nada que o homem pode dar é
apresentado à unção sagrada.
Então David
(«louro, de belos olhos e agradável presença»: cf. v. 12, «ungido do
Senhor», do qual «o Espírito se apoderou»: cf. v. 13), torna-se figura
de Cristo, encarnado também Ele na pequenez, que no Baptismo nos
comunica a Sua dignidade real, profética e sacerdotal.
SEGUNDA LEITURA
Ef
5,8-14
Na parte
parenética, a Carta aos Efésios extrai para os cristãos as consequências
práticas (caps. 4-6) dos princípios cristológicos descritos na parte
doutrinal (caps. 7-8). Contra o perigo proveniente de tendências que
conduziam à desagregação e de algumas ideias que atribuíam a poderes
celestes uma importância que rivalizava com o primado de Cristo, Paulo
reafirma o papel único e unificador de Cristo na Criação e na Redenção.
Quem se abriu à luz de Cristo não pode ter nada em comum com as trevas.
Antes de
Cristo e fora de Cristo vencia o pecado, vencia a morte, vencia a
inimizade, o homem velho com todas as suas paixões enganadoras e os seus
ídolos privados: mentira, discórdia, avidez... O homem velho é «treva»;
o homem novo, em Cristo, é «luz». É forte a expressão utilizada pelo
Apóstolo: os cristãos «não estão na luz», eles mesmos «são luz»,
enquanto participantes da luz que é Cristo. Semiticamente, podem
dizer-se «filhos da luz», isto é, pertencentes a esfera do luminoso (cf.
v. 8).
Toda a
qualidade comporta consequências precisas, assim os frutos da luz são
«bondade, justiça e verdade», (v. 9)
Só «aquilo
que é agradável ao Senhor» deve ser procurado; ser complacente para com
as obras das trevas, estéreis e ignóbeis, serviria para as exaltar (cf.
w. 10-12). Uma condenação franca das realidades obscuras que serpenteiam
na comunidade dos homens leva-os, pelo contrário, à luz e revela-as pelo
que valem (cf. v. 13).
EVANGELHO
Jo 9,1-41
O Evangelho
de João penetra cada vez mais no mistério de Jesus, «pão da vida» (cap.
6), «nascente da água da vida» (cap. 7), «Eu Sou» de Deus (cap. 8). O
episódio de hoje toma partido de uma dupla situação carregada de
simbolismo: a festa dos Tabernáculos, dia festivo com grandes
iluminações, e a cegueira de um homem, mergulhado nas trevas. Na
verdade, as luzes rituais não conseguem iluminar as trevas do pecado e
da morte, enquanto a cegueira física não pode resistir à iluminação
divina.
A doença,
enquanto estado de necessidade, pode ser condição privilegiada para
receber luz (cf. w. 1-3), a luz que é Cristo, embora pareça que as
trevas é que vencem (cf. w. 4-5).
O «lodo
feito com saliva» (cf. v. 6) é uma antiga prática terapêutica, mas
recorda também a terra com a qual Deus plasmou o homem animando-o com o
seu sopro (cf. Gn 2,7).
Indica portanto uma nova criação, expressa no antigo rito baptismal da
unção com a saliva. A ablução na piscina (cf. v. 7) é também uma
evocação do Baptismo: ia-se buscar a piscina de Siloé a água ritual,
embora ineficaz até avinda de Jesus, verdadeiro «enviado» (assim se
traduz o nome «Siloé») do Pai.
Enquanto os
fariseus se encarniçam contra Jesus (cf. w. 13. 16.24), os pais do cego
entrincheiram-se por detrás da recusa de responsabilidades (cf. w.
20-23). Mas a presença do Mestre não deixa ninguém neutro, não existem
compromissos entre a luz e as trevas a partir do momento em que Jesus se
declara «Filho do homem», (w. 35-38) A verdadeira cegueira é a interior,
que não se deixa iluminar pela verdade (cf. w. 39-41).
Este é um
domingo luminoso, outrora chamava-se dominica
laetare pela sua
peculiaridade em sublinhar que a vida cristã é
penitência, mas também alegria (antífona de entrada; oração sobre as
oblatas). A alegria do caminho pascal exprime-se no
tema da «luz»: a luz é vida, é
alegria, é Cristo (aclamação antes
do Evangelho),
e o percurso quaresmal é viagem em
direcção à luz, redescoberta
da luz que no Baptismo foi acesa para nós no círio pascal.
A primeira leitura
não explicita o tema da luz, mas chama a
nossa atenção para o dom
do Espírito e para a consagração que
é efeito da luz de Cristo
e que nos foi conferida no Baptismo.
Além disso, a menção de
David remete-nos para Salomão, seu
filho, ungido rei nas
cercanias da piscina de Siloé (cf. IRs 1,38--40),
e isso introduz-nos no signo da iluminação (Evangelho). «Sinais»,
não «milagres»: é assim que João denomina os gestos
de Jesus. Não provas de portentos espantosos ou de receitas
para as nossas necessidades, mas indícios duma realidade
que é Cristo; apelos à fé
e não ao assombro: a nível de fé não devemos
procurar a manipulação de um «Deus-Génio-da-lâmpada» que faça a nossa
vontade, mas a abertura às exigências do Reino, para que a Sua vontade
seja feita... É esta a luz de que precisamos num mundo que, graças à
técnica, se encheu de luz e de efeitos especiais: a escuridão foi
vencida, as distâncias anuladas, um mundo virtual está ao nosso alcance.
Os nossos pais ou avós liam à luz da candeia ou de candeeiro a
petróleo... Mas à luz artificial, companhia habitual da nossa vida,
juntou-se um crescimento de luz interior, feita de valores, de
solidariedade, de caridade? Como os fariseus, como os pais do cego,
temos a luz dos olhos em abundância, mas somos capazes de abrir os olhos
da alma? Não nos vermos diante de Jesus por causa da fé (quantos no
episódio evangélico O viram e não acreditaram!), mas reconhecê-TO na
Palavra, no encontro. Não a sede de portentos, mas o encontro com Jesus
através da Palavra da vida, do pão da vida, do amor fraterno é que
conduz das trevas para a fé de que Ele é o Filho de Deus. O homem
nascido cego, agora um homem novo, sabe pagar as consequências da
novidade do Espírito de iluminação, a ponto de ser expulso do Templo. O
cristão não pode ceder a compromissos (segunda leitura): a sua
própria vida julga o mundo, e por vezes são necessárias palavras claras,
uma tomada de posição aberta às muitas perversões de que o nosso mundo
está cheio, mas sem ter de cair na teimosia e na intolerância para com
as pessoas. O Baptismo desperta-nos de um sono de morte, chama-nos a
deixar passar através de nós a luz de Cristo. Esta liturgia
compromete-nos a acabar com os compromissos, com as trevas e até com a
penumbra, a dar um passo resoluto em direcção à luz, desfazendo, com um
acto penitencial, aqueles resíduos de sombra, aquelas zonas escuras que
podem intrometer-se entre nós e a luz da Páscoa.
Padre José Granja,
Reitor da Basílica dos Congregados, Braga. |