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PONTOS DE REFLEXÃO
PRIMEIRA
LEITURA
Ex 17,3-7
O Êxodo é o
livro da libertação: libertação de toda a escravidão, libertação para
viver livremente o serviço de Deus. Israel é libertado, fez Páscoa,
saindo do Egipto através do mar, mas tem ainda um caminho a percorrer,
deve ainda libertar-se dentro de si, da saudade da escravidão, das peias
do homem velho. O caminho do Sinai, em direcção à aliança a estipular
com o Senhor, é um deserto seco, sedento de água. E a água dadora de
vida pode vir só de Deus.
O deserto é
o espaço em que as forças do homem, os recursos humanos, não bastam. Por
isso deveria ser o lugar da confiança, e pelo contrário é frequentemente
o lugar da murmuração, da rebelião surda da acusação, que julga apanhar
em falso o desígnio de Deus e o distorce numa falsa chave de leitura,
interpretando-o como má vontade contra si (cf. v. 3).
Ao
contrário do povo de Israel, embora no desalento, Moisés não vacila até
cair. Ele sabe que o seu interlocutor é Deus (v. 4). O bastão com que
tinha batido nas águas do Nilo tornando-as fonte de morte, numa lógica
de fé torna-se agora o bastão que faz brotar da rocha a «água» viva «à
vista dos anciãos», testemunhas do nascimento para uma vida nova (w.
5-6).
Por esta
fé, o povo reviverá. Mas o nome de «Massa e Meriba» (literalmente:
«prova e contestação»), fica como recordação dolorosa de como é fácil
para o homem alterar as situações e pretender pôr à prova o Senhor, em
vez de se deixar conduzir por Ele (v. 7).
SEGUNDA
LEITURA
Rm
5,1-2.5-8
A Carta aos
Romanos, depois de ter sublinhado com grande vigor que a salvação vem só
da fé e não das obras da Lei (cf.
Rm 1-4), aprofunda agora a dinâmica da Salvação obtida pelo
crente: no Baptismo, com a libertação do pecado, da morte e da coacção
da Lei, o cristão adquire na liberdade a condição de filho de Deus, para
viver uma vida nova no Espírito: vida nova que custou a morte de Cristo.
A fé, que é
adesão a Cristo, «justifica» o crente, isto é, coloca-o na justa relação
com Deus, uma relação de salvação que dá «paz» e «graça» e que abre à
«esperança». (Cf. w. 1-2)
A esperança
é certeza que «não engana», estando fundada no dom do Espírito, que é
princípio interior de vida nova, «amor de Deus já derramado em nossos
corações» como água viva; o simbolismo da água, dominante nos outros
textos, aqui é implícito na imagem do «derramar». (Cf. v. 5)
E o amor de
que se fala não é coisa desprezível, sentimentalismo medíocre: está
encarnado na morte de Cristo pelos pecadores, desprezadores do próprio
amor de Deus. Não há pecado que resista: em Cristo, a lógica humana
normal, a justiça retributiva já não vale. O pensamento de Paulo avança
por um paradoxo: quem desprezaria a sua vida morrendo por um criminoso?
Porventura alguém o faria por uma pessoa de bem? Mas o amor de Deus
demonstra ser totalmente absurdo: Cristo deu a Sua vida pelos ímpios
(cf. w. 6-8).
EVANGELHO
Jo
4,5-42
Jesus vai
contracorrente: da Judeia sobe para Norte através duma região evitada
pelos judeus, porque era tradicionalmente hostil; e o encontro com a
samaritana, começado com uma banal situação de repouso (um homem cansado
junto de um poço), transforma-se numa entusiasta profissão de fé unânime
em Cristo; do encontro momentâneo com um desconhecido até à permanência
de Jesus na comunidade dos novos crentes.
De
descoberta em descoberta, são três os temas condutores deste texto
evangélico:
O dom da
água viva. Não é a história de Israel (o «poço» de Jacob: cf. w. 5-6)
nem a Lei (a «bilha posta de lado»: cf. v. 28) que dão a vida eterna,
mas a pessoa de Cristo e a efusão do Espírito (cf.w. 13-14).
A adoração
autêntica do Pai. A partir da materialidade do «lugar» sacralizado (cf.
w. 20-21), o crente é chamado a elevar-se à «adoração em espírito e
verdade». (Cf. w. 21-24) Jesus não condena o culto exterior, mas ensina
a interiorizá-lo: o «espírito» é o princípio de uma oração viva,
alimentada pela «verdade» que é o próprio Cristo.
3) A
universalidade da salvação. O alimento de Jesus é «fazer a vontade do
Pai», vontade de salvação (cf. w. 34-38). A fé espontânea destes
vizinhos incómodos que são os samaritanos, abertos a uma salvação que
não é apenas a de um povo, mas do «mundo» inteiro (cf. w. 39-42),
anuncia a fé «à distância» dos pagãos, que acreditarão sem precisarem de
ver (temos o exemplo disso no funcionário real: cf. Jo 4,46-53).
O
caminho da liberdade é fatigante: a Quaresma é um monte
que devemos subir, mas também
uma fonte a que temos de descer, uma água baptismal a que devemos
voltar. A «água» é desejada por quem está no deserto, como a própria
vida, mas onde encontrá-la? É uma dádiva: brota de uma «rocha de
salvação» que é o próprio Deus, e que ao mesmo tempo é anúncio da água
viva que é Cristo.
Em
contraposição, o ambiente em que a frescura da água emerge como um
prodígio, é ainda o deserto, o lugar desolado da prova: deve entender-se
biblicamente não como um teste a que
Deus submete o homem para verificar se e quando é valente e
resiste, mas como angústia que purifica, que faz
crescer. Assim aconteceu com Abraão
sobre o monte, assim aconteceu com Moisés e com o seu povo no vazio
pavoroso do deserto (primeira leitura).
Também
nós, como Israel, como a samaritana do Evangelho,
caminhamos numa aridez de alma
em que não temos o refrigério da presença material da água. O encontro
pessoal com Jesus, que nos convida a escavar na nossa vida, sacode,
desperta a sede de uma água misteriosa (cf. Jo 4,11-15), que se
revela ser Cristo (cf. 4,10.26).
Partindo da desconfiança devida
à presença de estranhos (4,9), a samaritana (e nós com ela)
faz a experiência d’Aquele a que chama «Senhor» e «Profeta»
(4,15.19), e finalmente acolhe como «Messias» (4,25-26.29), o
«Eu Sou» de Deus (cf. Ex 3,14).
E o
encontro de fé gera a missão: com a Samaritana, somos despertados de uma
vida mesquinha da qual quereríamos desviar a atenção (cf. Jo 4,16-18),
para chegarmos ao reconhecimento de nós próprios (cf. 4,19.29), até à
abertura do testemunho na comunidade (cf. 4,28-29). Jesus rompe os esquemas
humanos para que a salvação irrompa em toda a parte: eis que um lugar sagrado, triste memória de uma luta entre
dois povos, se torna fonte de paz; eis que o mundo inteiro, no
«espírito», se torna templo de Deus; eis que uma criatura duplamente
descriminada, porque pertencente a um povo de
excomungados e porque é mulher (os
rabinos não ensinavam as mulheres, julgando isso tempo perdido),
torna-se instrumento de graça junto dos seus.
Na sede de
um homem cansado, Jesus faz-se pobre e vem ao nosso encontro para
despertar em nós a «sede» e tornar-nos ricos da Sua abundância.
Repararmos que temos sede é necessário
para nos pormos a caminho em direcção à água, com a certeza de
que ela existe. E a sede? «Que é que a sede demonstra? A sede demonstra
a certeza absoluta da existência de água.» A sede mesmo inconsciente do
Espírito impele-nos a sair do
imobilismo interior, a colocarmos em questão e
a suspirar pela dádiva imerecida, «o
amor de Deus derramado nos nossos corações» (segunda leitura: Rm
5,5), para que dali se
derrame e gere ao nosso redor frutos de vida eterna, como
fonte de água impetuosa que as nossas
cisternas rachadas não poderiam conter (cf. Jr
2,13).
Eis a
responsabilidade e o compromisso a que nos chama a
liturgia: predispormo-nos a acolher ciosamente o dom vivo e
fresco da fé, mas com a vontade de a querer comunicar.
Padre José
Granja,
Reitor da Basílica dos Congregados, Braga. |