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PONTOS DE
REFLEXÃO
1ª- Leitura. (Gen
22,1-2.9a.10-13.15-18)
O comportamento de Abraão face a esta
“crise” revela, antes de mais, o lugar absolutamente central que Deus ocupa na
sua existência. Deus é, para Abraão, o valor máximo, a prioridade fundamental;
por isso, Abraão mostra-se disposto a fazer a Deus um dom total e irrevogável de
si próprio, da sua família, do seu futuro, dos seus sonhos, das suas aspirações,
dos seus projectos, dos seus interesses. Para Abraão, nada mais conta quando
estão em jogo os planos de Deus… Na vida do homem do nosso tempo, contudo, nem
sempre Deus ocupa o lugar central que Lhe é devido. Com frequência, o dinheiro,
o poder, a carreira profissional, o reconhecimento social, o sucesso, ocupam o
lugar de Deus e condicionam as nossas opções, os nossos interesses, os valores
que nos orientam. Abraão, o crente para quem Deus é a coordenada fundamental à
volta da qual toda a vida se constrói convida-nos, nesta Quaresma, a rever as
nossas prioridades e a dar a Deus o lugar que Ele merece.
Na sua relação com Deus, o crente
Abraão manifesta uma vasta gama de “qualidades” – a reverência, o respeito, a
humildade, a disponibilidade, a obediência, a confiança, o amor, a fé – que o
definem como o crente “ideal”, o modelo para os crentes de todas as épocas.
Neste tempo de preparação para a Páscoa, são estas “qualidades” que nos são
propostas, também. É preciso que realizemos um caminho de conversão que nos
torne cada vez mais atentos e disponíveis para acolher e para viver na
fidelidade aos planos de Deus.
O crente Abraão ensina-nos, ainda, a
confiar em Deus, mesmo quando tudo parece cair à nossa volta e quando os
caminhos de Deus se revelam estranhos e incompreensíveis. Quando os nossos
projectos se desmoronam, quando as nuvens negras da guerra, da violência, da
opressão se acastelam no horizonte da nossa existência, quando o sofrimento nos
leva ao desespero, é preciso continuar a caminhar serenamente, confiando nesse
Deus que é a nossa esperança e que tem um projecto de vida plena para nós e para
o mundo.
A ideia de que a obediência de Abraão
é fonte de vida para ele, para a sua família e para “todas as nações da terra”,
deve ser uma espécie de “selo de garantia” que atesta a validade deste caminho.
Fazer de Deus o centro da própria existência e renunciar aos próprios critérios
e interesses para cumprir os planos de Deus não é uma escravidão, mas um caminho
que nos garante (a nós e aos nossos irmãos) o acesso à vida plena e verdadeira.
2ª- Leitura. (Rom
8,31b-34)
Para Paulo, há uma constatação
incrível, que não cessa de o espantar: Deus ama-nos com um amor profundo, total,
radical, que nada nem ninguém consegue apagar ou eliminar. Esse amor veio ao
nosso encontro em Jesus Cristo, atingiu a nossa existência e transformou-a,
capacitando-nos para caminharmos ao encontro da vida eterna. Ora, antes de mais,
é esta descoberta que Paulo nos convida a fazer… Nos momentos de crise, de
desilusão, de perseguição, de orfandade, quando parece que todo o mundo está
contra nós e que não entende a nossa luta e o nosso compromisso, a Palavra de
Deus grita: “não tenhais medo; Deus ama-vos”.
Descobrir esse amor dá-nos a coragem
necessária para enfrentar a vida com serenidade, com tranquilidade e com o
coração cheio de paz. O crente é aquele homem ou mulher que não tem medo de nada
porque está consciente de que Deus o ama e que lhe oferece, aconteça o que
acontecer, a vida em plenitude. Pode, portanto, entregar a sua vida como dom,
correr riscos na luta pela paz e pela justiça, enfrentar os poderes da opressão
e da morte, porque confia no Deus que o ama e que o salva.
EVANGELHO. (Mc
9,2-10)
A questão fundamental expressa no
episódio da transfiguração está na revelação de Jesus como o Filho amado de
Deus, que vai concretizar o projecto salvador e libertador do Pai em favor dos
homens através do dom da vida, da entrega total de Si próprio por amor. Pela
transfiguração de Jesus, Deus demonstra aos crentes de todas as épocas e lugares
que uma existência feita dom não é fracassada – mesmo se termina na cruz. A vida
plena e definitiva espera, no final do caminho, todos aqueles que, como Jesus,
forem capazes de pôr a sua vida ao serviço dos irmãos.
Na verdade, os homens do nosso tempo
têm alguma dificuldade em perceber esta lógica… Para muitos dos nossos irmãos, a
vida plena não está no amor levado até às últimas consequências (até ao dom
total da vida), mas sim na preocupação egoísta com os seus interesses pessoais,
com o seu orgulho, com o seu pequeno mundo privado; não está no serviço simples
e humilde em favor dos irmãos (sobretudo dos mais débeis, dos mais
marginalizados, dos mais infelizes), mas no assegurar para si próprio uma dose
generosa de poder, de influência, de autoridade, de domínio, que dê a sensação
de pertencer à categoria dos vencedores; não está numa vida vivida como dom, com
humildade e simplicidade, mas numa vida feita um jogo complicado de conquista de
honras, de glórias, de êxitos. Na verdade, onde é que está a realização plena do
homem? Quem tem razão: Deus, ou os esquemas humanos que hoje dominam o mundo e
que nos impõem uma lógica diferente da lógica do Evangelho?
Por vezes somos tentados pelo
desânimo, porque não percebemos o alcance dos esquemas de Deus; ou então, parece
que, seguindo a lógica de Deus, seremos sempre perdedores e fracassados, que
nunca integraremos a elite dos senhores do mundo e que nunca chegaremos a
conquistar o reconhecimento daqueles que caminham ao nosso lado… A
transfiguração de Jesus grita-nos, do alto daquele monte: não desanimeis, pois a
lógica de Deus não conduz ao fracasso, mas à ressurreição, à vida definitiva, à
felicidade sem fim.
Os três discípulos, testemunhas da
transfiguração, parecem não ter muita vontade de “descer à terra” e enfrentar o
mundo e os problemas dos homens. Representam todos aqueles que vivem de olhos
postos no céu, alheados da realidade concreta do mundo, sem vontade de intervir
para o renovar e transformar. No entanto, ser seguidor de Jesus obriga a
“regressar ao mundo” para testemunhar aos homens – mesmo contra a corrente – que
a realização autêntica está no dom da vida; obriga a atolarmo-nos no mundo, nos
seus problemas e dramas, a fim de dar o nosso contributo para o aparecimento de
um mundo mais justo e mais feliz. A religião não é um ópio que nos adormece, mas
um compromisso com Deus, que se faz compromisso de amor com o mundo e com os
homens.
Padre José Granja,
Reitor da Basílica dos Congregados – Braga |