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Pontos de reflexão
PRIMEIRA
LEITURA, Gn
12,l-4a
Os
primeiros capítulos do Génesis deixam ver, no homem, o
ofuscamento da imagem divina causado
pelo pecado, com todas as
suas tristes consequências. Com o capítulo 12, finalmente, para a
Humanidade mergulhada nas trevas abre-se uma réstia de luz:
não é ainda luz dos olhos, mas luz da Palavra de Deus no silêncio
do coração. Com a vocação de Abraão,
com a sua silenciosa resposta
de fé, começa a história da Salvação, o caminho de regresso de
todas as famílias da terra à comunhão com o Pai.
O
chamamento divino transforma a vida de um sedentário idoso: a partir
deste momento, Abraão inicia uma caminhada que o levará longe, sem
radicações, sem arrependimentos, mas
que não será sempre plana e rápida. A força do desapego que lhe é
pedido por Deus, da mais genérica «terra», da «família» mais
estreita, até da íntima «casa de seu
pai» (cf. 12,1), cava cada vez mais em profundidade. Abraão é
convidado a desenraizar-se de um passado sereno e de um presente certo,
para ir para um futuro indeterminado, para uma terra que jamais apertará
nas suas mãos, para uma inumerável
descendência, paradoxal para um velho
marido de uma esposa anciã estéril. Daí em diante, só o ponto de
partida será certo.
E o caminho
de Abraão não só leva a um futuro que ele não conhece e no qual apenas
pode confiar: é também um caminho em subida, que levará o Patriarca ao
monte do sacrifício, onde, sem poder contemplar-Lhe o rosto, mais uma
vez colocará tudo nas mãos de Deus.
SEGUNDA
LEITURA, 2Tm, 1,8b-10
A Segunda
Carta a Timóteo pertence à tardia maturidade da Igreja apostólica e
apresenta-se escrita por um Paulo chegado já ao termo da sua caminhada,
na situação de preso, preâmbulo do seu martírio. Por isso, da condição
privilegiada de «mártir do Evangelho» (cf. v. 8), o Apóstolo pode
exortar Timóteo a viver na essencialidade a Palavra que proclama e
guarda; com confiança, porque em Cristo já se manifestou visivelmente a
salvação, independentemente dos méritos do homem.
A condição
de sofrimento pode parecer a menos apta para servir o Evangelho, pode
desencorajar. Por isso Paulo sente a necessidade de convidar Timóteo a
persistir no seu testemunho de Cristo, unindo-se aos sofrimentos do
Apóstolo (cf. v. 8).
Este apelo,
que sacode a «timidez» de Timóteo, não se apoia sobre «obras»
meritórias, mas sobre uma «vocação» à santidade, que deriva do projecto
de Deus (cf. v. 9). Tudo no homem é vocação: o chamamento à vida, a
viver na liberdade, no amor; e a vida inteira é «resposta». Aqui, a
liberdade humana parece embater contra uma espécie de «predestinação»
divina: se o Omnipotente delineia desde a eternidade o nosso caminho,
poderemos nós recusá-lo? Sim, porque a vocação é um apelo, não uma
obrigação. Da eternidade não vem para nós a obrigação, mas a oferta da
graça, revelada para nós no esplendor de Cristo Jesus. Ele manifestou-Se
nosso Salvador, vencedor da morte e dador de imortalidade: tudo isso
refulge no seu «Evangelho», Palavra de vida (cf. v. 10).
EVANGELHO, Mt.
17,1-9
A
Transfiguração antecipa a luz da Ressurreição, enquanto Jesus se dirige
da Galileia para Jerusalém. Iniciando a caminhada que O levará à Cruz, o
Mestre reúne-se com os discípulos para os introduzir gradualmente no
mistério do sofrimento e da glória do Filho do homem. Novo Moisés, dum
novo Sinai (tradicionalmente identificado com o Tabor), Jesus, envolvido
numa grande luz, revela-se Filho de Deus.
Jesus
revela a Pedro, Tiago e João, futuras colunas da Igreja (cf. v. 1), uma
glória que refulge no Seu «rosto resplandecente como o sol», não já
reflexo da luz divina (como aconteceu com Moisés: cf. Ex 34,29-35), mas
fonte da própria «luz» (v. 2). «Moisés e Elias», as antigas Escrituras,
testemunham que Jesus é o Messias esperado por Israel (v. 3); a «voz» do
Pai que O proclama «Filho» convida a «escutá-1'O» (v. 5).
A
Transfiguração, breve revelação da luz divina encarnada na opacidade da
natureza humana, não é momento de auto-exaltação, mas é dádiva feita aos
discípulos chamados a serem, por sua vez, anunciadores.
É
ingenuidade o desejo de reservar para si mesmo essa luz (cf. v. 4): não
a felicidade da visão, mas a fadiga da «escuta» é o que resta aos
discípulos na sequela de Cristo. Só Ele, Palavra de Deus, permanece
quando o êxtase cessa e volta o temor da majestade pressentida (cf. w.
6-8). E Jesus volta a descer, com os Seus discípulos, para
cumprir uma caminhada dolorosa, através da qual, somente, a luz
triunfará (cf. v. 9).
O primeiro
domingo da Quaresma recordou-nos essa realidade de Criação e de pecado
que é o homem. O segundo domingo faz-nos olhar para o alto: viver a
Quaresma é subir a um monte, ao
encontro de Cristo Transfigurado. O monte é
um lugar de todo especial: demasiado
rude para ser habitação do homem, mas também demasiado terreno
para ser morada de Deus, é um meio-termo em que Deus e o homem se encontram,
o homem com uma subida penosa, e Deus com uma descida humilde. Só
quem aposta a sua vida naquele que é
fiel (salmo responsorial) pode chegar ao cume. Abraão
corre o risco da fé, e pela sua fé a terra inteira, já transformada em
deserto, transforma-se em lugar de bênção
(primeira leitura).
Abraão não «vê» ainda, mas «sabe»: na
descendência numerosa, acreditada por fé, ele no seu coração
contempla exultando o dia do Messias (cf. Jo 8,56). Aquilo que para
Abraão foi portanto uma vocação para caminhar na escuridão, para o
cristão é chamamento a caminhar na luz,
porque o rosto de Deus já se
manifestou em Cristo Jesus; é o
que nos diz a segunda leitura,
unindo o tema da vocação ao da manifestação do Salvador.
No monte, o
rosto de Jesus resplandece como rosto do «Filho», revelado pelo «Pai»; a nuvem, sinal do poder do «Espírito»,
envolve também os discípulos introduzindo-os na comunhão
das Pessoas divinas (Evangelho). E o Filho, no qual o Pai
coloca a sua complacência, é doado:
«Escutai-O» (aclamação
ao Evangelho).
O coração desta liturgia é
o convite a escutar
Jesus-Palavra, que cumpre
em si as Escrituras: «Palavra» única
do Pai, e também única «tenda», a única morada de Deus entre os homens,
«Palavra» dura também, que da doçura do monte, embora necessária para
aliviar na oração, nos volta a impelir para um caminho de serviço.
O episódio
da Transfiguração, encastoado entre dois anúncios
da Paixão, termina com a descida, com o regresso ao dia-a-dia da
vida. Chamados a seguir o Ressuscitado, também nós, como os Apóstolos,
devemos compreender que a contemplação não é evasão da vida, nem
condução de uma vida paralela: a sequela de Cristo reconduz-nos à aridez
da nossa terra de serviço, embora não estejamos já sozinhos, porque Ele
desce do monte connosco, e o nosso caminho é transfigurado porque é
marcado pela experiência de Cristo. A vida humana não é abandonada a si
mesma: traz consigo a luz do Reino, a vida nova que, se não pode mudar
os acontecimentos, já pode mudar o nosso coração e iluminar o mundo com
um olhar novo. O rosto transfigurado
de Cristo está escondido no
rosto desfigurado do irmão pobre ou enfermo, mas nós próprios
somos chamados a demonstrar aos irmãos, através
do nosso rosto ferido pela vida, a
luz do Ressuscitado. O compromisso sugerido pela liturgia pode
ser a aceitação das fadigas,
porventura dos sofrimentos de cada dia, com um novo olhar de fé.
Padre José
Granja,
Reitor da Basílica dos Congregados, Braga. |