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PONTOS DE REFLEXÃO
LEITURA I – Gn
9,8-15
O nosso texto
propõe-nos os termos de uma Aliança, oferecida por Jahwéh à nova humanidade
(representada por Noé e sua família, presente e futura) e a todos os seres
criados (representados pelos animais que saíram da Arca). Nela, Deus
compromete-Se a depor o seu “arco de guerra” e a garantir a perenidade da ordem
cósmica. A Aliança com Noé apresenta-se, no entanto, como uma Aliança
completamente diferente da Aliança feita com Abraão, ou da Aliança feita com
Israel no Sinai, ou de qualquer outra Aliança que Jahwéh fez com os homens. Nas
outras Alianças, um indivíduo ou um Povo eram chamados a uma relação de comunhão
com Deus e aceitavam ou não esse desafio; se o indivíduo ou o Povo em causa não
aceitassem, não haveria relação e, portanto, não haveria Aliança… Ao contrário,
a Aliança de Jahwéh com Noé não implica nenhuma adesão ou reconhecimento da
parte do homem, nem implica qualquer promessa, por parte do homem, no sentido de
não voltar a percorrer caminhos de corrupção e de pecado. A Aliança que Jahwéh
faz com Noé aparece, assim, como um puro dom de Deus, um fruto do seu amor e da
sua misericórdia. É uma Aliança incondicional e sem contrapartidas, que resulta
exclusivamente da bondade e da generosidade de Deus. O sinal desta Aliança será
o arco-íris. Em hebraico, a mesma palavra (“qeshet”) designa o “arco-íris” e o
“arco de guerra”… Jogando com esta duplicidade, o teólogo sacerdotal, autor
deste texto, sugere que Jahwéh pendurou na parede do horizonte o seu “arco de
guerra”, a fim de demonstrar ao homem as suas intenções pacíficas. O
“arco-íris”, sinal belo e misterioso que toca o céu e a terra, é o “arco” de
Jahwéh, através do qual a bondade de Deus abraça o mundo e os homens. O
“arco-íris é assim, para o teólogo sacerdotal, um sinal que sugere a vontade que
Deus tem de oferecer a paz a toda a criação.
LEITURA II – 1
Pe 3,18-22
Na verdade, Cristo
veio a este mundo, partilhou as nossas dores e limitações, a fim de realizar o
projecto de salvação que o Pai tinha para os homens. Ele que era justo e bom
aceitou morrer para conduzir todos os homens – mesmo os maus e os injustos – ao
encontro da vida verdadeira, da felicidade plena. A sua morte não foi um
fracasso, pois a sua existência não terminou no sepulcro; vivificado pelo
Espírito, Ele alcançou de novo a vida e a glória (vers. 18) e “foi pregar aos
espíritos que estavam na prisão da morte e tinham sido outrora rebeldes” (vers.
19-20. A afirmação não é totalmente clara. Provavelmente, refere-se à velha
verdade proclamada no credo cristão de que Jesus ressuscitado teria descido “à
mansão dos mortos” para libertar todos aqueles que eram prisioneiros da morte).
A morte e a ressurreição de Cristo tiveram uma dimensão salvadora que atingiu
toda a humanidade, mesmo essa humanidade pecadora que conheceu o dilúvio, no
tempo de Noé. No dilúvio, o pecado foi afogado e da água ressurgiu uma nova
humanidade. A água do dilúvio pode, assim, ser para os crentes uma figura do
Baptismo. Pelo Baptismo, os crentes aderiram a Cristo e à salvação que Ele veio
oferecer, comprometeram-se a segui-l’O nessa vida de amor, de dom, de entrega,
foram envolvidos neste dinamismo de vida e de salvação que brota de Jesus,
tornaram-se o princípio de uma nova humanidade. Na água do Baptismo, os crentes
nasceram para a vida do bem, da justiça e da verdade (vers. 21). A conclusão que
o autor da carta sugere aos crentes parece ser a seguinte: se Cristo propiciou,
mesmo aos injustos, a salvação, também os cristãos devem dar a vida e fazer o
bem, mesmo quando são perseguidos e sofrem. Comprometidos com Cristo pelo
Baptismo, eles nasceram para uma vida nova; e devem testemunhar essa vida nova
diante de todos os homens, mesmo diante dos maus e dos perseguidores.
EVANGELHO – Mc
1,12-15
Temos então, como
primeira cena, o episódio da tentação de Jesus no deserto (vers. 12-13). Mais do
que uma descrição fotográfica de acontecimentos concretos, trata-se de uma
catequese. Está carregado de símbolos, que é preciso descodificar para entender
a mensagem proposta. O deserto é, na teologia de Israel, o lugar privilegiado do
encontro com Deus; foi no deserto que o Povo experimentou o amor e a solicitude
de Jahwéh e foi no deserto que Jahwéh propôs a Israel uma Aliança. Contudo, o
deserto é também o lugar da “prova”, da “tentação”; foi no deserto que Israel
foi confrontado com opções e foi no deserto, também, que Israel sentiu, várias
vezes, a tentação de escolher caminhos contrários aos propostos por Deus… O
“deserto” para onde Jesus “vai” é, portanto, o “lugar” do encontro com Deus e do
discernimento dos seus projectos; e é o “lugar” da prova, onde se é confrontado
com a tentação de abandonar Deus e de seguir outros caminhos. Nesse “deserto”,
Jesus ficou “quarenta dias” (vers. 13a). O número “quarenta” é bastante
frequente no Antigo Testamento. Muitas vezes refere-se ao tempo da caminhada do
Povo de Israel pelo deserto, desde que deixou a terra da escravidão, até entrar
na terra da liberdade; mas também é usado para significar “toda a vida” (a
esperança média de vida, na época, rondava os quarenta anos). Deve ser entendido
com o sentido de “toda a vida” ou, então, “todo o tempo que durou a caminhada”.
Durante esse tempo, Jesus foi “tentado por Satanás” (vers. 13b). A palavra
“satanás” designava, originalmente, o adversário que, no contexto do julgamento,
apresentava a acusação (cf. Sal 109,6). Mais tarde, a palavra vai passar a
designar uma personagem que integrava a corte celeste e que acusava o homem
diante de Deus (cf. Job 1,6-12). Na época de Jesus, “satanás” já não era
considerado uma personagem da corte celeste, mas um espírito mau, inimigo do
homem, que procurava destruir o homem e frustrar os planos de Deus. É neste
sentido que ele vai aparecer aqui… “Satanás” representa um personagem que vai
tentar levar Jesus a esquecer os planos de Deus e a fazer escolhas pessoais, que
estejam em contradição com os projectos do Pai. Ao referir as tentações de
“Satanás”, é provável que Marcos estivesse a pensar, em concreto, em tentações
de poder e de messianismo político. O deserto era, tradicionalmente, o lugar de
refúgio dos agitadores e dos rebeldes com pretensões messiânicas. A tentação
pretende, portanto, induzir Jesus a enveredar por um caminho de poder, de
autoridade, de violência, de messianismo político, frustrando os projectos de
Deus que passavam por um messianismo marcado pelo amor incondicional, pelo
serviço simples e humilde, pelo dom da vida. A referência às “feras” que
rodeavam Jesus e aos “anjos” que O serviam (vers. 13c) deve aludir a certas
interpretações de Gn 2-3, muito em voga nos ambientes rabínicos, no século I.
Alguns “mestres” de Israel ensinavam que Adão, o primeiro homem, vivia no
paraíso em paz completa com todos os animais e que os anjos estavam à sua volta
para o servir; mas, quando Adão escolheu o caminho da auto-suficiência e se
revoltou contra Deus, rompeu-se a harmonia original, os animais tornaram-se
inimigos do homem e até os anjos deixaram de o servir. A catequese dos “rabis”
adiantava ainda que, quando o Messias chegasse, nasceria um mundo harmonioso,
sem violência e sem conflito, onde até os animais ferozes viveriam em paz com o
homem. Seria o regresso à harmonia original, ao plano original de Deus para os
homens e para o mundo. É isso que Marcos está aqui a sugerir: com Jesus, chegou
esse tempo messiânico de paz sem fim, chegou o tempo de o mundo regressar a essa
harmonia que era o plano inicial de Deus. Haverá, também, uma intenção de
estabelecer um paralelo entre Adão e Jesus: Adão cedeu à tentação de escolher
caminhos contrários aos de Deus e criou inimizade, violência, conflito,
escravidão, sofrimento; Jesus escolheu viver na mais completa fidelidade aos
projectos de Deus e fez nascer um mundo novo, de harmonia, de paz, de amor, de
felicidade sem fim. Em síntese: temos aqui uma catequese sobre as opções de
Jesus. Marcos sugere que, ao longe de toda a sua existência (“quarenta dias”),
Jesus confrontou-Se com dois caminhos, com duas propostas de vida: ou viver na
fidelidade aos projectos do Pai, fazendo da sua vida uma entrega de amor, ou
frustrar os planos de Deus, enveredando por um caminho messiânico de poder, de
violência, de autoridade, de despotismo, ao jeito dos grandes deste mundo. Jesus
escolheu viver na obediência às propostas do Pai; da sua opção, vai surgir um
mundo de paz e de harmonia, um mundo novo que reproduz o plano original de Deus.
Na segunda parte do Evangelho deste domingo (vers. 14-15), temos uma outra cena.
Marcos transporta-nos para a Galileia, onde Jesus aparece a concretizar esse
plano salvador do Pai que, na cena anterior, Ele escolheu cumprir. Jesus começa,
precisamente, por anunciar que “chegou o tempo”. Que “tempo” é esse? É o “tempo”
do “Reino de Deus”. A expressão – tão frequente no Evangelho segundo Marcos –
leva-nos a um dos grandes sonhos do Povo de Deus… A catequese de Israel (como
aliás acontecia com a reflexão teológica de outros povos do Crescente Fértil)
referia-se, com frequência, a Jahwéh como a um rei que, sentado no seu trono,
governa o seu Povo. Mesmo quando Israel passou a ter reis terrenos, esses eram
considerados, apenas, como homens escolhidos e ungidos por Jahwéh para governar
o Povo, em lugar do verdadeiro rei que era Deus. O exemplo mais típico de um
rei/servo de Jahwéh, que governa Israel em nome de Jahwéh, submetendo-se em tudo
à vontade de Deus, foi David. A saudade deste rei ideal e do tempo ideal de paz
e de felicidade em que Jahwéh reinava (através de David) sobre o seu povo vai
marcar toda a história futura de Israel. Nas épocas de crise e de frustração
nacional, quando reis medíocres conduziam a nação por caminhos de morte e de
desgraça, o Povo sonhava com o regresso aos tempos gloriosos de David. Os
profetas, por sua vez, vão alimentar a esperança do Povo anunciando a chegada de
um tempo, no futuro, em que Jahwéh vai voltar a reinar sobre Israel e vai
restabelecer a situação ideal da época de David. Essa missão, na perspectiva
profética, será confiada a um “ungido” que Deus vai enviar ao seu Povo. Esse
“ungido” (em hebraico “messias”, em grego “cristo”) estabelecerá, então, um
tempo de paz, de justiça, de abundância, de felicidade sem fim – isto é, o tempo
do “reinado de Deus”. O “Reino de Deus” é, portanto, uma noção que resume a
esperança de Israel num mundo novo, de paz e de abundância, preparado por Deus
para o seu Povo. Esta esperança está bem viva no coração de Israel na época em
que Jesus aparece a dizer: “cumpriu-se o tempo e está próximo o reino de Deus”.
Certas afirmações de Jesus, transmitidas pelos Evangelhos sinópticos, mostram
que Ele tinha consciência de estar pessoalmente ligado ao Reino e de que a
chegada do Reino dependia da sua acção. Jesus começa, precisamente, a construção
desse “Reino” pedindo aos seus conterrâneos a conversão (“metanoia”) e o
acolhimento da Boa Nova (“evangelho”). “Converter-se” significa transformar a
mentalidade e os comportamentos, assumir uma nova atitude de base, reformular os
valores que orientam a própria vida. É reequacionar a vida, de modo a que Deus
passe a estar no centro da existência do homem e ocupe sempre o primeiro lugar.
Na perspectiva de Jesus, não é possível que esse mundo novo de amor e de paz se
torne uma realidade, sem que o homem renuncie ao egoísmo, ao orgulho, à
auto-suficiência e passe a escutar, de novo, Deus e as suas propostas.
“Acreditar” não é, apenas, aceitar um conjunto de verdades intelectuais; mas é,
sobretudo, aderir à pessoa de Jesus, escutar a sua proposta, acolhê-la no
coração, fazer dela o guia da própria vida. “Acreditar” é escutar essa “Boa
Notícia” de salvação e de libertação (“evangelho”) que Jesus propõe e fazer dela
o centro à volta do qual se constrói toda a existência. “Conversão” e “adesão ao
projecto de Jesus” são duas faces de uma mesma moeda: a construção de um homem
novo, com uma nova mentalidade, com novos valores, com uma postura vital
inteiramente nova. Então, sim teremos um mundo novo – o “Reino de Deus”.
Padre José Granja,
Reitor da Basílica dos Congregados - Braga |