|
PONTOS DE
REFLEXÃO
Leitura do Livro dos Atos dos Apóstolos
No Livro dos Atos dos Apóstolos, Lucas procura mostrar como o plano salvador de
Deus para os homens continua a cumprir-se, mesmo depois da partida de Jesus para
junto do Pai. Os discípulos de Jesus são agora, no meio do mundo, as testemunhas
desse projecto de libertação que Deus ofereceu aos homens através de Jesus
Cristo. Como é que o mundo acolhe o testemunho dos discípulos? Deus deixa as
testemunhas do seu projeto de salvação entregues à sua sorte, à mercê da
perseguição e da incompreensão do mundo? O texto que nos é proposto como
primeira leitura procura responder a estas questões. Os elementos históricos
avançados por Lucas sobre a morte de Tiago e a prisão de Pedro, no contexto da
perseguição contra a Igreja durante o reinado de Herodes Agripa I (vers. 1-4),
mostram como o testemunho do projeco libertador de Deus no mundo gera sempre
confronto com as forças da opressão e da morte. Trata-se de uma realidade que
não deve deixar os discípulos surpreendidos, pois o próprio Jesus teve que
percorrer o caminho da cruz (a indicação de que Pedro foi preso no dia dos
Ázimos e, portanto, muito próximo do dia de Páscoa, pode sugerir uma
correspondência com a Páscoa de Jesus: o caminho que Pedro está a seguir é o
mesmo caminho do Mestre). Por outro lado, a oposição do mundo não pode nem deve
calar o testemunho que os discípulos são chamados a dar.
2. Enquanto Pedro
estava na prisão, a Igreja orava por ele (vers. 5). A indicação mostra uma
comunidade cristã unida, em que os crentes estão próximos e solidários apesar da
distância e das grades da prisão. Por outro lado, o facto de a libertação de
Pedro acontecer enquanto a Igreja “orava instantemente a Deus por ele”, mostra
como Deus escuta a oração da comunidade.
3. A maravilhosa história da libertação
de Pedro (vers. 6-11) mostra a presença efetiva de Deus na caminhada da sua
Igreja e a solicitude com que Deus cuida daqueles que dão testemunho do seu
projeto de salvação no meio dos homens. O relato está construído com elementos
maravilhosos e prodigiosos que não são, certamente, de carácter histórico (o
aparecimento do “anjo do Senhor”, a luz que iluminou a cela da cadeia, a
passagem pelos guardas sem que nenhum deles se tivesse apercebido da fuga do
prisioneiro, a abertura milagrosa da porta da prisão); mas pretendem sublinhar a
presença de Deus, e apor no testemunho dos apóstolos o “selo de garantia” de
Deus. Não há dúvida: Deus está com os apóstolos e, diante da oposição do mundo,
garante a autenticidade da proposta apresentada por eles.
LEITURA II – 2 Timóteo 4,6-8.17-18
O autor da carta apresenta-se na pele de Paulo, prisioneiro em Roma; e, nessa
pele, faz um balanço final da sua vida e da sua entrega ao serviço do Evangelho.
A vida de Paulo foi, desde o seu encontro com Cristo ressuscitado na estrada de
Damasco, uma resposta generosa ao chamamento e um compromisso total com o
Evangelho. Por Cristo e pelo Evangelho, Paulo lutou, sofreu, gastou e desgastou
a sua vida, num dom total, para que a salvação de Deus chegasse a todos os povos
da terra. No final, ele sente-se como um atleta que lutou até ao fim para vencer
e está satisfeito com a sua prestação. Resta-lhe receber essa coroa de glória,
reservada aos atletas vencedores (e que Paulo sabe não estar reservada apenas a
ele, mas também a todos aqueles que lutam com o mesmo denodo e o mesmo
entusiasmo pela causa do “Reino”). Para definir a sua vida como dom total a Deus
e aos irmãos, Paulo utiliza aqui uma imagem bem sugestiva: a imagem da vítima
imolada em sacrifício. Paulo fez da sua vida um dom total, ao serviço do
Evangelho; a sua entrega foi um sacrifício cultual a Deus. Agora, para que o
sacrifício seja total, só resta coroar a sua entrega com o dom do seu sangue… A
referência à oferta “em libação” faz referência aos sacrifícios em que se vertia
o vinho sobre o altar, imediatamente antes de ser imolada a vítima sacrificial.
Há duas maneiras de dar a vida por Cristo: uma é gastá-la dia a dia na tarefa de
levar a libertação que Cristo veio propor a todos os povos da terra; outra é
derramar, de uma vez, o sangue por causa da fé e do testemunho de Cristo… Paulo
conheceu as duas modalidades; imitar Paulo é um desafio que o autor da Carta a
Timóteo faz aos discípulos do seu tempo e de todos os tempos.
Na segunda parte
do nosso texto (vers. 16-18), o autor desta carta põe na boca de Paulo o lamento
desiludido de um homem cansado que, apesar de ter oferecido a sua vida como dom
aos irmãos se sente, no final, votado ao abandono e à solidão… Mas, apesar de
tudo, Paulo tem consciência de que Deus esteve a seu lado ao longo da sua
caminhada, lhe deu a força de enfrentar as dificuldades, o livrou de todo o mal
e lhe dará, no final da caminhada, a vida definitiva. Daí o louvor com que Paulo
termina: “glória a ele pelos séculos sem fim. Amen”. É esta a atitude que o
autor da carta pede aos seus irmãos: apesar do desânimo, do sofrimento, da
tribulação, descubram a presença de Deus, confiem na sua força, mantenham-se
fiéis ao Evangelho: assim recebereis, sem dúvida, a salvação definitiva que Deus
reserva a quem combateu o bom combate da fé.
EVANGELHO – Mateus 16,13-19
O nosso texto pode dividir-se em duas partes. A primeira, de carácter mais
cristológico, centra-se em Jesus e na definição da sua identidade. A segunda, de
carácter mais eclesiológico, centra-se na Igreja, que Jesus convoca à volta de
Pedro. Na primeira parte (vers. 13-16), Jesus interroga duplamente os discípulos:
acerca do que as pessoas dizem d’Ele e acerca do que os próprios discípulos
pensam. A opinião dos “homens” vê Jesus em continuidade com o passado (“João
Baptista”, “Elias”, “Jeremias” ou “algum dos profetas”). Não captam a condição
única de Jesus, a sua novidade, a sua originalidade. Reconhecem, apenas, que
Jesus é um homem convocado por Deus e enviado ao mundo com uma missão – como os
profetas do Antigo Testamento… Mas não vão além disso. Na perspetiva dos “homens”,
Jesus é, apenas, um homem bom, justo, generoso, que escutou os apelos de Deus e
que Se esforçou por ser um sinal vivo de Deus, como tantos outros homens antes
d’Ele (vers. 13-14). É muito, mas não é o suficiente: significa que os “homens”
não entenderam a novidade do Messias, nem a profundidade do mistério de Jesus. A
opinião dos discípulos acerca de Jesus vai muito além da opinião comum. Pedro,
porta-voz da comunidade dos discípulos, resume o sentir da comunidade do Reino
na expressão: “Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo” (vers. 16). Nestes dois
títulos resume-se a fé da Igreja de Mateus e a catequese aí feita sobre Jesus.
Dizer que Jesus é “o Cristo” (Messias) significa dizer que Ele é esse libertador
que Israel esperava, enviado por Deus para libertar o seu Povo e para lhe
oferecer a salvação definitiva. No entanto, para os membros da comunidade do
Reino, Jesus não é, apenas, o Messias: é, também, o “Filho de Deus”. No Antigo
Testamento, a expressão “Filho de Deus” é aplicada aos anjos (cf. Dt 32,8; Sal
29,1; 89,7; Job 1,6), ao Povo eleito (cf. Ex 4,22; Os 11,1; Jer 3,19), aos
vários membros do Povo de Deus (cf. Dt 14,1-2; Is 1,2; 30,1.9; Jer 3,14) ao rei
(cf. 2 Sm 7,14) e ao Messias/rei da linhagem de David (cf. Sal 2,7; 89,27).
Designa a condição de alguém que tem uma relação particular com Deus, a quem
Deus elegeu e a quem Deus confiou uma missão. Definir Jesus como o “Filho de
Deus” significa, não só que Ele recebe vida de Deus, mas que vive em total
comunhão com Deus, que desenvolve com Deus uma relação de profunda intimidade e
que Deus Lhe confiou uma missão única para a salvação dos homens; significa
reconhecer a profunda unidade e intimidade entre Jesus e o Pai e que Jesus
conhece e realiza os projetos do Pai no meio dos homens. Os discípulos são
convidados a entender dessa forma o mistério de Jesus. Na segunda parte (vers.
17-19), temos a resposta de Jesus à confissão de fé da comunidade dos discípulos,
apresentada pela voz de Pedro. Jesus começa por felicitar Pedro (isto é, a
comunidade) pela clareza da fé que o anima. No entanto, essa fé não é mérito de
Pedro, mas um dom de Deus (“não foram a carne e o sangue que to revelaram, mas
sim o meu Pai que está nos céus” – vers. 17). Pedro (os discípulos) pertence a
essa categoria dos “pobres”, dos “simples”, abertos à novidade de Deus, que têm
um coração disponível para acolher os dons e as propostas de Deus (esses
“pobres” e “simples” estão em contraposição com os líderes – fariseus, doutores
da Lei, escribas – instalados nas suas certezas, seguranças e preconceitos,
incapazes de abrir o coração aos desafios de Deus). O que é que significa Jesus
dizer a Pedro que ele é “a rocha” (o nome “Pedro” é a tradução grega do hebraico
“Kephâ” – “rocha”) sobre a qual a Igreja de Jesus vai ser construída? As
palavras de Jesus têm de ser vistas no contexto da confissão de fé precedente.
Mateus está, portanto, a afirmar que a base firme e inamovível, sobre a qual vai
assentar a Ekklesia de Jesus é a fé que Pedro e a comunidade dos discípulos
professam: a fé em Jesus como o Messias, Filho de Deus vivo. Para que seja
possível a Pedro testemunhar que Jesus é o Messias Filho de Deus e edificar a
comunidade do Reino, Jesus promete-lhe “as chaves do Reino dos céus” e o poder
de “ligar e desligar”. Aquele que detém as chaves, no mundo bíblico, é o
“administrador do palácio”… Ora o “administrador do palácio”, entre outras
coisas, administrava os bens do soberano, fixava o horário da abertura e do
fechamento das portas do palácio e definia quais os visitantes a introduzir
junto do soberano… Por outro lado, a expressão “atar e desatar” designava, entre
os judeus da época, o poder para interpretar a Lei com autoridade, para declarar
o que era ou não permitido, para excluir ou reintroduzir alguém na comunidade do
Povo de Deus. Assim, Jesus nomeia Pedro para “administrador” e supervisor da
Igreja, com autoridade para interpretar as palavras de Jesus, para adaptar os
ensinamentos de Jesus a novas necessidades e situações, e para acolher ou não
novos membros na comunidade dos discípulos do Reino (atenção: todos são chamados
por Deus a integrar a comunidade do Reino; mas aqueles que não estão dispostos a
aderir às propostas de Jesus não podem aí ser admitidos). Trata-se, aqui, de
confiar a um homem (Pedro) um primado, um papel de liderança absoluta (o poder
das chaves, o poder de ligar e desligar) da comunidade dos discípulos? Ou Pedro
é, aqui, um discípulo que dá voz a todos aqueles que acreditam em Jesus e que
representa a comunidade dos discípulos? É difícil, a partir deste texto, fazer
afirmações concludentes e definitivas. O poder de “ligar e desligar”, por
exemplo, aparece noutro contexto, confiado à totalidade da comunidade e não a
Pedro em exclusivo (cf. Mt 18,18). Provavelmente, o mais correto é ver em Pedro
o protótipo do discípulo; nele, está representada essa comunidade que se reúne
em volta de Jesus e que proclama a sua fé em Jesus como o “Messias” e o “Filho
de Deus”. É a essa comunidade, representada por Pedro, que Jesus confia as
chaves do Reino e o poder de acolher ou excluir. Isso não invalida que Pedro
fosse uma figura de referência para os primeiros cristãos e que desempenhasse um
papel de primeiro plano na animação da Igreja nascente, sobretudo nas
comunidades da Síria (as comunidades a que o Evangelho de Mateus se destina).
Padre José Granja
Reitor da Basílica dos Congregados, Braga. |