|
PONTOS DE
REFLEXÃO
PRIMEIRA
LEITURA Act
6,1-7
No quadro
ideal da comunidade primitiva vem inserir-se um elemento de perturbação,
um litígio entre dois grupos de cristãos de proveniência diferente: os
hebreus de língua grega (chamados
«helenistas»: v. 1) e os de língua hebraica. Ambos os grupos são já
cristãos, mas as sensibilidades diversas permanecem. A
necessidade de encontrar solução para o problema das mesas (v. 2) leva à
reorganização da comunidade e à instituição de novos ministérios. O
serviço da caridade é confiado a sete homens (w. 3.5-6).
As
dificuldades e os problemas de relacionamento no interior da comunidade
não são apenas um dado negativo. Na narração dos Actos dos Apóstolos
aparecem, pelo contrário, como uma ocasião preciosa de crescimento.
Basta pensar que o trecho começa e termina dizendo precisamente que há
uma multiplicação do número dos discípulos (w. 1,7), mas se no princípio
o crescimento é motivo de problemas, no fim aparece como uma bênção.
Além do mais precisa-se que numa Igreja capaz de enfrentar a questão com
coragem e criatividade, é propriamente a Palavra que «se divulgava».
«Quanto a
nós, vamos dedicar-nos à oração e ao ministério da Palavra» (v. 4): as
dificuldades são uma ocasião para repensar as coisas essenciais. À
primeira vista trata-se de uma divisão «material» de tarefas: uns rezam
e pregam, os outros praticam a caridade. Na realidade, pouco depois
veremos o próprio Estêvão, escolhido para servir às mesas, como um
perfeito e corajoso pregador e modelo de oração (cf. Act
6,8-7,60). Não se trata somente de uma subdivisão de tarefas que
a Igreja persegue, mas também uma actualização dos objectivos que contam
e que não podem faltar na comunidade de Jesus Cristo.
SEGUNDA
LEITURA
IPd
2,4-9
«Templo
espiritual» (v. 5a) e «sacerdócio santo» (v. 5b), ou «sacerdócio real»
(v. 9), são os títulos principais de que pode vangloriar-se o Povo de
Deus nascido da fé em Cristo. Também a
disposição do texto é eloquente: no
princípio e no fim (w. 4-5 e v. 9) enumeram-se os «privilégios»
concedidos a este Povo, no centro (w.
6-8) está a profissão de fé em Jesus «pedra rejeitada» pelos
homens, mas colocada por Deus como alicerce do novo edifício. Pedro
estrutura a sua meditação citando o Antigo Testamento, em particular o
profeta Isaías (cf. Is 8,14 e 28,16), uma passagem da Aliança no Sinai
(Ex 19,5-6) e o Sl 118,22.
«Pedra
viva, rejeitada pelos homens, mas escolhida e preciosa aos olhos de
Deus» (v. 4); quase todos os termos desta frase são tirados de
passagens do Antigo Testamento, excepto um, que representa uma novidade,
o de «pedra viva». Nesta metáfora verifica-se a contraposição ao templo
material, cujas pedras não são
vivas, mas adverte-se sobretudo a referência à ressurreição de
Jesus: Ele mostrou-Se aos seus discípulos como o Vivente, reabilitado
por Deus.
Também os
que crêem em Cristo se tornam por isso «pedras vivas» (v. 5a), no
sentido de que são habitados e transformados pelo poder vivificante do
Ressuscitado. Constroem assim um «templo espiritual» (v. 5b), não só no
sentido de «não material», mas precisamente no sentido de que são
invadidos e animados pelo Espírito do Ressuscitado. E obtêm assim a
qualificação de «sacerdócio santo»
(v. 5c; cf. v. 9): sacerdotes enquanto são tornados capazes de
entrar no dinamismo de Cristo, que Se dá todo a Deus e aos homens.
Notar-se-á, porém, que não se fala tanto das pessoas singulares como
sacerdotes, mas como de um povo que, no seu conjunto, constitui um
sacerdócio santo ou real. É forte, portanto, o convite a viver em
unidade: de resto, se essas pedras formam um edifício único, como
poderia uma separar-se das outras sem produzir um grave dano a toda a
comunidade?
EVANGELHO
Jo 14,1-12
Os últimos
dois domingos do Tempo Pascal antes da Ascensão voltam a propor textos
do discurso de adeus de Jesus, durante a Última Ceia. No texto deste
domingo é útil recordar que se trata
de um diálogo entre Jesus e os Seus discípulos. De facto, Jesus
responde a perguntas colocadas pelos Seus: «Disse Pedro...»
(Jo 13,37); «Disse-Lhe Tomé...»(v. 5); «Disse-Lhe Filipe...» (v. 8)
O conjunto
tem assim o sabor de uma instrução a discípulos que têm dificuldade em
penetrar no pensamento do Mestre.
Na leitura
litúrgica, o discurso de Jesus começa de repente, sem um contexto. Na
verdade, o Mestre está a responder à pergunta de Pedro: «Senhor, porque
não posso seguir-Te agora? Daria a minha própria vida por Ti.» (Jo
13,37) Depois de ter falado a Pedro, dirige-se aos Onze e diz: «Não se
perturbe o vosso coração.» (v. 1)
Qual o
motivo por que estava perturbado naquele momento o coração dos
discípulos? Por um lado, porque eles reparam que Jesus vai a caminho da
morte e não compreendem a razão, temem ser abandonados; por outro,
porque o Mestre avisou Pedro acerca da suas presunção de saber segui-1'O
e sobretudo da sua disposição de dar a vida por Ele (cf. Jo 13,38).
Jesus explica então o sentido da Sua morte, que não é um abandono, mas é
a viagem do Seu regresso ao Pai (cf. v. 2). Exorta-os depois a não
temerem pelas suas fraquezas: Ele mesmo virá buscá-los consigo
(cf. v. 3). Não serão eles a dar a
vida por Ele, mas o próprio Jesus virá buscá-los.
E a finalidade da viagem
que lhes dará a
fazer é uma só: entrar com Ele em comunhão com o
Pai.
«Eu sou o caminho, a
verdade e a vida.» (Jo 14,6) Nenhuma
pessoa de mente sã
ousaria jamais dizer isto de si mesma. No máximo alguém poderia dizer:
eu indico o caminho, a verdade
e a vida. Mas quando alguém diz «Eu sou», ou é louco ou
arroga-se uma pretensão
de que nenhum homem pode gabar-se.
As credenciais que Jesus apresenta são a Sua vida, as Suas
palavras e as Suas obras,
que vêm de Deus (cf. Jo 14,10-11). É a estas
obras que somos continuamente remetidos, como
ao esplendor que emana da verdade e
que portanto pode modificar radicalmente a nossa vida, porque nos tornam visível
aquilo que ninguém teria ousado pensar: o próprio Deus oferece-Se a nós.
No Evangelho, o
Filho fala de uma
«morada» que Ele nos torna
acessível (cf. Jo 14,2). A Sua partida não é um abandono,
mas é a preparação de uma
casa para nós. É prometido ao
coração dos discípulos
que encontrarão casa, uma «morada».
Que promessa mais
atraente, mesmo para os homens de hoje,
que se vêem
frequentemente sem morada! E não pensamos logo no Paraíso, mas
precisamente porque no horizonte está
o Paraíso, eis que o homem
tem já agora, nesta vida, a possibilidade
de encontrar uma casa e uma orientação.
As perguntas sucessivas
dos discípulos
permitem ao Mestre
acabar o Seu discurso; enquanto eles procuram mudar de assunto
e pensam noutra coisa, Ele recondu-los sempre ao âmago
do discurso, ao mistério da Sua pessoa. Começa Tomé, o
qual compreendeu e gostou
da ideia de poder encontrar uma
morada, mas, então, como
encontrá-la? (Jo 14,6a) Tomé pensa
num caminho misterioso, porventura semelhante aos caminhos
de salvação que os homens procuravam nas religiões
ocultas ou em qualquer
outro preceito a acrescentar aos já
numerosos da Lei judaica.
Mas Jesus corrige-o: se promete
uma casa, é porque Ele
mesmo é também o «caminho» para
alcançá-la. «Eu sou o
caminho.» (Jo 14,6a) Com a Sua vida,
mostra o caminho.
Vivendo, o Filho conduz os discípulos a conhecer
o Pai.
Filipe insta depois com
outra pergunta que, de novo, parece
procurar
«noutro lugar», fora de
Jesus: «Senhor, mostra-nos o
Pai, e isto nos basta.»
(Jo 14,8) É o desejo que mora no coração
de cada homem, é a pergunta formulada audazmente por
Moisés no Sinai:
«Mostra-me a Tua glória!» (Ex 33,18); não se
pode desejar mais do que
isto. E de novo Jesus reorienta para
Si o discurso: «Quem Me
vê, vê o Pai.» (Jo 14,9) Ele é não só
o caminho, é também a
«verdade» (Jo 14,6b), precisamente
porque n Ele aparece, sem
ambiguidade, o rosto de Deus que
o homem procura. É na
familiaridade com Ele, com as Suas
palavras, e não noutro
lugar, que nós vemos o Pai e encontramos
aquela Verdade que
é o estímulo secreto de
todo o desejo humano.
Deste modo Jesus explicou
também o terceiro
termo: «Eu sou a
vida.» (Jo 14,6c) Alguém poderia pensar que a vida é uma
realidade misteriosa que
está sabe-se lá onde, que Jesus pode dar ou que a
ela pode conduzir. Na verdade, a vida é ainda o próprio Cristo e
consiste precisamente naquela intimidade profunda com o Pai que se obtém
vivendo com o Filho. A vida é
essencialmente comunhão: quem não tem afectos,
relações, amizades, não vive; pois
bem, Jesus oferece a principal
das relações, a relação com Deus, que não é alternativa aos
outros, mas está dentro de todas as
boas relações que tecem a trama de uma vida.
É este mesmo conhecimento
que leva Pedro a falar com tanta
paixão de Jesus «pedra
viva» (segunda leitura: IPd
2,4) ou que
move os discípulos da primeira hora a reorganizar a caridade,
tendo em conta igualmente
a oração e o serviço da Palavra (primeira
leitura).
Padre José Granja,
Reitor da Basílica dos Congregados, Braga. |