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PONTOS DE REFEXÃO
PRIMEIRA LEITURA
Act
2,14a.36-41
O discurso de
Pedro termina com a proclamação
de que Deus «fez Senhor e Messias»
a
Jesus crucificado (v. 36), õu seja, reconheceu autoridade divina
(«Senhor») Àquele que os «homens de Israel» (cf.
Act 2,22) rejeitaram. Atingidos em
cheio («sentiram todos o coração trespassado»: v. 37a) pelo tinham acabado de ouvir,
os presentes colocam a pergunta decisiva: «Que havemos de fazer, irmãos?» (Cf.
v. 37b) A conversão e o Baptismo levam outros crentes a juntar-se aos Apóstolos:
agora é já um povo que se junta aos Doze com critérios novos e diferentes dos de
Israel.
O anúncio
do Apóstolo Pedro produz nos presentes um efeito que lembra de perto o que as
palavras de Jesus causaram nos dois discípulos de Emaús. O coração dos ouvintes
começa a vibrar diversamente, a ponto de os tornar disponíveis à conversão (cf.
v. 37; cf. Lc 24,32).
Porque
é que o coração é «trespassado»?
Porque Pedro anunciou um Deus que se apresenta de um modo inaudito: Ele é
reconhecível no Messias crucificado, e isto desconcerta verdadeiramente o mundo,
obrigando a tomar posição. Por outro lado, se o Senhor actuou nAquele que os
homens rejeitaram, quer dizer
que os homens não estão na
justiça, mas são precisamente «pecadores»: o coração dos presentes então vibra
porque se sente de algum modo coagido a reconhecer a necessidade do perdão. O
homem é menos justo do que pensa, e o anúncio do Evangelho
revela-lhe a necessidade de invocar a
salvação, confiando-se, com o
Baptismo, ao «nome de Jesus Cristo», (v. 38) E ainda, quem não se
sentiria interessado no anúncio de que a morte já foi vencida?
SEGUNDA LEITURA
IPd
2>20b-25
Pedro está
a falar a escravos crentes que sofrem injustamente às mãos dos seus donos (cf.
IPd 2,18-20). Exorta-os a continuarem
a fazer o bem, aceitando com paciência as injustiças (v. 20b). Para apoio
deste conselho, a passagem da Carta introduz um hino no qual Jesus é apresentado
como «exemplo» de inocente perseguido que não se vinga mas confia a Deus o
sucesso da sua vida (w. 21-25). No hino aparecem citações da figura do «servo do
Senhor», cuja morte injusta traz salvação à
multidão (cf. Is 52,13--53,12).
O primeiro embate
com o hino acabado de ouvir pode desiludir, porque Cristo aparece nele como um
exemplo de aceitação paciente
da injustiça. É necessário, porém, recordar que nem todos
os textos bíblicos dizem tudo,
mas somente o que serve na altura; neste caso, a Pedro interessa exortar os
cristãos a fazer o bem com perseverança, mesmo quando estão mergulhados no mal:
não é uma posição de fraqueza, mas de força, própria somente de quem sabe que a
sua sorte por último não depende dele, mas está nas mãos de Deus.
Quanto depois ao
modo com o qual explicita a eficácia
salvífica da morte de Jesus, o hino é de um interesse notável pela riqueza
das explicações: a morte de Cristo foi para nós princípio de uma vida
nova como homens «justos», radicados na Sua justiça
(v. 24). Foi também fonte de cura («pelas
Suas chagas fomos curados»: v. 25a).
Vem-nos à mente a passagem do Quarto Evangelho
onde João narra como das Chagas de Jesus
crucificado saiu a água do Espírito (cf. Jo 19,34), o Espírito que nos
concede o amor perfeito de Jesus e o torna nosso curando-nos. Finalmente, a
morte de Jesus é morte de amor que reúne as ovelhas, dispersas em mil caminhos
errados, em torno do amor do único Pastor (v. 25b).
EVANGELHO
Jo 10,1-10
«Eu vim para que
tenham vida e a tenham em abundância.» (v. 10) Estas palavras que concluem o texto de hoje são também as
que nos revelam o sentido de conjunto: mostrar como Jesus dá a
vida. Já nos capítulos precedentes do
Evangelho de João, o Mestre se ofereceu aos homens como «água» (c. 4),
«cura» (c. 5), «pão» (c. 6), «luz» (cc. 8-9); agora define-se como «pastor» (w.
1-6) e «porta» (w. 7-10), ou seja, guia, acolhimento, segurança. Mas, de novo,
não se saberia como Ele é luz, guia, protecção etc., sem olhar em frente, para a
sua Cruz.
As duas imagens do
«pastor» e da «porta», embora
diferentes, devem ser lidas em conjunto, para exprimir um único pensamento de
fundo. O conjunto deve ser entendido a partir da temática
bíblica do Êxodo e da caminhada de Israel
para a Terra Prometida, através dos momentos-chave que podem ser
resumidos em três verbos utilizados pelo
evangelista: «fazer sair»: (v. 3), «caminhar» (v. 4), «entrar» (v. 9).
Nas imagens do pastor e da porta oculta-se pois o caminho da liberdade que Jesus
torna possível.
De facto, a
primeira coisa que Jesus diz do
«pastor» é
que, entrando no redil das
ovelhas, as «leva para fora» (ou até as «expulsa», como se lê literalmente no v.
4); portanto, «fá-las sair», e é uma saída libertadora como precisamente a do
Êxodo. Uma vez saídas, como os hebreus do Egipto, é necessário «caminhar», e
então eis Jesus pastor que caminha à frente dos Seus indicando o caminho. Esse
caminho depois tem uma meta à qual Jesus faz chegar, a «porta» (w. 7.9; cf.
«entrar»: v. 9). Ele é a porta de entrada mas, como acontece por vezes nas
cidades orientais, a porta é já também casa onde se desenrola a vida quotidiana
da população.
As nossas
comunidades, provocadas hoje pela dificuldade em
transmitir a fé,
andam muitas vezes agitadas na tentativa de
definir mais
exactamente a sua identidade: quem somos nós?
O que é
verdadeiramente essencial para podermos dizer-nos
cristãos?
A mesma preocupação
estava presente nas comunidades do
Novo
Testamento. Quando Pedro, conforme a narração dos
Actos dos
Apóstolos (primeira leitura), se dirige às pessoas na
praça de
Jerusalém, sabe que tem diante de si judeus crentes,
muito convictos
e religiosos, observantes da Lei. E no entanto
são
precisamente estes que, ouvindo o anúncio de Jesus crucificado, compreendem que
têm de mudar de vida e perguntam:
«Que havemos de fazer, irmãos?» (Act
2,37)
Na resposta do Apóstolo
encontra-se muito do que constitui
a identidade
cristã. Em primeiro lugar a conversão, que não
significa uma
observância maior da Lei, mas a capacidade de
abrir-se à
situação nova criada pela presença de Jesus, e mudar
de mentalidade, acolhendo a Deus tal como o Filho O
revelou, com a visão diversa do mundo que daí deriva. Em
segundo lugar, o Baptismo em nome de Jesus:
através do gesto sacramental de
deixar-se mergulhar, envolver na vida de Cristo para Lhe pertencer, abandonando o pecado. E, com o Baptismo,
o dom do Espírito. Quem lê os Actos dos Apóstolos
depois do primeiro Livro de Lucas, o
Evangelho, sabe quem é o Espírito: é
a respiração de Deus comunicada ao Filho no
Baptismo no Jordão e que depois conduziu
Jesus ao longo de toda a Sua vida,
até quando Ele mesmo, como prometera, O
enviou aos Seus. Finalmente, a identidade
cristã realiza-se através da agregação ao Povo de Deus sobre o fundamento
dos doze Apóstolos do Mestre, um número que
alude à continuidade com o antigo Israel, mas que juntamente remete para
Cristo como nova pedra angular.
Conversão,
Baptismo, perdão dos pecados, Espírito Santo,
agregação aos
Apóstolos: é aqui que deve voltar o cristão que
se interroga
sobre a sua identidade mais verdadeira.
O Evangelho
depois diz algo mais sobre a relação
com Jesus, relação que
permanece o perno da identidade cristã. Jesus é
o pastor que liberta, e cristão é aquele que entre as mil vozes
que lhe propõem uma sabedoria de vida,
reconhece em Cristo a voz do Bom
Pastor. O Senhor tira os homens dos recintos impróprios onde a liberdade
é só aparente. Cada um pode perguntar-se
quais são as situações das quais precisa ser libertado, mas a questão
fundamental é clara: só seguindo Jesus se tem em plenitude vida e
liberdade.
E ainda mais
precisamente: aquele pastor
é «bom» (cf.
Jo 10,
11), não porque é uma pessoa pacífica e tranquila, mas porque
dá a sua vida pelas ovelhas (cf. Jo 10,15.17). Eis então o
que liberta
verdadeiramente: o dom de si mesmo até à morte. Além do mais, na língua original
grega, o «Bom Pastor»
é dito
propriamente o «belo pastor»: a beleza oferecida aos
crentes para
que n Ele se possam espelhar e encontrar a vida e
o fascínio do
amor difundido até à Cruz. As ovelhas escutam,
obedecem a este
Pastor atraídas pela sua beleza: porque Ele
não constrói
para Si uma casinha «junto» dos seus redis, mas
mora com elas e dá a vida por elas.
O Pastor
é ainda
«porta» (cf. Jo 10,7.9). Bastaria pensar que
ainda hoje, em
certos lugares do mundo árabe, o sábio é chamado
bab, isto é, «porta»: Jesus pastor é também «porta»,
porque quem
encontra a sua sabedoria encontrou a casa onde
pode habitar e o alimento que não
engana.
Padre José
Granja,
Reitor da Basílica dos Congregados, Braga. |