O
Dr. Dias de Azevedo escreveu muitas cartas a defender a Alexandrina.
A que se segue data de Agosto de 1944, mês e meio após o veredicto
da comissão que negara que houvesse algo de extraordinário na doente
do Calvário, quando o Pe. Humberto já viera a Balasar, mas ainda não
assumira a direcção espiritual. Trata-se dum importante documento
pela clareza da argumentação.
Os
pontos de vista aqui defendidos foram mais tarde insistentemente
expostos pelo autor nas páginas do Boletim da Alexandrina.
«Exmo.
e Revmo. Senhor Arcebispo Primaz
Recebi
o amável cartão de V. Exa. Rev.ma, acompanhado do parecer duma
comissão e dumas determinações, relativas ao caso, há muito falado,
de Balasar. No fim de ler tudo o que me era dito, senti o dever de
dizer a V. Exa. Rev.ma, com o maior respeito e com a maior
franqueza, umas cinco palavras:
1.ª
Palavra: guardarei sempre em meu coração as palavras amáveis do
cartão do Senhor Arcebispo Primaz, agradecendo-lhas, muito
penhorado;
2.ª
Palavra: procurarei ter a maior prudência, ao ser provocado a falar
ou escrever da Alexandrina e sempre recordarei as determinações de
V. Ex.cia Rev.ma, para lhes ser obediente, na medida do possível,
salva a liberdade para responder a qualquer crítica referente ao
caso, saída em qualquer jornal ou revista de responsabilidade, pois
não posso nem quero menosprezar o meu brio profissional;
3.ª
Palavra: continuarei inabalável, até que a razão ou o bom-senso me
aconselhem atitude diferente, no mesmo posto de observação,
prudência, investigação clínica e admiração pela Alexandrina,
verdadeira mártir, que o tempo e Deus plena e brilhantemente
justificarão;
4.ª
Palavra: servindo-me da ideia do Prof. da Faculdade de Medicina do
Porto, Senhor Dr. Mazano, que, falando sobre este caso, e
mostrando-se muito interessado por ele, disse «não há explicação
possível para já não comer há dois anos», eu continuo, como médico,
sem receio de ser confundido, a afirmar que este caso é
extraordinário, porque a Ciência diz que uma mulher de 39 anos,
de vida intelectual e afectiva intensas, de faculdades e sentidos
normais, passando alguns dias e noites sem dormir, e dormindo pouco
durante o outro tempo, conservando invariavelmente ou com pequena
variação o mesmo peso, conservando ainda o sangue normal nos seus
elementos constitutivos ou de desassimilação, vivendo não somente
quarenta dias completos e consecutivos (sob vigilância, de dia e de
noite, feita por algumas pessoas descrentes), mas dois anos e três
meses, aquele primeiro período em abstinência absoluta de alimentos
sólidos e líquidos, incluindo a simples água, e o outro período em
abstinência absoluta de substâncias alimentares, simplesmente
bebendo, um ou outro dia, por imposição médica, uma ou outra
colherinha de água simples, com o fim de diminuir a secura que em
sua boca por vezes sente, constitui um facto verdadeiramente
extraordinário, não sendo preciso, para esta classificação, que os
médicos tenham de pedir licença aos filósofos ou teólogos para digna
e justamente a fazerem. A quem me disser que há um parecer de
filósofos e teólogos que, invadindo campo defeso, significa não ser
extraordinário este facto (que maravilhou um especialista de
Neurologia não crente em vários dogmas católicos, a ponto de
anunciar que devemos ficar «suspensos, aguardando que uma explicação
clara faça a necessária luz», pois a observação da Alexandrina tinha
podido «ser segura, firme, incontestável, só deixando dúvidas aos
que têm o hábito de duvidar … de si próprios»), eu responderei que
quem tiver lido a História e a biografia de algumas criaturas
extraordinárias sabe bem o valor dos pareceres de uma ou outra
comissão. A Igreja só quer a verdade e eu amo uma e outra.
5.ª
Palavra: a Comissão, lendo isto, há-de julgar que esta prosa é um
pouco enfadonha e estranha a amantes da filosofia e teologia, e eu,
para a suavizar, peço licença para citar as palavras do Pe.
Louis Capalle, S.J., em «Les âmes généreuses», pág. 165 e seg.:
“La vérité théologique
et expérimentale est que Dieu n’a pas donné aux âmes une résistance
illimitée, et qu’Il a laissé aux directeurs ou supérieurs imprudents
la puissance redoutable d’entraver ou même de ruiner l’œuvre
magnifique qu’Il se proposait d’accomplir. Nier cette vérité ou même
chercher à l’atténuer par sophismes spécieux, serait atteindre par
le fait même la notion de responsabilité, fondement essentiel de
toute morale.”
E,
depois de mais frases muito interessantes, diz ainda:
“Malheureusement, après
une réponse évidente, on en veut souvent une plus évidente encore ;
et ainsi on oublie que Dieu, souverainement indépendant, ne se plie
pas toujours aux exigences de ses créatures. Il donne assez de
lumières pour que l’on puisse raisonnablement conclure à son
intervention, et Il laisse assez de ténèbres pour que l’on ait le
mérite d’une humble soumission.”
Todas
estas frases podem resumir-se em poucas: as determinações de V.
Ex.cia, no geral, são justas, embora o tempo não venha a justificar
algumas palavras como «pretensos», e o parecer da Comissão, enquanto
ao facto, é exorbitante, negando-lhe a qualidade de extraordinário e
dando lugar até a juízos temerários, o que não fica bem a filósofos
e muito menos a teólogos.
Termino
esta, fazendo votos pela preciosa vida de V. Ex.cia Rev.ma e pedindo
que esta carta seja anexa ao supra mencionado parecer da referida
Comissão (ou ao relatório do médicos) que se pronunciou sobre a
grande mártir que é a Alexandrina de Balasar, a quem o Mons. Vilar
chamava sua “protectora”, a sua “colaboradora providencial”, a sua
“cooperadora mais fiel que Jesus lhe deu”. E esse valia uma
Comissão.
Beijo
as mãos sagradas de V. Ex.cia Rev.ma.
Manuel
Augusto Dias de Azevedo
Ribeirão, 2 de Agosto de 1944.»
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