A mística e a medicina (*)
Agostinho Veloso
Este
artigo, que deu a maior força aos críticos do Padre Pinho, saiu na
Brotéria em
Janeiro de 1942. Logo a seguir, o Provincial jesuíta toma a medida
radical de proibir que dentro da ordem alguém fale da Alexandrina e
envia o Padre Mariano Pinho para Vale de Cambra.
A
propósito da recente edição das cartas de Santa Gema Galgani»,
escreveu o Padre J. de Guibert S.J., no último fascículo de La
Civiltà Cattolica,
um estudo muito oportuno, cujas conclusões sobre apreciação crítica
de fenómenos místicos e sua distinção ou possível interdependência
de estados psico-fisiológicos merecem, também entre nós, ponderada
atenção.
Alexis
Carrel, cujo labor científico no estudo dos fenómenos
fisio-psicológicos é bem conhecido, dedicou à investigação dos
fenómenos místicos um dos melhores capítulos do seu livro sobre o
homem.
E é precisamente, nesse ponto de vista científico em que se colocou,
que Carrel afirma ser o sentido místico uma das actividades
essenciais da humanidade,
e que, de todas as formas de actividade religiosa, a mais elevada é
a da mística cristã — conclusão a que
também chegou Bergson, na última parte de Deux sources de la
morale et de la religion
e, mais perto de nós, e através de
Bergson,
a alma insatisfeita (porque riquíssima
de qualidades humanas) de Leonardo Coimbra. Devemos, como diz Carrel,
aceitar a experiência dos místicos, tal como ela se nos apresenta,
latente em tendência no fundo de cada um de nós, e em perfeição de
plenitude nos santos,
«à procura dessa realidade invisível que
reside no mundo e o transcende».
A
verificação deste facto levou Bergson a Deus. Natura non fallitur.
Se toda a maré denuncia, para além das nuvens, um astro vencedor,
esta universal e incessante maré das almas não podia tender para um
céu vazio. É evidente. Mas este esforço de procura podemos
considerá-lo no plano da ascética, como actividade sobrenatural do
homem em ordem à perfeição cristã, ou no plano da mística, que os
teólogos definem como actividade especial de Deus nas almas, em
ordem a ajudá-las, por meio de graças eminentes, a atingir a união
perfeita e a nela progredir. A primeira é uma forma particular da
teologia moral, ao passo que a segunda se prende mais com a teologia
dogmática, da qual constitui uma especialidade, consagrada ao estudo
da actividade superior da graça e ao esclarecimento da teologia
ascética, em ordem à direcção prática das almas já avançadas em
perfeição sobrenatural.
Mas é
claro que, como nas outras tendências naturais, também na linha da
tendência mística podem dar-se desvios, perversões mais ou menos
graves, e até autênticas contrafacções que é dever prevenir, e seria
crime, ou pelo menos, imprudência fomentar.
Não é,
evidentemente, o caso de Gema Galgani, cuja santidade heróica a
levou aos altares. Notemos, no entanto, que a Igreja se não quis
pronunciar sobre os fenómenos preternaturais, tão frequentes nesta
alma de eleição. Mais ainda: o decreto de 29 de Novembro de 1931, no
qual se proclamava a heroicidade das virtudes de Gema, não só se não
pronuncia sobre a natureza desses fenómenos, mas declara
expressamente que o não quer fazer: «O presente decreto não julga (o
que, aliás, não é costume) acerca dos carismas preternaturais da
Serva de Deus».
Esta
reserva, como observa o P. Guibert, é expressiva. E explica-se já
pelo facto das multíplices e difíceis questões a que dá lugar o
preternatural na vida de Gema, já pela divergência de critério e,
consequentemente, de apreciação nos seus
directores
espirituais: Mons. Volpi e o P. Germano.
«Que nestes
factos extraordinários (êxtases, visões, palavras, estigmas,
obsessões diabólicas), seja tudo de ordem patológica, não
parece atendendo principalmente ao número desses fenómenos e
n indiscutível grandeza
moral e santidade da vida de Gema».
Mas como explicar, então, então, as hesitações de Mons. Volpi,
quando depôs no processo ordinário para a beatificação? O P.
Guibert explica-as pelo facto de nenhum deles ter praticamente
considerado a possibilidade da presença simultânea, em Gema Galgani,
de dons e fenómenos preternaturais e de factos simplesmente
patológicos, tantas vezes dificílimos de distinguir, quando se trata
de revelações particulares.
É certo que
nenhum deles duvida da santidade heróica da seráfica virgem de Luca;
mas, enquanto que o Padre Germano atribuía, sem hesitação, a causas
preternaturais todos os fenómenos por ele observados, Mons.
Volpi, impressionado por certos aspectos de alguns desses fenómenos
e pela presença na santa de outros factos indiscutivelmente
dependentes de doença natural, hesitava, ao estabelecer sobre eles o
seu juízo. São típicas, a este respeito, as duas cartas de Março de
1901. Tendo Mons. Volpi encarregado o seu secretário de examinar
Gema, durante os fenómenos de estigmatização e flagelação, a santa
escreveu, perturbada, ao P. Germano, queixando-se disso.
Então, o Padre
Germano dirigiu-se a Mons. Volpi, lamentando o que se tinha passado,
e pedindo-lhe que fosse lá ele, se quisesse, mas não mandasse
ninguém, «nem padres, nem seculares, nem confessores»
extraordinários, nem médicos». Dizia-lhe mais: que Nosso
Senhor tinha ficado muito descontente (il Signore è rimasto assai
dispiaciuto) com o que se tinha passado.
A esta carta,
respondeu Mons. Volpi, dizendo-lhe que o Senhor não podia ficar
descontente à conta do exame feito pelo confessor ou pelo bispo. E
que, se Gema queria que ele a continuasse a dirigir, como fazia há
muitos anos, era necessário que se submetesse a tudo o que
ele reputasse necessário ou vantajoso ao seu bem espiritual. «O
secretário que lá mandei, continua o prelado, é pessoa da minha
plena confiança e fico pela sua total circunspecção. Demais a mais,
as obras de Deus não temem a luz, desde que esta se não procure por
vanglória… De viva voz lhe manifestei algumas dúvidas acerca do que
com a jovem se passa e não estou resolvido a depô-las sem um sério e
cuidadoso exame, e isto sem restrições a respeito de sacerdote ou de
médico».
Como diz o
Padre Guibert, revelam-se aqui, bem nitidamente, as posições dos
dois directores. Estas cartas são, como vimos, de Março de 1901.
Ora, é interessante notar que, praticamente, o Padre Germano admitia
também, meio ano depois, que, de facto, Gema se podia enganar sobre
a origem divina de certa sugestão. E o que se vê duma
carta dele a Cecília
Giannini, acerca dum desejo
pretensamente manifestado por Deus e do qual o Padre Germano escreve
não poder persuadir-se «que o que Gema diz, venha tudo realmente de
Jesus». E explica: «Nas visões e locuções divinas, ainda as mais
certas, pode misturar-se, às vezes, a fantasia. E que a imaginação,
excitada pelo trato com Deus, continua naturalmente activa depois de
interrompida a acção sobrenatural. E, então, os videntes cuidam que
é ainda Deus a falar, quando a comunicação de Deus já findou.
Até os maiores
santos podem cair neste equívoco e, de facto, alguns deles têm
caído. Por isso, andam mal os directores de almas que, pelo facto de
qualquer predição se não verificar, logo pensam que se trata duma
ilusão em tudo o mais…. É bom que Gema saiba isto, para que não seja
tão fácil em crer que tudo, que ela sente, venha sempre de
Jesus».
Como
se
vê, o
Padre
Germano está aqui no bom caminho, o mesmo caminho que Mons. Volpi
lhe indicava. No entanto, não parece que ele tivesse renunciado à
ideia expressa na carta que lhe mandou, sobre o julgamento «em
bloco» dos fenómenos em questão.
Pode, pois, perguntar-se qual das duas atitudes será a mais
prudente. Isto em tese. Porque, em hipótese, sendo o Padre Germano,
como era, um homem de Deus, instrumento de que o Senhor
manifestamente se servia para conduzir Gema a uma santidade fora do
vulgar, podemos admitir, no seu modo de proceder, uma especial
disposição da Providência. Mas, em tese, é evidente que Mons. Volpi
é quem tem razão.
Fez bern o
Padre Germano, evitando que se falasse de Gema e pedindo que a não
atormentassem com exames inúteis. Mas já se não pode dizer o mesmo,
quando se opôs às indagações dos sacerdotes e dos médicos a que
Mons. Volpi se referia. Supondo, porém, que, neste caso particular,
assim o dispusesse a Providência, o que não pode é admitir-se esta
atitude como regra geral. Dicunt medici — repetia,
muitas vezes, S. Tomás. Há coisas, em que só eles têm voto.
Seria, por
isso, imprudência rematada não os ouvir naquilo, em que a sua
competência é insubstituível. E, de facto, foi assim que decidiram,
por unanimidade, os teólogos reunidos em 1938, no Carmelo de
Avon-Fontainebleau, todos concordes em que, mesmo em almas muito
santas, e altamente favorecidas de carismas sobrenaturais, podem
coexistir, com esses carismas, factos patológicos notáveis, sem que
a razão e a liberdade sejam por isso comprometidas.
Mas, se isto é
assim, como discernir entre uns e outros, senão recorrendo a quem
possua a chave da interpretação patológica dos fenómenos a excluir
de qualquer significação sobrenatural? A resposta só pode ser a de
Mons. Volpi, a quem, como prelado diocesano, competia escolher os
meios mais adequados à guarda da fé e ao bem espiritual do seu
rebanho. É esta, pelo menos em tese, a boa doutrina.
(*) Chamamos a atenção para este artigo,
cujo assunto está sendo entre nós de máxima oportunidade.
Vemos, com espanto, difundir-se pelo país, com demasiada
insistência, um espírito visionário e preocupado de
preternaturalismo, que não deixa de ser perigoso para almas
afectadas dessa tendência, e até para a religião, em geral.
A publicidade dada numa Vida de N. Senhor Jesus Cristo
segundo os Evangelhos e visões de Ana Catarina Emmerich,
a pretensos fenómenos místicos duma doente do norte de
Portugal, parece-nos, sob todos os pontos de vista,
lamentável e, sem pôr em causa a boa fé do signatário dos
factos vistos e anotados em 29 de Agosto de 1941, sumamente
suspeita. Não nos compete a nós ajuizar oficialmente
da objectividade mística dos mesmos factos. Estamos no
entanto habilitados a declarar que o que, a páginas 332 do
volume V, da mesma Vida de Cristo (Lisboa, 1941), se
atribui a um sacerdote da Companhia de Jesus, é da
exclusiva responsabilidade pessoal deste. — Nota da
Redacção.
«Nullo tamen per praesens dacretum (quod quidem nunquam
fieri solet) prolato juditio de praeternaturalibus Servae
Dei charismatibus. Acta
Apostólicae Sedis, 1932, pág. 57.
Tratava-se duma revelação em que N.S. teria manifestado a
Gema o desejo de que o Padre Germano fosse pedir ao Papa a
fundação dum convento de Passionistas em Luca. O P. Germano
não acreditou nesta revelação. Lembrou-se, porém, dela logo
que Gema morreu, e foi a Roma expô-la Pio X, que aprovou, de
facto, a fundação desse convento.
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