Alexandrina de Balasar

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A mística e a medicina (*)

 

Agostinho Veloso                                 

 

Este artigo, que deu a maior força aos críticos do Padre Pinho, saiu na Brotéria em Janeiro de 1942. Logo a seguir, o Provincial jesuíta toma a medida radical de proibir que dentro da ordem alguém fale da Alexandrina e envia o Padre Mariano Pinho para Vale de Cambra.

 

A propósito da recente edição das cartas de Santa Gema Galgani»[1], escreveu o Padre J. de Guibert S.J., no último fascículo de La Civiltà Cattolica[2], um estudo muito oportuno, cujas conclusões sobre apreciação crítica de fenómenos místicos e sua distinção ou possível interdependência de estados psico-fisiológicos merecem, também entre nós, ponderada atenção.

Alexis Carrel, cujo labor científico no estudo dos fenómenos fisio-psicológicos é bem conhecido, dedicou à investigação dos fenómenos místicos um dos melhores capítulos do seu livro sobre o homem[3]. E é precisamente, nesse ponto de vista científico em que se colocou, que Carrel afirma ser o sentido místico uma das actividades essenciais da humanidade[4], e que, de todas as formas de actividade religiosa, a mais elevada é a da mística cristã — conclusão a que também chegou Bergson, na última parte de Deux sources de la morale et de la religion e, mais perto de nós, e através de Bergson, a alma insatisfeita (porque riquíssima de qualidades humanas) de Leonardo Coimbra. Devemos, como diz Carrel, aceitar a experiência dos místicos, tal como ela se nos apresenta[5], latente em tendência no fundo de cada um de nós, e em perfeição de plenitude nos santos, «à procura dessa realidade invisível que reside no mundo e o transcende».[6]

A verificação deste facto levou Bergson a Deus. Natura non fallitur. Se toda a maré denuncia, para além das nuvens, um astro vencedor, esta universal e incessante maré das almas não podia ten­der para um céu vazio. É evidente. Mas este esforço de procura podemos considerá-lo no plano da ascética, como actividade sobrenatural do homem em ordem à perfeição cristã, ou no plano da mística, que os teólogos definem como actividade especial de Deus nas almas, em ordem a ajudá-las, por meio de graças eminentes, a atingir a união perfeita e a nela progredir. A primeira é uma forma particular da teologia moral, ao passo que a segunda se prende mais com a teologia dogmática, da qual constitui uma especialidade, consagrada ao estudo da actividade superior da graça e ao esclarecimento da teologia ascética, em ordem à direcção prática das almas já avançadas em perfeição sobrenatural.[7]

Mas é claro que, como nas outras tendências naturais, também na linha da tendência mística podem dar-se desvios, perversões mais ou menos graves, e até autênticas contrafacções que é dever prevenir, e seria crime, ou pelo menos, imprudência fomentar.

Não é, evidentemente, o caso de Gema Galgani, cuja santidade heróica a levou aos altares. Notemos, no entanto, que a Igreja se não quis pronunciar sobre os fenómenos preternaturais, tão frequentes nesta alma de eleição. Mais ainda: o decreto de 29 de Novembro de 1931, no qual se proclamava a heroicidade das virtudes de Gema, não só se não pronuncia sobre a natureza desses fenómenos, mas declara expressamente que o não quer fazer: «O presente decreto não julga (o que, aliás, não é costume) acerca dos carismas preternaturais da Serva de Deus».[8]

Esta reserva, como observa o P. Guibert, é expressiva. E explica-se já pelo facto das multíplices e difíceis questões a que dá lugar o preternatural na vida de Gema, já pela divergência de critério e, consequentemente, de apreciação nos seus directores espirituais: Mons. Volpi e o P. Germano.

«Que nestes factos extraordinários (êxtases, visões, palavras, estigmas, obsessões diabólicas), seja tudo de ordem patológica, não parece atendendo principalmente ao número desses fenómenos e n indiscutível grandeza moral e santidade da vida de Gema»[9]. Mas como explicar, então, então, as hesitações de Mons. Volpi, quando depôs no processo ordinário para a beatificação? O P. Guibert explica-as pelo facto de nenhum deles ter praticamente considerado a possibilidade da presença simultânea, em Gema Galgani, de dons e fenómenos preternaturais e de factos simplesmente patológicos, tantas vezes dificílimos de distinguir, quando se trata de revelações particulares.[10]

É certo que nenhum deles duvida da santidade heróica da será­fica virgem de Luca; mas, enquanto que o Padre Germano atribuía, sem hesitação, a causas preternaturais todos os fenómenos por ele observados, Mons. Volpi, impressionado por certos aspectos de alguns desses fenómenos e pela presença na santa de outros factos indiscutivelmente dependentes de doença natural, hesitava, ao estabelecer sobre eles o seu juízo. São típicas, a este respeito, as duas cartas de Março de 1901. Tendo Mons. Volpi encarregado o seu secretário de examinar Gema, durante os fenómenos de estigmatização e flagelação, a santa escre­veu, perturbada, ao P. Germano, queixando-se disso.

Então, o Padre Germano dirigiu-se a Mons. Volpi, lamentando o que se tinha passado, e pedindo-lhe que fosse lá ele, se quisesse, mas não mandasse ninguém, «nem padres, nem seculares, nem confessores» extraordinários, nem médicos». Dizia-lhe mais: que Nosso Senhor tinha ficado muito descontente (il Signore è rimasto assai dispiaciuto) com o que se tinha passado.

A esta carta, respondeu Mons. Volpi, dizendo-lhe que o Senhor não podia ficar descontente à conta do exame feito pelo confessor ou pelo bispo. E que, se Gema queria que ele a continuasse a dirigir, como fazia há muitos anos, era necessário que se submetesse a tudo o que ele reputasse necessário ou vantajoso ao seu bem espiritual. «O secretário que lá mandei, continua o prelado, é pessoa da minha plena confiança e fico pela sua total circunspecção. Demais a mais, as obras de Deus não temem a luz, desde que esta se não procure por vanglória… De viva voz lhe manifestei algumas dúvidas acerca do que com a jovem se passa e não estou resolvido a depô-las sem um sério e cuidadoso exame, e isto sem restrições a respeito de sacerdote ou de médico».

Como diz o Padre Guibert, revelam-se aqui, bem nitidamente, as posições dos dois directores. Estas cartas são, como vimos, de Março de 1901. Ora, é interessante notar que, praticamente, o Padre Germano admitia também, meio ano depois, que, de facto, Gema se podia enganar sobre a origem divina de certa sugestão. E o que se vê duma carta dele a Cecília Giannini, acerca dum desejo[11] pretensamente manifestado por Deus e do qual o Padre Germano escreve não poder persuadir-se «que o que Gema diz, venha tudo realmente de Jesus». E explica: «Nas visões e locuções divinas, ainda as mais certas, pode misturar-se, às vezes, a fantasia. E que a imaginação, excitada pelo trato com Deus, continua naturalmente activa depois de inter­rompida a acção sobrenatural. E, então, os videntes cuidam que é ainda Deus a falar, quando a comunicação de Deus já findou.

Até os maiores santos podem cair neste equívoco e, de facto, alguns deles têm caído. Por isso, andam mal os directores de almas que, pelo facto de qualquer predição se não verificar, logo pensam que se trata duma ilusão em tudo o mais…. É bom que Gema saiba isto, para que não seja tão fácil em crer que tudo, que ela sente, venha sempre de Jesus».

Como se vê, o Padre Germano está aqui no bom caminho, o mesmo caminho que Mons. Volpi lhe indicava. No entanto, não parece que ele tivesse renunciado à ideia expressa na carta que lhe mandou, sobre o julgamento «em bloco» dos fenómenos em questão.[12] Pode, pois, perguntar-se qual das duas atitudes será a mais prudente. Isto em tese. Porque, em hipótese, sendo o Padre Germano, como era, um homem de Deus, instrumento de que o Senhor manifestamente se servia para conduzir Gema a uma santidade fora do vulgar, podemos admitir, no seu modo de proceder, uma especial disposição da Providência. Mas, em tese, é evidente que Mons. Volpi é quem tem razão.

Fez bern o Padre Germano, evitando que se falasse de Gema e pedindo que a não atormentassem com exames inúteis. Mas já se não pode dizer o mesmo, quando se opôs às indagações dos sacerdotes e dos médicos a que Mons. Volpi se referia. Supondo, porém, que, neste caso particular, assim o dispusesse a Providência, o que não pode é admitir-se esta atitude como regra geral. Dicunt medici — repetia, muitas vezes, S. Tomás. Há coisas, em que só eles têm voto.

Seria, por isso, imprudência rematada não os ouvir naquilo, em que a sua competência é insubstituível. E, de facto, foi assim que decidiram, por unanimidade, os teólogos reunidos em 1938, no Carmelo de Avon-Fontainebleau, todos concordes em que, mesmo em almas muito santas, e altamente favorecidas de carismas sobrenaturais, podem coexistir, com esses carismas, factos patológicos notáveis, sem que a razão e a liberdade sejam por isso comprometidas.

Mas, se isto é assim, como discernir entre uns e outros, senão recorrendo a quem possua a chave da interpretação patológica dos fenómenos a excluir de qualquer significação sobrenatural? A resposta só pode ser a de Mons. Volpi, a quem, como prelado dioce­sano, competia escolher os meios mais adequados à guarda da fé e ao bem espiritual do seu rebanho. É esta, pelo menos em tese, a boa doutrina.


(*) Chamamos a atenção para este artigo, cujo assunto está sendo entre nós de máxima oportunidade. Vemos, com espanto, difundir-se pelo país, com demasiada insistência, um espírito visionário e preocupado de preternaturalismo, que não deixa de ser perigoso para almas afectadas dessa tendência, e até para a religião, em geral. A publicidade dada numa Vida de N. Senhor Jesus Cristo segundo os Evangelhos e visões de Ana Catarina Emmerich, a pretensos fenómenos místicos duma doente do norte de Portugal, parece-nos, sob todos os pontos de vista, lamentável e, sem pôr em causa a boa fé do signatário dos factos vistos e anotados em 29 de Agosto de 1941, sumamente suspeita. Não nos compete a nós ajuizar oficialmente da objectividade mística dos mesmos factos. Estamos no entanto habilitados a declarar que o que, a páginas 332 do volume V, da mesma Vida de Cristo (Lisboa, 1941), se atribui a um sacerdote da Companhia de Jesus, é da exclusiva responsabilidade pessoal deste. — Nota da Redacção.

[1] Lettere di S. Gema Galgani, disposte ed annotate per cura della Postulazione dei PP. Passionisti. Con Prefazione di S.E. il Card. Pellegrinetti. Roma, SS. Giovanni e Paolo, 1941, in-8.º gr. pp. XXXII-496.

[2] 1 de Nov. de 1941.

[3] Cf. Dr. A. Carrel, L’homme, cet inconnu, Paris, Plon, 1936, pp. 157-165. Editou-o em óptima tradução portuguesa a Livraria Educação Nacional, do Porto.

[4] Ob. cit., pág. 158.

[5] Ob. cit., pág. 160.

[6] Ibid., pág. 160.

[7] Cf. P. Fulbert Cayré, La contemplation augustinienne, André Blot, Paris, 1927, pág. 267.

[8] «Nullo tamen per praesens dacretum (quod quidem nunquam fieri solet) prolato juditio de praeternaturalibus Servae Dei charismatibus. Acta Apostólicae Sedis, 1932, pág. 57.

[9] Loc. Cit. pág. 201.

[10] A revelação é particular, quando se faz em benefício daquele a quem se dirige; é pública, quando tende ao bem de toda a Igreja. Cf. Ad. Tanquerey, Compêndio de Teologia Ascética e Mística. Trad. de J.F. Fontes, pág. 963.

[11] Tratava-se duma revelação em que N.S. teria manifestado a Gema o desejo de que o Padre Germano fosse pedir ao Papa a fundação dum convento de Passionistas em Luca. O P. Germano não acreditou nesta revelação. Lembrou-se, porém, dela logo que Gema morreu, e foi a Roma expô-la Pio X, que aprovou, de facto, a fundação desse convento.

[12] Na carta a Mons. Volpi, a que acima nos referimos, lê-se efectivamente este inciso: Se vuol giudicare sui fatti esterni di G., non ne prenda uno o due separatamente: ma li prenda tutti insieme.

 

 

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