SEM DIRECTOR ESPIRITUAL
1941-1942
P.e
Mariano Pinho
O
texto que se segue é o capítulo 24 de No
Calvário de Balasar; nele o autor sintetiza as movimentações que
levaram ao seu afastamento da direcção da Alexandrina. Fá-lo com o
cuidado de não magoar ninguém: por isso não menciona o P.e Agostinho
Veloso, nem o director da Brotéria (o P.e Domingos Maurício),
nem o Provincial (P.e Júlio Marinho), nem diz que foi afastado da
direcção de revistas como o Mensageiro de Maria, etc., para
ser silenciado em Vale de Cambra. Em vez disso, refere nomes, como o
P.e Alves Terças ou o Dr. Abel Pacheco, que só muito
involuntariamente contribuíram para o caso.
Já de
há tempos que a Alexandrina se vinha referindo a sofrimentos do
director espiritual, sem que este nada lhe tivesse dado a entender.
E assim, a 18 de Outubro de 1941, por exemplo, escreve:
Se
pudesse ser, em vez desta carta, ir eu mesma! Sinto necessidade de
alívio para o meu corpo e sinto também necessidade de alívio e luz
para a alma. Estou tão ceguinha e numa dor tão profunda!
Anseio
por amar o meu Jesus: são ânsias devoradoras. Se me dissessem que no
fundo do mar estava um cofre onde estava encerrado o amor de Jesus,
eu, louca de alegria, lançava-me ao fundo a buscar esse cofre que
possuía o amor de Jesus e com o amor dele eu O queria amar! Queria
frequentar a escola do amor: queria aprender a amar o meu Jesus e a
amá-lo na dor, amá-lo no meio de tudo o que é sofrer. Não sei da
escola, não sei do amor. Sem luz não vejo e sem amar o meu Jesus não
posso viver.
E, já a
terminar a carta, diz:
Meu
Padre, peço-lhe por caridade para me dizer se sofre e se eu sou a
causa do seu sofrer! Não me engane: venha o que vier, digam o que
disserem. Não poderei resistir às lágrimas, mas não me entristeço
com Jesus. Eu amo tudo o que dele me vem. O que eu quero é o Céu e
dá-lo a todas as almas. Não me importa viver noite e dia cravada na
cruz.
E, a 22
do mesmo mês, acrescenta ainda:
Estou
muito doente, mal posso ditar estas palavrinhas. Sinto necessidade
de o fazer, por mim, para desabafar: ver se respiro melhor debaixo
do peso da cruz; e pelo meu Paizinho: para lhe dizer que, quanto
mais sinto que sofre, mais Jesus une as nossas almas. Melhor,
conheço que é o caminho que Nosso Senhor talhou para o meu Padre
seguir. Caminhamos por amor unidos na mesma dor: Jesus o quer. Não
importa que o mundo não conheça estes caminhos, não compreenda este
sofrer. Se Jesus com isto é amado e desagravado, que mais devemos
desejar?
Evidentemente
que o director sentia a fundo a responsabilidade que sobre ele
pesava com a direcção desta alma que caminhava por vias tão
extraordinárias e não era para ele nada agradável perceber a
perseguição que já se estava movendo ao Caso de Balasar, por
elementos que (embora nunca tivessem examinado nem visto a doente
nem estudado os imensos documentos que sobre ela já então
possuíamos), devido à sua posição, influíam sinistramente no caso.
Perseguição que mais se cimentou e agravou ao divulgar-se a
opinião do Dr. Abel Pacheco sobre a doença da Alexandrina, a que
cegamente aderiram, sem atenção ao parecer dos outros distintos
médicos, e que acima ficou bem clara.
Ao
director consideravam-no como um visionário, um imprudente e
elemento perigoso que necessariamente se devia afastar e quiçá
começariam já a estranhar que o Superior do mesmo não interviesse
eficazmente. Momentos bem desagradáveis por certo para o pobre
Superior, que também ele não conhecia pessoalmente a doente.
Para
precipitar essa intervenção, concorreu decisivamente a publicação de
um fascículo, o n.º 10 da Vida de Cristo, a Paixão
Dolorosa, vol. V, pelo Padre José Alves Terças, Lisboa, 1941,
onde, depois de falar do Santo Sudário de Turim, fala de “A
martirizada do Calvário”, isto é, da Alexandrina, narrando miúda e
longamente os factos que viu e anotou a 29 de Agosto de 1941,
durante o êxtase da Paixão.
A
Alexandrina refere-se ao caso, em carta autógrafa escrita por ela à
meia-noite de 27 de Agosto de 1941:
Meu
Padre, é quase meia-noite; venho agora mesmo de contemplar o céu.
Chorei de olhos fitos no alto do firmamento. Disse a Jesus:
Quando
me levais para Vós? Quando poderá partir esta criminosa que anda a
ser julgada e interrogada, como o maior assassino e criminoso do
mundo?
Tendes
razão, meu Jesus: o meu julgamento assemelha-se bem com o que eu
sinto na minha alma. Eu tenho nojo e vergonha de mim: estou coberta
de todos os vícios e crimes!
Ai meu
Padre, hoje ao cair da tarde, fui interrogada por um senhor Padre da
Ordem do Espírito Santo, chamado Padre Terças. Tratou-me com muito
carinho, mas interrogou-me seriamente. Custou-me tanto! Não posso
falar da Paixão de Jesus e tive que falar: eis a razão das minhas
lágrimas. Só por Jesus, só por seu amor. Este exame veio agravar a
minha dor, já tão profunda; tornou-se mais doloroso o meu calvário.
Novos espinhos virão ferir o meu pobre coração e ladear o caminho
triste do meu penoso calvário.
Senti
em mim a força divina: senti que Jesus me obrigava a caminhar para a
frente. As dúvidas atormentam-me e eu, para poder resistir, digo a
mim mesmo: se esta obra fosse minha, era isto bastante para ela
acabar...
Nas
notas autobiográficas, é mais explícita:
No dia
27 de Agosto de 1941, recebi a visita do Sr. Abade acompanhado pelo
Padre Terças e outro sacerdote. Esta visita foi para mim de grande
desgosto, pois fiz o sacrifício de responder às perguntas que o Sr.
Padre Terças me fez diante de todos, o que me custou imenso.
Respondi a tudo conscientemente, porque pensava que viria em
estudo, como outros tinham vindo. Só Nosso Senhor pôde avaliar
quanto me custou ter de falar sobre o assunto da Paixão e foi sobre
isto que mais me interrogou. O nosso Pároco disse-me que Sua Rev.cia
queria voltar aqui, na próxima sexta-feira, dia 29. Não queria ceder
ao pedido sem consultar o meu Director Espiritual, mas, como me
dissessem que tinha de se retirar para Lisboa, nos dias imediatos a
este, consenti, dizendo:
Eu
penso que V. Rev.cia não vem aqui por curiosidade?
Como me
dissesse que não, cedi prontamente, embora me fizesse sofrer muito a
visita na sexta-feira.
Sua
Rev.cia não faltou, mas trouxe consigo mais três sacerdotes. Mal eu
pensava que esta visita vinha erguer para mim um novo calvário!
Não
levou muito tempo que Sua Rev.cia publicasse o que observou e o que
soube de mim.
Que
Jesus tenha em conta a dor que me causou aquela publicação, por
saber que a minha vida foi publicada e os meus segredos revelados,
aquilo que tanto tempo escondi.
De vez
em quando chegavam-me aos ouvidos vários comentários a meu respeito.
Eram espinhos que me cravaram no peito, mesmo sem as pessoas darem
por isso. Eram variadas as impressões com que ficavam as pessoas que
liam o livro ou ouviam falar de mim.
A minha
ida ao Porto e a publicação da minha vida fizeram inquietar os
espíritos dos Superiores do meu Director Espiritual, a ponto de o
proibirem de vir junto de mim e de me prestar a assistência
religiosa que necessito, assim como o proibiram também de me
escrever e de receber cartas minhas.
Logo
que nos chegou à mão o citado fascículo, apressámo-nos a escrever
ao Padre Terças (com quem nunca falámos e a quem nunca tínhamos
escrito coisa alguma), manifestando-lhe o nosso desagrado por uma
publicação daquele género, tão prematura. Sua Rev.cia respondeu-nos
de Lisboa, a 31 de Dezembro de 1941, o que segue:
Em
resposta ao cartão de V. Rev.cia de 17 do corrente, tenho a honra de
enviar-lhe o parecer do Sr. Arcebispo de Braga sobre a publicação do
caso da “Martirizada do Calvário”. Da carta de Sua Ex.cia Rev.ma,
tratando também doutros assuntos, remeto só o final dela, referente
ao caso do Calvário. O parecer do Sr. Arcebispo de Mitilene está
contido no “imprimatur”. A opinião do Senhor Cardeal Patriarca
tenho-a oralmente, pois, além das provas tipográficas, tudo lhe
expus de viva voz e com todas as particularidades.
Agora
pergunto eu: o que faria V. Rev.cia se, ao referir o que se passa no
lugar do Calvário, lhe respondessem: — esse é um dos muitos casos
para iludir o povo…— o que faria?
Colega
muito obrigado, P. José Alves Terças.
O final
da carta do Senhor Arcebispo é o seguinte:
Como V.
Rev.cia se apresenta autorizado pela Cúria de Lisboa e pelo Rev.
Superior Provincial, julgo que não devo intervir, nem mesmo
solicitado agora por V. Rev.cia... E só o faria mais tarde ex
officio, se se mostrasse que a narrativa dos factos feita no
livro trazia prejuízo grande às almas que me estão confiadas, o que
creio firmemente se não virá a dar. E até faço votos por que o livro
venha a produzir abundantes frutos espirituais, como V. Rev.cia, a
cujas boas intenções rendo justo preito, seguramente deseja.
Augurando a V. Rev.cia muitas boas festas natalícias, com alta
consideração me subscrevo.
† A.
Arcebispo Primaz.
Segundo
o dito, nenhuma das autoridades eclesiásticas mais imediatamente
responsáveis, de algum modo, na dita publicação, se alarmou nem lhe
pareceu necessário censurá-la. Mas alarmou-se uma conhecida Revista
de Lisboa (Brotéria). A propósito ou despropósito de um
artigo anódino sobre Mística, julgou oportuno então o director da
Revista pôr a seguinte nota:
Chamamos a atenção para este artigo, cujo assunto está sendo entre
nós da máxima oportunidade. Vemos com espanto difundir-se pelo País,
com demasiada insistência, um espírito visionário e preocupado de
preternaturalismo, que não deixa de ser perigoso para as almas
afectadas dessa pendência e até para a Religião em geral. A
publicidade dada numa Vida de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo
os Evangelhos e as visões de Ana Catarina Emmerich a pretensos
(?) fenómenos místicos duma doente do Norte de Portugal parece-nos,
sob todos os pontos de vista, lamentável e, sem pôr em causa a boa
fé do signatário dos factos vistos e anotados em 29 de Agosto de
1941, sumamente suspeita (??). Não nos compete a nós ajuizar
oficialmente da objectividade mística dos mesmos factos. Estamos no
entanto habilitados a declarar que o que, a pág. 332 do volume V da
mesma Vida de Cristo (Lisboa, 1941) se atribui a um sacerdote
da Companhia de Jesus, é da exclusiva responsabilidade deste.
Depois
de uma nota dessas, que reflectia bem o ambiente que contra o caso
se estava formando, estávamos para dizer, era lógico que o
Provincial proibisse ao director espiritual, a quem se refere a
nota, de continuar a tratar com a doente de Balasar.
Foi o
que sucedeu: o Provincial fulminou essa proibição, declarando que,
se o caso fosse de Deus, não precisava dos homens para o fazer
triunfar.
A carta
do Provincial foi recebida pelo director espiritual a 7 de Janeiro
de 1942; já no dia 2 de Janeiro de 1942 dizia Nosso Senhor à
Alexandrina:
Prepara-te para a luta, minha filha: tens que lutar aparentemente
sozinha. Depois da batalha vem a glória. O teu caminho não terá
luz, sol nem dia, mas é para que mais apareçam em ti as minhas
grandezas e para que na glória brilhe em ti o esplendor do meu amor
e vejas brilhar toda a beleza divina.
No dia
seguinte (3.1.42), repete-lhe Nosso Senhor as mesmas afirmações e
pergunta-lhe:
—
Aceitas, minha amada, toda a declaração do teu Jesus?
— Sim,
sim, meu Jesus, tudo aceito por vosso amor e sempre confiada que não
me faltais com a vossa graça, que a vossa força divina será em mim a
única resistência para todo o meu sofrer.
Salve
eu as almas e incendeie nos corações o vosso divino amor...
Neste
golpe que a Alexandrina vai sentir afinal até à morte, revela-se-nos
esplendidamente a solidez da sua virtude, na extraordinária
conformidade com a vontade de Deus e o espírito de fé com que encara
a situação, sem uma incriminação nem uma queixa contra ninguém. Mas
a dor é pungente e manifesta-a claramente nos seus escritos
espirituais dessa quadra. Copiamos ao menos o que encontramos a 19
de Fevereiro de 1942:
Meu bom
Jesus, sinto o meu coração retalhado de dor. Tereis ainda mais
golpes para ferir-me? Faça-se a vossa vontade! Gravada na cruz
convosco, escorrendo sangue e na maior agonia, vejo-me de todos
abandonada.
Não
posso viver no mundo: tenho medo, Jesus. Vinde depressa, vinde,
levai-me para o Céu. Os homens tentam desviar de mim, arrancar-me
para sempre aquilo que me servia de alívio, que podia dar-me
conforto. Tiram-me o meu Pai Espiritual; proíbem-no de me escrever a
mim e de lhe escrever a ele.
Permiti
Vós ao menos, meu Amado, de eu desabafar convosco. Estou sozinha,
no meio da tempestade e ela não serena. Abro-Vos o meu pobre
coração; só Vós sabeis ler o que nele está escrito com dor e sangue.
Só Vós compreendeis e podeis avaliar o meu sofrer. O mundo
desconhece-o; os homens nada compreendem. Deixai-me dizer a Vós o
que Vós dissestes ao Eterno Pai:
—
Perdoai-lhes, meu Jesus, porque eles não sabem o que fazem.
Estão
ceguinhos, falta-lhes a vossa divina luz; iluminai-os a todos e a
todos dai o vosso amor.
Ó meu
Jesus, todos os meus pressentimentos me têm saído certos. Poderão
eles ainda proibir que eu Vos receba sacramentalmente? Ai de mim!
Seria esse o golpe que me tiraria a vida, se Vós com o vosso divino
poder ma não conservásseis. Digam o que disserem, façam eles o que
fizerem, o que nunca conseguirão é tirar-me desta união íntima com
Vós (sic). Roubarem-me Jesus Sacramentado, sim, não duvido
que o façam; tirarem-me do meu coração o tesoiro riquíssimo que eu
adoro, que eu amo acima de todas as coisas, o Pai, o Filho, o
Espírito Santo, nunca, nunca os homens o conseguirão: teriam para
isso fazer-me viver sem coração e sem alma. Impossível. Venha a
força do mundo inteiro, seja ele todo contra mim a separar-me desta
grandeza infinita, deste Amor infinito, nunca! Só o pecado: só esse
me pode separar. Mas eu confio plenamente em Vós, é de Vós que eu
tudo espero, embora que o sentir da minha alma me chegue quase a
persuadir que me engano a mim mesma. Sinto que não Vos amo; sinto
que nada de Vós posso esperar, por tão grande ser a minha miséria.
Que
confusão a minha, que grande é o meu desfalecimento!...
E a
terminar:
Perdoai-me os meus desabafos, Jesus; bem vedes que só convosco posso
desabafar. Já que me escolhestes para a dor, já que me destinastes
para tão grandes martírios, eis a tua vítima, eis a tua escrava,
Jesus: faz de mim o que quiseres. A tua bênção, meu Amado. Diz à
Mãezinha que me abençoe e proteja.
Sou a
tua mais indigna filhinha, pobre Alexandrina.
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