

"A tua
vida será Dor e Amor..."
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Capítulo 30
DOR E AMOR
1944 -
1955
A
Doentinha de Balasar legou à posteridade, em seus numerosos escritos,
riquíssimo manancial em que não só nos revela bem transparente a sua
bela alma de eleição e os delicados e árduos caminhos por onde, desde a
infância até à morte, a conduziu a Providência, mas jorra deles luz
abundantíssima de preciosa doutrina espiritual.
E isto
tanto mais, quanto mais se aproxima do fim.
Impressiona de facto a quem conhece, por exemplo, a doutrina de São João
da Cruz, ler esses escritos da Alexandrina, sobretudo os dos últimos
quatro lustros de sua existência. Dir-se-ia que neles encontramos a
exemplificação vivida, num superlativo por vezes misterioso, dos
ensinamentos do grande Doutor Místico, particularmente no que se refere
à Noite passiva do sentido e muito mais ainda à do espírito e à União
consumada.
Muito
ficou já disperso nos vários capítulos deste livro a provar o que
afirmamos, mas seríamos incompletos, se não procurássemos, sempre à luz
dos mesmos escritos, tentar pôr ainda mais em foco até que culminâncias
atingiu essa purificação maravilhosa que, "despojando-a de tudo, lhe dá
tudo", levando-a até à consumação da união de amor com Deus, aurora da
união beatífica.
Já em
7.8.41, ouvia ela dizer:
O teu calvário ser-te-á cada vez mais penoso.
E foi-o
de facto. E antes, a 9.4.39:
Poucos são os momentos de alívio que terás na Terra.
A tua vida será Dor e Amor...
Eu preciso na Terra dos teus sofrimentos.
É que,
como ensina S. João da Cruz, "nessa purificação em que suas obras e
potências ficam mais divinas que humanas, despojam-se todas as potências,
afeições e sentimentos tanto espirituais como sensíveis, tanto
exteriores como interiores, ficando o entendimento às escuras e a
vontade às secas e vazia a memória e os afectos da alma em suma aflição,
amargura e aperto, privando-a do sentido e gosto que antes experimentava
nos bens espirituais". (ob. cit. 459)
Mas fale
a Alexandrina que já de longe vinha passando por esta noite: (31.10.43)
No dia de Cristo Rei, senti como se morresse o meu corpo
e o meu espírito e acabasse por completo a minha
existência no mundo. É indescritível a dor que isto me
causou. Mais ainda: sentia-me no purgatório. Que dor,
meu Deus, que dor! Há dias que sentia passar por mim
umas labaredas, julgando eu que era efeito da sede
ardente que continuamente sentia; mas enganei-me. Essas
labaredas continuaram: não eram as labaredas do fogo da
Terra. Tinham um brilho encantador. Passaram por mim,
horas seguidas, atormentando o meu corpo e todos os meus
sentidos. Atingiam a maior altura e todo o meu ser
ficava embebido nelas. Causavam-me dores indizíveis.
Mas, apesar disso, eu sentia necessidade de me mergulhar
nelas, para assim me purificar. Como a borboleta louca
pela chama, eu estava também louca e queria de braços
abertos entrar naquele fogo que atormentava, mas não
destruía, vivendo só numa ânsia: libertada daqui vou
para o meu Jesus!
Eu não sabia o significado de todo este sofrimento.
Soube sentir e nada mais. Jesus veio explicar-mo:
— Tem coragem, meu encanto, não desanimes, no teu
martírio, não te desalentes no teu calvário. Só assim os
pecadores são salvos, só assim o mundo recebe as graças
desejadas. Vives no purgatório, a barreira que te
separa do céu. Fui eu que assim o permiti. Agora já não
estás no mundo: vives como se não vivesses. O teu
tormento é inigualável: nunca o dei a nenhuma alma.
E Jesus
continua:
— Queres consolar-me assim, minha filha? Queres
continuar nesta dor?
— Tudo, meu Jesus, tudo o que Vós quiserdes. O meu
anseio é não viver sem vos dar consolação um momento só,
meu Jesus. Viver para vos consolar, viver para vos
salvar as almas, é a minha aspiração.
— Coragem então, filhinha. Se soubesses quanto bem vai
fazer às almas, quando souberem o tormento que te foi
dado!
O teu espírito morreu para o mundo, a tua vida é a vida
das almas do purgatório; mas não estás a sofrer só
por ti (porque para a sua purificação não eram
precisos tantos sofrimentos, como veremos no capítulo
seguinte). Depressa, depressa a dar a conhecer ao mundo,
quanto elas sofrem. Depressa, depressa as almas minhas
amadas a libertá-las.
Recebe o amor todo, o amor do teu Jesus e da tua
Mãezinha querida. Recebe as carícias de Jesus, as
carícias celestes...
E agora
veremos a Alexandrina a declarar de variadíssimos modos, que já não
vive, que dela só fica na Terra a dor e que nem essa lhe pertence.
Morri, morri para o mundo escreve a 13 de Maio de 1944 —
e para as criaturas. Tudo baixou ao túmulo para ficar
sempre sepultado.
Meu Deus, que horror! Já não vivo, só vive a minha dor
amada, só vive o meu inexplicável martírio. Poderá ele
sem a minha vida, dar vida às almas? Poderei ainda ser
útil à Humanidade?
Ó Jesus, posso assim amar-vos e consolar o vosso
santíssimo Coração?
Pobre de mim: depois do ódio e do abandono, depois do
esquecimento, do desprezo, baixei à sepultura; já vivo
na eternidade e sem que me désseis o meu Paizinho e sem
ter de novo aqui a santa Missa! Nunca mais, meu Jesus,
nunca mais posso ter alegria, a não ser com os olhos em
Vós. Podem de novo darem-me tudo o que me roubaram,
sinto que para mim tudo é morte e que já é tarde para me
ser restituído aquilo que eu mais amava e estimava
depois de Vós, ó meu Jesus...
E mais
abaixo:
A minha eternidade não tem luz; é uma eternidade que não
vos ama, que não vos louva, que não vos vê, que não vos
goza! Tremenda eternidade!
Não ver a Jesus é uma eternidade morta. Só a dor triunfa
sobre a morte. É o que vive na eternidade que eu sinto.
Seja qual for o estado da minha alma, Jesus,
apressai-vos a cumprir as vossas santas promessas. Eu
espero, eu espero confiada por vosso amor. Dai, Jesus,
dai vida às almas com a minha morte, com a minha
eternidade. Dai-lhes a vossa eternidade, dai-lhes o Céu,
o Céu, ó Jesus!
Mais
expressivo, se é possível o que ditou a 20 de Julho de 1944:
Jesus, poderá ser, será possível a morte falar? O
coração de um cadáver ter saudades do Céu, ânsias de
voar para Vós, louco, louco, por se esconder na
imensidade do vosso divino amor? Jesus, Jesus, é a minha
dor que Vos fala; é ela que vive; é uma dor que nela se
encerram todas as dores.
Jesus, sinto que o meu corpo já não é um cadáver, no
qual os vermes da terra ainda não penetraram; um cadáver
que depois de alguns dias ter baixado ao túmulo, pode
ainda ser reconhecido: não, meu Jesus, não: nem cinzas
tenho, tudo desapareceu. O meu Deus, que morte a minha,
que eternidade perdida!
Escutai, Jesus, tende compaixão: olhai para mim, lede na
minha dor. É por Vós, é pelas almas. Aguentai com o peso
que me causou a morte; vede que sem Vós não resisto a
tantas saudades do Céu e, com tantas ânsias de vos amar,
não posso estar aqui. A noite não tem estrelas, não há
dia, não há Sol. Ó dor, só tu vives: só tu vives, mas
não amas; não amas a Jesus, não vives para Jesus!
Ouvi, Senhor, o meu brado, chegue até Vós o meu
clamor!...
A quem
não tem experiência destes caminhos das almas de eleição, poderão
parecer exageros as expressões com que nos deixaram descritos o seu
sofrer. Mas S. João da Cruz pensava doutro modo e escrevia:
Donde convém ter grande compaixão da alma que Deus põe
nesta tempestuosa e horrenda noite (sublinhamos o
tempestuosa e horrenda), pela imensa pena que tem
e pela grande incerteza que tem de seu remédio, pois crê
que não há de acabar-se o seu mal. (cfr. ob. cit, pág.
472)
Se a
Alexandrina não sentisse imenso essa tempestuosa e horrenda noite de
espírito, não era capaz, por mais poeta ou artista que a imaginemos,
de deixar exarados tão ao vivo e de tão variados modos esses seus
sofrimentos. Não resistimos a copiar ao menos duas passagens desse mesmo
ano de 1944, incontestavelmente um dos mais dolorosos da sua vida. Uma é
de 27 de Julho e diz assim:
Trevas da noite, horrores da morte! Continua, Jesus, o
brado da dor; escutai: ela é que chora, é ela que grita
pelo vosso socorro. Jesus, é dor que sente dor; é dor
que outra vida não tem a não ser dor. Tudo o mais meu
Jesus, tudo o mais baixou ao túmulo, passou para a
eternidade. Não vejo luz; parece-me, ó meu Deus, que
nunca conheci a luz; não sei o que é o luar, o brilho do
Sol nem o cintilar das estrelas. Não sei o que é a vida
nem o amor de Jesus...
A outra é
de 27 de Setembro:
Meu Jesus, não posso viver aqui. Continuam as minhas
ânsias: quero amar-vos, quero morrer de amor! Morro por
vos dar almas. Quero vê-las todas, todas dentro do vosso
divino Coração. Tudo isto é nada, Jesus, nada para mim.
Não encontro no mundo satisfação nenhuma.
Quero agradecer-vos os vossos benefícios e nada sei
dizer-vos, nada sei agradecer-vos... Parece-me, Jesus,
quando vos chamo, quando invoco o vosso divino amor e da
querida Mãezinha, que não sou ouvida. Sinto o meu brado
ficar abafado no montão da cinza do meu pobre corpo que
já não é um cadáver, como há pouco sentia, mas cinzas,
só cinzas, meu Jesus. Parece-me estar num cemitério e
quando, no meio da agonia da minha alma imploro o
auxílio do Céu, esse brado em vez de subir ao alto,
perde-se abafado nesse montão de cinza e na cinza de
outros cadáveres que jazem no cemitério em que me
encontro e cuja extensão eu não sei medir.
Tende dó, Jesus: vede quanto sofre a minha pobre alma.
Não caibo em mim de dor. Não cabe em mim o meu coração
em ânsias de vos amar e voar para Vós. Não digo bem, meu
Jesus: este coração não é meu. Não sei a quem pertence.
Aonde está ele, ó Jesus, a quem pertence?
Tudo morreu, Jesus, tende dó de mim!...
No meio
destas trevas misteriosas, desta vida de morte total, rasgava-se de vez
em quando o Céu e vinha o conforto suficiente para poder continuar o seu
árduo caminho. Os primeiros sábados eram geralmente o momento escolhido
por Deus para estes alívios reconfortantes. Vejamos, por exemplo em 6 de
Maio deste mesmo ano de 1944:
— Estou sentado como um rei no trono do teu coração —
ouvia ela de Nosso Senhor — Sou Rei, sou Senhor da tua
alma, do teu corpo e de todo o teu ser. Tu és pedra
preciosa, és a minha jóia riquíssima. Não posso
ausentar-me de ti.
Os crimes da Humanidade fazem-me tiritar de frio. O teu
coração é fogo: o teu coração é amor. Como eu me sinto
bem ao calor da alma virgem!
Não temas, filhinha: consola-te e alegra-te, como me
alegras a mim. Alegra-te e consola-te com a reparação
que me dás. É necessária a inocência e a pureza das
virgens para reparar tantos crimes, tantas imundícies!
Que horrores, que maldades contra a santa pureza!
Jogo, brinco contigo: consolo-me no teu martírio.
Que alvura, que alvura a da tua alma! És mais brilhante
para mim que o Sol com seus raios e esplendores; és
mais, muito mais, imensamente mais purificada no
sofrimento, do que o oiro no cadinho.
— Purificai-me, purificai-me, meu Jesus; quero ser pura,
bela aos vossos divinos olhos. Passe pelo que passar
perante o mundo. Faça ele o juízo que fizer, contanto
que eu seja vossa; contanto que eu vos ame; contanto que
eu vos salve almas! Não quero ofender-vos, Jesus, na
mínima coisinha: antes milhões e milhões de infernos!
— Não me ofendes: sossega; recebe a minha paz. Que
encantadores desígnios tenho sobre ti!..
No
primeiro sábado, a 2 de Setembro, dá-lhe Jesus o seu divino Coração.
Fale a Alexandrina:
Tudo o que é de Jesus caminha à minha frente e
desaparece, como se por mim não passasse. Parece-me que
tudo desconheço. Sinto-me sozinha, vendo só em mim o meu
nada, a minha miséria, e sem poder aguentar as ânsias de
amor a Jesus e de O possuir inteiramente.
Foi neste estado de alma que eu hoje O recebi. Queria
dizer-lhe tudo e nada sabia dizer-lhe. Ele estava
escondido na minha miséria. Eu não O sentia, não O amava.
Passei assim alguns momentos; a minha alma começou a
inundar-se e a sentir uma doce paz. Então ouvi-o dizer-me:
— Tenho frio, tenho sede, tenho fome, minha filha.
Aquece-me com o teu amor, mata-me a fome e a sede das
almas.
Tenho fome, tenho sede! Dá-me, minha filha, as tuas
dores, os teus martírios, a tua imolação.
O teu sangue é o selo com que posso selar as portas do
inferno para não se abrirem. É o resgate, é o preço das
almas, é o passaporte para uma eternidade feliz.
Pega, minha filha querida, aceita o meu divino
Coração; és a depositária, és o cofre das minhas
riquezas.
É teu: guarda nele todos os que te são queridos, porque
também são queridos meus. Guarda nele os pecadores,
guarda nele os Sacerdotes, guarda nele todos quantos
quiseres.
Dou-to, porque te amo; dou-to, porque te dei uma sublime
missão.
É por ti que as almas vêm a mim purificadas com a tua
dor e no teu sangue passam para o meu Coração divino.
Senti — continua a Alexandrina — que Jesus passou, ou
melhor, depositou em mim o seu divino Coração. O meu
estava abrasadíssimo. Via do Coração divino de Jesus
saírem grandes chamas e, por entre elas, manchas de
sangue saindo da grande chaga que o abria. Ao ver-me
depositária de tão grande riqueza, disse:
— Ó Jesus, como podeis Vós entregar nas minhas indignas
mãos o vosso Coração divino, este tesoiro imenso? Eu não
sou digna de beijar a terra, não digo onde pousais os
vossos santíssimos pés, mas aquela por onde passais
voando. Que indignidade a minha!
Do dia 13
de Maio em diante, como vimos, experimentou a Alexandrina que tinha
morrido tudo nela: só vivia a dor.
A 15 de
Agosto, vai mais longe o despojo: pelo menos por algum tempo, sente que
até a vida dessa dor lhe é misteriosamente arrebatada. Mas oiçamo-la:
Chegou o dia da Mãezinha e, ao recordar o dia que era e
a alegria que havia no Céu, parecia-me não resistir às
dores desta Terra.
Veio o momento da Comunhão. Poucos minutos depois de ter
recebido a Jesus, senti como que um assalto dentro de
mim. Pareceu-me que foi Jesus, como se fosse um ladrão,
a entrar e a sair logo, levando consigo esse pouco de
vida que dá vida à minha dor.
Senti-me morta, mas continuei a sofrer mais, por
sentir-me sem esse pouco de vida da minha dor. Senti que
me faltava tudo de mim mesma e como que separada,
cortada ao meio, ficando aqui o meu cadáver e lá no
alto, no Céu, aquele roubo que era um aparte. Esta parte
estava mergulhada no gozo completo, menos o da vista de
Deus, sem dar porém à parte que ficou na Terra alívio
nenhum, pelo contrário, esmagando-a num abismo de dor
sem fim.
Passei o dia todo numa ânsia dolorosa de possuir outra
vez aquela parte de mim que me pertencia e sem a qual eu
era cadáver. Foi um dia que me pareceu não ter fim;
passei-o num brado contínuo a Jesus e à Mãezinha e a
perguntar-me:
Ó meu Deus, sem vida, como posso viver?
Na tarde desse dia, ouvi novamente as harmonias que já
tinha ouvido no dia 12 e foi como que um calmante ao meu
sofrimento, sem o qual me parece não teria resistido
aqui muitas horas.
À noite, não me lembro a hora, foi-me restituído o
roubo; dei-me conta disso, por me sentir reviver.
E vão
correndo os dias, os meses, os anos e esse mistério de dor e de amor a
intensificarem-se sem medida na Alexandrina.
A 28.8.47
escreve:
Sinto-me a morrer desfalecida, sinto-me a não poder
mais. Queria morrer de amor, de amor só por Jesus. Quero
amá-lo e não sei. Quero ser perfeita e em nada vejo em
mim a perfeição. Que trevas de morte!
Mas se soubesse o desejo que tenho de amar estas trevas!
Abracei-as com a cruz, abracei-as com Jesus, dei-lhe
este abraço para sempre. Vejo na cruz amor e dor;
amor e dor sem fim. É este amor, é esta dor que eu
quero; foi esta a cruz que abracei pelo meu Jesus, pelas
almas.
Em 1948,
a 13 de Setembro, esta passagem magnífica:
Tenho o meu corpo cheio de ligaduras, sinto todos os
ossos a desconjuntarem-se. Mas é esta e só esta a minha
alegria: sofrer por Jesus. Não me importa que já em
vida, se à divina Vontade assim aprouver, todo o meu
corpo se desfaça em podridão. O que eu quero é amá-lo a
Ele, só a Ele. Não quero perder um momento de
sofrimento, quero que ele seja aproveitado em favor das
almas, das minhas almas que custaram o
preciosíssimo sangue do meu amado Jesus.
Custa sofrer e por vezes solto gemidos, mas quero sofrer
e por nada do mundo trocava o sofrimento.
Se no corpo sofro muito, não sofro menos na alma... Que
fases eu estou a atravessar!
Não sou eu, não vivo eu, não há luz nem houve luz, nunca
sofri nem sofro nem virei a sofrer; nunca dei nada a
Jesus nem virei a dar. Eu sou nada, tão nada, que este
nada me apavora!
Eu sinto isto, mas a razão diz-me o contrário. Mas o
pior é que este estado da alma não atende à razão. A
minha cegueira nada me deixa ver nem compreender; só me
resta a minha confiança em Jesus. Quero viver sem
preocupação alguma, sobre Ele descarregar tudo. E isso
procuro fazer. Entrego-me nos braços da Divina
Providencia, sem querer pensar o que sofro ou virei a
sofrer; deixo passar a tempestade incessante que por
vezes é aterradora.
Vontade do meu Jesus, eu quero-te e amo-te; por nada te
trocarei.
Sejam quais forem os sofrimentos, por maiores que sejam
as dores do meu corpo e da minha alma, sinto no meu
íntimo uma grande paz, a paz que nos vem de Deus. Se em
alguns momentos estou mais atribulada e me sinto como
que a cair no desespero, lá vem Jesus invisivelmente a
deitar-me a mão. Faz serenar tudo; e a alma, no meio de
tanta dor, fica a gozar a mesma paz...
No meio
de tanta dor e tanta treva, teve a Alexandrina, a fins de 1949 ou talvez
em princípios de Janeiro de 1950, uma suave alegria. A ela se refere em
carta que nos escreveu a 9.1.50:
De Roma, por intermédio do Sr. Padre Humberto, recebi um
cartão com a fotografia do Santo Padre, de braços
abertos e olhos no Céu, e dizia assim:
Fui recebido pelo Santo Padre e pedi-lhe uma bênção
especial para si, dizendo-lhe alguma coisa da sua vida.
E ele, abrindo os braços afectuosamente e orando, disse:
— Sim, sim! Não uma, mas todas as bênçãos àquela filha
querida!
E disse também:
— A todos os seus e aos que a rodeiam.
Fiquei muito contente e estimei-o imenso.
Mas estes
breves contentamentos são nada para os constantes sofrimentos da alma. A
20.6.50 assim nos descreve, em carta, a sua extrema desolação:
É de arrepiar o pavoroso estado da minha alma! Sempre a
morte a derrotar todas as coisas da minha vida, sem que
elas cheguem a viver. Estou sem nada, de mãos vazias,
despido de tudo para a eternidade. De nada aproveita
para as almas nem para o Céu o meu viver.
Os meus sofrimentos são horrorosos, mas não vivem, não
aparecem e para maior tormento é ter que sofrer, querer
sofrer e não ter forças para sofrer.
Quero a dor e sinto ao mesmo tempo repugnância; amo-a e
com o amor parece que a odeio: está o ódio junto ao
amor; está a vida unida à morte. Vivo, sei que vivo, não
posso dizer que não vivo, mas também posso dizer que
estou morta com tudo o que se passou, passa e passará em
mim; morta, totalmente morta com todas as minhas coisas.
Falo assim e posso falar, porque não vivo, não; não
vivo: a vida que possuo não é minha, sinto que não é. A
morte sim, pertence-me, sou eu a senhora dela.
Aflige-me, meu Padre, escrever, por não saber dizer o
que me vai na alma: a minha ignorância não me deixa. Ai
que tremenda ignorância! Não há nenhuma que a ela se
possa assemelhar. Parece que fui, sou e serei a maior
ignorante entre os filhos do Senhor.
Neste martírio, tão só, tão só (estão longe os que a
dirigiam: um no Brasil, outro em Itália), naquele
abandono de Jesus na Cruz, parece que não tenho ninguém
por mim. Não há quem me dê um raiozinho de luz. Tudo é
treva na Terra e no Céu. E a ira do Senhor pesa tanto
sobre mim! Não sei como satisfazer à sua divina Justiça.
Meu Deus, e sem forças para sofrer!
Quando, junto à vontade de sofrer por Jesus, tinha a
coragem e a força, não custava tanto. Agora, sem
coragem, sem força, sem luz e sem vida, ó meu Deus!...
Linhas
abaixo, conclui:
Não se entristeça, meu Padre, com o estado da minha
alma. É grande, infinitamente grande a misericórdia de
Jesus sobre mim. Eu sinto paz, aquela paz que é dele.
Não tenho nada e tenho tudo. Ele sofre e ama em mim. São
devoradoras as ânsias que tenho de O amar e de em tudo
ser perfeita. Se eu pudesse, se fosse possível eu
dar-lhe todas as almas, que alegria para Jesus!...
Já
lembramos que, após o último êxtase da Paixão movimentado, de 27 de
Março, continuou a Alexandrina até à morte a experimentar
misteriosamente os sofrimentos de Cristo, todas as sextas-feiras, sem
que os pecadores soubessem o que se passava, se ela o não deixara, por
obediência, exarado em seus escritos. Sobe a umas 5.000 páginas
dactilografadas só o que ela ditou até à morte. Aí nos aparecem os seus
sofrimentos, sempre os mesmos e sempre misteriosamente novos e num
crescendo de intensidade indescritível.
Aí vemos,
por exemplo, a 9.3.51, referência ao intolerável martírio que lhe causa
o fogo do amor para com Deus:
Tenho tido tão grande, tão grande, infinitamente grande
o martírio e a dor do meu Coração! A chaga é tão
profunda: vazou-me dum lado ao outro e até me parece que
o peito e as costas também tudo foi aberto, tudo está
ferido. O coração tem a lança, as setas e os espinhos.
Chora, sangra, sofre incessantemente.
No sábado e no domingo senti nele um fogo tão grande
que eu não podia resistir; faltava-me a respiração,
parecia-me morrer sem ar. Só a panos molhados em água
fresca e roupa que tinha vestida, molhada, sobre o
peito, eu pude resistir.
Este fogo era de dor e não de consolação. Estive sempre
na cruz.
A 4.7.52,
primeira sexta-feira:
Parece-me que já basta de falar de mim, apesar de ter
imensa necessidade de desabafar: faço-o para obedecer,
mas representa para mim um enorme sacrifício.
Queria esconder-me e fugir aos olhares de todos. Busco a
glória do Senhor e o bem das almas, não é a minha glória
nem os louvores das criaturas. É por isso que sinto a
necessidade de refugiar-me e desaparecer para sempre.
É um martírio, é uma humilhação quase constante ao
ver-me rodeada de pessoas. Enquanto que elas falam, o
coração sangra-me de dor, por reconhecer o que sou e que
sou a alma mais pobrezinha, mais enferma que Jesus tem
na Terra.
Se todas as criaturas que se abeiram de mim, me
conhecessem, fugiam, nem de longe me queriam ver. A
minha inutilidade continua a ser um doloroso pavor para
a alma. Sofro muito, mas tudo inútil.
E mais
abaixo:
Por vezes o meu coração abre-se como um vulcão de
fogo. Quer queimar a Humanidade inteira e absorvê-la
toda em si. Mas aqui entra a inutilidade e nada posso
fazer...
No
colóquio, entre outras coisas, ouve Nosso Senhor dizer-lhe assim:
Sofres assim, minha filha amada, florinha eucarística,
sofres assim, porque és vítima. A tua inutilidade é para
que o meu sangue divino, toda a minha Paixão e Morte
seja útil a essas almas. Tu salvas, salvas almas, almas
sem conta. São milhões, milhões, milhões por esse mundo
além, a quem o teu sofrimento abre as portas do Céu...
Sofre, sofre, minha filha, o mundo exige o teu
sofrimento. Só as vítimas podem aplacar a justiça de meu
Pai. Tenho tão poucas! O número das que se deixam imolar
com amor e heroísmo é tão pequenino!...
Ainda a
9.3.51 experimenta a dor que os pecadores causam a Jesus:
Ai, meu Jesus, meu Jesus! Que dor eu sinto, que dor tão
profunda e que fogo tão abrasador! Parece queimar
todo o meu ser!
Jesus
responde-lhe:
É fogo divino, é dor divina. É amor que te dei do meu
divino Coração. É dor que me causam os pecadores.
Sofre, sofre, minha filha, faz como até aqui: não dês a
Jesus uma negativa.
Sofre e pede que sofram; quero dor e muita dor. A dor
foi, é e será o maior meio de salvação. Com a dor e o
sangue e a vida das minhas vítimas, as almas são salvas.
São salvas as almas, mas não o mundo poupado. A justiça
de Deus cai sobre a Terra: os corpos têm que sofrer, mas
as almas, essas, se houver grande reparação, estão
abertos os meus divinos braços para a todos receber.
E agora
já não é só nas sextas-feiras que é misticamente crucificada. Ficará
sempre na cruz. Eis o convite que lhe faz Jesus, na sexta-feira
santa de 1951, a 23 de Março. Depois de como sempre, viver e sentir
atrozmente com Cristo toda a sua divina Paixão, até se ver com Ele
sepultada, diz-lhe Nosso Senhor:
Minha filha, minha filha, desci ao sepulcro do teu
coração, não de pedra nem de terra, mas de graça e de
puro amor.
Filha, minha filha, não morri: estou a viver neste
coração ferido só por mim, neste coração a sangrar só
por amor.
Sofre, sofre, minha filha. Continua a minha obra de
redenção. Vou pedir-te e vou ser atendido. Vais dar-me
mais esta esmola. Dá, dá, não a negues, é o Mendigo do
amor. Doravante, enquanto viveres neste exílio,
ficarás sempre na cruz, não uma hora nem um dia, mas
todos os dias, todas as horas. Responde agora ao
pedido do teu Senhor.
— Já sabeis, Jesus, já conheceis toda a maldade do meu
coração, mas tende a certeza, meu doce Amor, que nada
vos posso negar. Estendo os meus braços em sinal de
aceitação. Estreito novamente tudo quanto me dais.
Recolho tudo para tudo fechar no mesmo coração. Não mais
o retireis, Jesus. É tão doce sofrer por Vós! É a minha
única alegria na Terra. Estou pronta para viver na cruz
com todos os sofrimentos desta Quaresma.
E Jesus
responde:
Minha filha, minha encantadora filha, é heróica a tua
generosidade, é sem igual o teu amor a Jesus, o teu amor
às almas. Não sou Eu que exijo este martírio contínuo,
são os pecadores, é o mundo.
Tem coragem, tem coragem, a graça do teu Deus não te
faltará nunca. Tens nas tuas mãos o triunfo e a salvação
das almas...
No dia do
seu aniversário desse mesmo ano, a 30 de Março, ouve de Jesus, no
costumado colóquio, estas palavras:
Escolhi-te para a dor, minha filha, escolhi-te para a
dor. E foi pela dor que te levei ao mais alto grau de
amor.
E agora
este desabafo a 9 de Janeiro de 1953:
Ou sofrer, ou morrer, meu Jesus.
São tão grandes as ânsias que tenho de sofrimento que me
levam a murmurar silenciosamente, é o meu coração a
falar, no mais íntimo com Deus:
Ai de mim, ai de mim, meu Jesus, se me tiráveis a dor!
Eu não saberia viver sem sofrer. A vida sem dor
seria para mim insuportável. Tenho a certeza, Jesus, que
sofreria mais, se é possível, sem sofrer, do que com os
sofrimentos que me dais.
Não há nada que se compare com a doçura da Cruz, quando
a aceitamos e levamos por amor.
É por Vós, Jesus, e pelas almas que eu sofro e que quero
e aceito o que Vós quereis e me dais.
Amo e beijo a mão bendita do Senhor.
Caio e não me levanto; a dor desfaz todo o meu ser. A
natureza apavorada sente quase impulso de revolta contra
a dor. Mas a vontade, no abraço mais íntimo, estreita-a,
prende-a, enleia-a toda em fortes cadeias do mais puro
amor: não pode deixá-la, não pode separar-se. Dor e
Jesus, Jesus e dor!
Mas este
capítulo não tem fim, tanta é a abundância e riqueza que encontramos no
que a Alexandrina nos deixou sobretudo, nesta matéria preciosa do amor
apaixonado à Cruz. Consintam-nos os leitores ao menos mais esta síntese
magnífica, exarada a 8 de Junho de 1951:
Porque a dor custa, é que eu quero sofrer: sinto prazer
no sofrimento e nele me delicio. Porque a dor custa, é
que eu a amo e me ofereço a Jesus como vítima. Quanto
mais doloroso é o meu martírio, mais eu lhe quero e mais
reconheço a minha miséria e o meu nada. Nunca, nunca eu
seria capaz de tanto — eu que já nem um vermezinho da
terra sou, eu que já nem sou sombra nem sou nada — como
poderia resistir tanto, se não fosse Jesus a sofrer, a
lutar e a vencer em mim? Ah, sim: é Ele, só Ele com a
querida Mãezinha que são a força do meu calvário!
É destes Corações divinos que me vêm as ânsias de me dar,
dar, consumir até desaparecer consumida nestes Amores. É
deles que me nascem os desejos de tudo sofrer e fazer
por amor. As mais pequeninas coisas levam-me ao
sacrifício: calo-me por amor, não sou curiosa por amor,
uso da caridade por amor quando por muitas vezes os meus
instintos queriam o contrário.
Não posso proceder mal: tenho que usar a caridade de
Jesus. Exige-o a sua glória, exige-o o seu amor,
exigem-no as almas!
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