Nascido
na Panónia entre 518-525 e falecido em 579, foi Bispo da diocese de
Braga e fundador do mosteiro de Dume,
tendo-se
revelado um dos principais instigadores do movimento monacal e da
cristianização nesta região da Península. Foi autor de um conjunto
de pequenos tratados de conteúdo eminente-mente ético, entre os quais
a Formula vitae honestae, durante muitos séculos atribuído a
Séneca, o qual constitui também um dos pri-meiros tratados, escritos
entre nós, da corrente literária de "espelho de príncipes", que
tanta fortuna viria a alcançar na Idade Média.
Destacou-se também pela recompilação das sentenças dos Padres do
Deserto (Aegyptiorum Patrum Sententiae), que prolongou numa
série de escritos de espiritualidade monacal, anteci-pando-se a Sto.
Isidoro e Tajón, e também pelo seu De correctione rusticorum, que
marcará o rumo tomado pela pastoral da igreja, sobretudo após o
concílio toledano III (589).
A sua
obra principal, a Formula vitae honestae, dedicada ao rei dos Suevos,
é elaborada se-guindo apenas os preceitos da razão natural, sem
recurso à moral revelada e, portanto, sem apoio na exegese bíblica,
facto pouco comum entre os autores cristãos. Disserta sobretudo
sobre as quatro virtudes cardinais, numa linha muito marcada pelo
estoicismo, tendo em vista a formação do homem prudente e sábio,
caracterizado pela ponderação e pela superação da dimensão
aparencial da vida. O homem que a si próprio se basta, que busca
apenas o que pode alcançar e que não se arroja a coisa mais alta, na
qual não possa sustentar-se sem temor, nem subir sem queda. O homem
capaz de viver desassustado e que espera desassombradamente a morte
como momento de libertação da tribulação do mundo, resgatando por
pouco os seus desejos, por só dever cuidar em que eles cessem,
amoldando-se ao divino exemplar.
Mas por
ser obra dedicada a um chefe temporal, entre as quatro virtudes
emerge naturalmente a justiça, assente na lei natural, como
participação da lei divina, tácita convenção da natureza e vínculo
da humana sociedade, ou não fosse a justiça, na tradição do
pensamento cristão o principal sustentáculo do poder temporal.
Já no
seu Tratado dos Costumes (De Moribus), prolonga o tema da obra
anterior, mas reforça a sua componente ascética, como era timbre do
movimento monacal de então, no quadro de um ideal de recolhimento e
de purificação interior, assumindo-se a solidão como a forma mais
prudente de viver com inculpáveis, por ter melhor e mais formoso
ânimo aquele que trata sobretudo com Deus.
Seguem-se os tratados De ira, Pro repellenda jactancia, De superbia
e Exhortatio humilitatis. O primeiro constitui um comentário da obra
de Séneca com o mesmo nome, sendo a ira analisada no seu contraste
com a prudência e a fortaleza, uma forma de loucura que desta apenas
se distingue pela sua dimensão mais momentânea. O segundo e o
terceiro tratados versam sobre a crítica ao orgulho e ao
amor-próprio, que levam o homem a esquecer o quanto deve a Deus na
consecução dos seus actos mais grandiosos. O quarto é o culminar dos
anteriores, exortando a humildade como a mais excelente das virtudes
cristãs, pois parecendo que mais rebaixa o homem, é no entanto a que
mais o eleva, sendo mais alta que o céu, pois o conduz para o seu
reino.
Uma
última referência cabe ainda ao De correctione rusticorum,
obra de fecundo interesse etnológico e antropológico, por fixar e
descrever as práticas religiosas mais comuns entre as religiões
pagãs da Galécia, em boa medida de inspiração céltica. Nesta obra,
de intenção eminentemente evangelizadora, expõe o essencial da
doutrina cristã acerca da criação do mundo e do homem, mas em
fórmulas claras, tendo em vista o auditório a que se destinavam,
transformando o pragmatismo e a simplicidade em caracteres gerais de
doutrinação, em articulação com as exigências pastorais da época.
Pelo
conjunto das suas obras de doutrinação moral, pela sua acção
pastoral em prol da correcção dos rústicos, pela conversão do reino
dos suevos e também pela acção cultural do mosteiro de Dume, por ele
fundado, a qual se desenvolveu por toda a idade média, S. Martinho
tem uma presença marcante nesta época remota da história cultural da
Península.
Pedro
Calafate |