1 - Nascimento
S. Fr.
Gil é um dos santos mais populares e singulares de Portugal e da
Ordem de S. Domingos. Popular porque o
povo
o ama, venera e invoca como verdadeiro homem de Deus, santo
religioso, taumaturgo, sábio e zeloso apóstolo do seu tempo, cuja
existência e actuação são, de facto, históricas. Singular
porque o mesmo povo, em muitos aspectos, envolveu a sua vida em
legendas ou lendas de estilo medieval e bastante raras, estranhas e
até inverosímeis, em que embarcaram autores conceituados de história
nem sempre criticas, legendas ou lendas que confundem religião com
superstição.
Uns
chamam-no S. Fr. Gil de Vouzela, distrito e diocese de Viseu, pois
foi em Vouzela a terra em que viu a luz do mundo na casa que hoje é
hospital e asilo, em 1190, o ano dado como mais certo pelos
historiadores; outros chamam-no S. Fr. Gil de Santarém, terra em que
viveu e faleceu santamente no convento dominicano, do qual hoje
apenas restam algumas ruínas; há ainda quem o chame S. Fr. Gil de
Portugal e, com razão, pois é uma figura nacional com verdadeira
projecção internacional, muito em especial na Ordem dos Pregadores
ou Dominicanos.
Em
Vouzela, onde é muito venerado em linda capela, há pouco restaurada,
mercê dos cuidados do seu Pároco actual, R. P. António de Barros
Barbosa, conserva-se ainda, repetimos, a casa onde, com toda a
probabilidade, nasceu em 1190.
Na
mesma casa nasceu – assim se diz – o célebre decepado, D. Duarte de
Almeida, que, na batalha de Tara, tendo-lhe sido cortadas ambas as
mãos, segurou heroicamente, com os dentes, a bandeira pátria e
mereceu a admiração dos inimigos. Foi seu pai D. Rodrigo (alguns
dizem Rui) Pais de Valadares, do Conselho de El-Rei D. Sancho I e
seu Mordomo-mor e também Alcaide-Mor da cidade e Castelo de Coimbra.
A esta conclusão leva o epitáfio latino duma sepultura da Igreja de
Santa Cruz de Coimbra, epitáfio recolhido por Fr. André de Resende,
O. P., e que reza assim em português: «Aqui jaz Dom Rodrigo, pai de
Frei Gil de Santarém e Alcaide-Mor do Castelo e cidade de Coimbra».
Sua mãe
foi Dona Maria Gil, segunda esposa de Dom Rodrigo, senhora de origem
ilustre e dotada de notável prudência e exímias virtudes.
Foram
seus pais senhores honrados, queridos de todos, pela sua índole, boa
e compassiva. S. Fr. Gil (D. Gil Rodrigues Valadares) teve outros
irmãos, sendo conhecidos, quanto ao nome, D. João Rodrigues
Valadares, D. Paio Rodrigues Valadares. De um nada se sabe nem
sequer o nome. De outro ignora-se o nome, mas consta que foi Deão da
Sé de Lisboa.
2 - Juventude
Muito
moço ainda, mostrou ser dotado de notável inteligência e aptidão
para as letras. Em Coimbra, então capital do Reino e residência de
D. Sancho I, agora dedicado à administração do nascente país
(Portugal), que até então vivera mais para as lides dos combates,
floresciam já as letras e as artes. O moço Gil iniciou-se, muito
cedo, nas artes do saber, provavelmente frequentando a escola do
mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Afeiçoou-se logo à filosofia e à
medicina e ganhou, desde o princípio dos estudos, fama de estudante
aproveitado, embora com algumas estroinices próprias da juventude.
Num
desejo sincero de valorizar-se nestas e noutras disciplinas que eram
matéria de estudo para aqueles que desejavam adquirir cultura,
deixou Coimbra e foi para Paris, onde se congregava o escol do saber
daquela época. Ao deixar a pátria tinha já alguns benefícios e
prebendas eclesiásticos e, quiçá, a dignidade de presbítero.
3 - Entrada na Ordem
dos Pregadores
Segundo
alguns historiadores menos críticos e não apoiados em documentos
fidedignos, a juventude de S. Fr. Gil não foi digna, nem diante de
Deus, nem diante dos homens, especialmente naqueles anos em que
empreendeu a viagem para Paris e nos anos em que ali estudou. Há
quem afirme que entregara a sua alma ao demónio, assinando um
documento com o próprio sangue. Acrescentam que a sua conversão
tivera início na mesma cidade de Paris e se consumara em Palência,
onde entrara na Ordem dos Pregadores.
Nada
disto está comprovado e a literatura em questão deve ter muito de
apócrifo, tendo de ser muito joeirado o seu conteúdo neste ponto.
Sabe-se, porém, que nessa época pregava à juventude estudantil de
Paris Fr. Jordão de Saxónia, que veio a ser o segundo Mestre Geral
da Ordem dos Pregadores, fundada havia muito poucos anos. E pregava
com tal êxito que muitos jovens estudantes e até professores
abandonaram o mundo e vieram a abraçar a vida religiosa na mesma
Ordem. Entre eles sobressai o Venerável Humberto de Romans, que veio
a ser Mestre Geral da Ordem e quinto sucessor de S. Domingos. Mestre
Humberto escreveu que S. Fr. Gil fora seu companheiro de noviciado.
Pode concluir-se, portanto que S. Fr. Gil entrou na Ordem
Dominicana, atraído pelo Beato Jordão de Saxónia conjuntamente com o
Venerável Humberto de Romans pelos anos de 1224-1225, regressando a
Portugal pelos anos de 1229.
Além da
pregação do Beato Jordão de Saxónia podem ter levado S. Fr. Gil a
entrar na Ordem a santidade dos filhos de S. Domingos, a eficácia da
Palavra de Deus proclamada pelos pregadores, a consideração das
vaidades deste mundo, das penas presentes e futuras, a devoção e
amor a Nossa Senhora, etc.
Da vida
santa que então levava e levou depois, fala-nos a célebre compilação
de narrações escritas por religiosos do seu tempo, inclusive por S.
Fr. Gil, e compiladas por Gerardo de Frachet, a pedido
de Humberto de Romans. A esse conjunto de narrações deu-se o nome de
«Vidas dos Irmãos» «Vitae Fratrum». Elas são o eco da vida fervorosa
daquela primeira geração de seguidores de S. Domingos de Gusmão.
Vale a
pena transcrever as passagens mais salientes a respeito de S. Fr.
Gil.
E
comecemos pelas tentações e provas que teve de vencer quando era
noviço. Delas nos dá conta nas Vitae Fratrum (Capítulo 17 da
IV Parte n.º 1 e 2) ao falar das Tentações dos Noviços
das quais extraímos dois excertos que rezam assim:
A – Da Tentação de um
Frade Espanhol
«Como
certo frade espanhol (Todos os autores o identificam
com S. Fr. Gil. A palavra «espanhol» designava então todo o
natural da Hispânia ou Península Ibérica), que depois foi de
grande autoridade e virtude, queixava-se, durante o noviciado, do
vestuário e da incomodidade do leito, pois no mundo havia vivido
submergido na moleza, revelou humildemente ao seu confessor esta
tentação e ele respondeu-lhe:
― Caríssimo irmão, lembrai-vos de que no mundo vivestes
lascivamente, e, por conseguinte, para redimir aquele regalo e em
remissão dos vossos pecados, sofrei agora este rigor não só
pacientemente, senão que recebei-o com gosto, porque o Senhor estará
a vosso lado.
Estas
palavras gravaram-se tão profundamente em seu coração, que
imediatamente cessou aquela tentação e aquelas coisas, que antes lhe
pareciam penosas, tornaram-se-lhe fáceis, considerando que, Por
isso, conseguiria a remissão dos pecados».
B – Da dificuldade que
teve o mesmo Frade na observância do silêncio
«O
mesmo Frade havia sido no mundo donairoso, alegre e extremamente
afável com os homens. E querendo guardar na Ordem o silêncio e
reprimir as palavras ociosas, abrasava-se e não podia conter o seu
espírito; mais ainda, parecia-lhe que uma chama lhe queimava o peito
e a garganta, se calava por mais tempo.
Até
que, certo dia, ilustrado o seu espírito, pensou que este ardor
podia ser uma tentação do diabo, e fez o propósito de não se mover
do seu sítio e conter-se em silêncio, ainda que se houvesse de
queimar e abrasar totalmente. Vendo, pois, Deus a sua decisão e a
firmeza de seu ânimo, afastou dele o espírito de agitação, de tal
maneira que, no futuro, lhe era doce o silêncio e permanecia, em seu
lugar, de boa gana, vivendo sem aquela angústia de espírito e
sobressaiu, depois, entre todos, nesta graça singular.
Todas
estas coisas as soube por ele o Mestre da Ordem (Humberto), que
viveu em sua companhia por largo tempo, quando esteve na Enfermaria
do convento de Paris, e não recorda ter-lhe ouvido alguma vez dizer
palavras ociosas senão que consolava aos que se sentiam desolados ou
falava de coisas divinas ou calava humildemente. E nunca, apesar de
estar enfermo quase continuamente, buscou outra coisa além do que
lhe ofereciam, e tudo recebia com acção de graças, ainda aquelas
coisas que lhe pareciam nocivas à sua compleição, costume ou
enfermidade. E porque todas as suas preocupações as pôs nas mãos de
Deus, Ele o teve a seu cuidado e depois de muitas tentações e
enfermidades o fortaleceu tanto, que mais tarde chegou a ser
eloquente pregador e útil leitor e laborioso prior Provincial, em
Espanha, durante muitos anos, perdendo pouco ou nada, no meio de
tantas ocupações, daquela primitiva santidade e fervor».
4 - Humildade de S.
Fr. Gil
De sua
santidade e muito em especial da sua humildade nos falam também
outras narrativas das Vidas dos Irmãos, como vamos ver (cf.
P. IV Cap. IIl, 1).
«De
certo frade espanhol (S. Fr. Gil) varão insigne pela
santidade e ilustre por sua autoridade, que no mundo, havia
desfrutado de elevada condição social, o venerável Padre Mestre
Humberto (de Romans), seu companheiro e muito seu amigo
durante todo o tempo em que com ele conviveu no convento (de S.
Jacques) de Paris e com ele havia estado doente na mesma
enfermaria, referiu que eram tão excelsas as suas virtudes, que,
enquanto os outros frades estavam nas aulas, ele (S. Fr. Gil)
ia por todos os dormitórios (lugares onde tinham as celas ou
quartos). Limpava os que estavam sujos, retirava da enfermaria
todo o lixo, embora, como médico, soubesse que lhe poderia fazer
mal. E dava graças ao Senhor.
Quando
alguém lhe pedia qualquer serviço, imediatamente deixava as suas
ocupações, mesmo a oração e os exercícios de piedade, e punha-se à
disposição com prontidão e ar alegre. Estas e outras coisas
semelhantes ensinava-as com as palavras e as obras, tendo sempre
presente a caridade fraterna.
A
ninguém ofendia, acatava prontamente o parecer dos mais velhos, era
assíduo na oração, na meditação, na leitura e no ensino. Embora
fosse grande letrado, escutava ou narrava com viva satisfação as
Vidas dos Padres e dos Santos, tendo em menos estima as outras
leituras.
Louvava
gostosamente as actividades apostólicas e a pregação dos outros,
esquecendo-se de si próprio.
A todos
edificava com a sua vida santa, animava-os a serem ardorosos no amor
à Ordem, à santa pobreza e à perfeita obediência.
Quando
a ele acudiam, perturbados pelas tentações, os noviços saíam da sua
presença sempre confortados.
Quando
estava doente, animava e confortava os outros enfermos,
aconselhando-os a não se preocuparem excessivamente com os remédios,
mas que tomassem, de ânimo alegre, os que lhes ministrassem,
confiando no Senhor, porque lhes fariam grande bem, uma vez que, no
fim de contas, a graça pode mais que a natureza e Cristo mais que
todo e qualquer médico (Galeno).
Se, em
sua presença, acontecia falar-se de novidades mundanas, guardava
silêncio, desinteressando-se do assunto. E delicadamente metia
palavras referentes a Deus de modo que a conversa passava para
outros assuntos mais sérios e espirituais.
Diante
dele, era difícil ter conversas ociosas. Desta maneira, era
impossível, durante o ano, ouvir-lhe palavras inúteis.
Não
saía da enfermaria por causa do recreio, ou por outros motivos que
não fossem de força maior e de verdadeira utilidade.
Habitualmente vivia tão absorvido na meditação ou contemplação que,
algumas vezes, vindo outros irmãos visitar os doentes, não dava pela
sua presença, ainda que se sentassem junto dele. Só depois,
parecendo voltar de outro mundo, é que se lamentava, ao dar por
eles. Então recebia-os com toda a cordialidade, como se tivessem
acabado de chegar.
Do seu
convento escrevia ao Mestre Humberto: «As almas dos Santos, já neste
mundo são iluminadas por uma luz interior, como o são os olhos do
corpo pela luz exterior. Disto tenho a certeza por tê-lo
experimentado».
Aquele
Irmão, que foi seu companheiro na viagem para Espanha, contou ao
mesmo Mestre (Humberto) que, por vezes, o viu sentar-se
arrebatado subitamente em êxtase, sem dar-se conta das coisas
exteriores. Depois, voltando a si, lamentava que desaparecesse
aquela luz íntima que iluminava a sua alma».
5 - Em Portugal
Pelo
ano 1229, S. Fr. Gil terá deixado Paris e regressado a Portugal,
indo viver no convento de Santarém, tornado por Fr. Soeiro
Gomes, um dos companheiros de S. Domingos na Fundação da Ordem, foco
da vida dominicana para toda a Península. Não esqueçamos que Fr.
Soeiro Gomes foi o primeiro Provincial da Ordem de Pregadores a
governar os religiosos e conventos do que hoje é Portugal e Espanha.
S.
Domingos inculcara à sua Ordem e aos seus Frades a vivência da vida
que levaram os Apóstolos e os primeiros cristãos que:
«Perseveravam unidos na doutrina, nas assembleias, na fracção do
pão e na oração. Tinham tudo em comum. Vendiam os seus
bens e dividiam-nos por todos segundo a necessidade de
cada um. Unidos de coração, cativavam a simpatia de
toda a gente. E o Senhor cada dia lhes juntava outros»
(Actos, 2, 42-47).
Os
Frades Pregadores, porque mendicantes, viviam em castidade
perfeita, obediência inteira e em estrita pobreza voluntária:
Mendigavam o pão de cada dia para sustento próprio e para os pobres
que deles se abeiravam. Praticavam a abstinência perfeita, e o jejum
rigoroso, tomando apenas uma refeição por dia desde a festa de Santa
Cruz, 14 de Setembro, até à Páscoa, exceptuando domingos e dias
Santos, assim como nas Têmporas, Rogações, Vigílias de 13 festas e
em todas as sextas-feiras do ano.
Guardavam o silêncio com todo o fervor («Vidas dos Irmãos»,
IV, 1), pois sabiam que «no silêncio habita Deus» - como diz a S.
Escritura. Além disso, era e é frase corrente atribuída a S.
Domingos: «O silêncio é o Pai dos Pregadores».
Amavam
a oração privada e comum, em especial a litúrgica ou coral. Nela
«tudo era grave, pio e fervoroso».
Cada
qual aproveitava os tempos livres depois da Oração litúrgica,
percorrendo os altares, implorando a intercessão da Virgem e dos
Santos e meditando nos seus exemplos para os imitar. Visitavam, dum
modo especial, o altar da Virgem, Advogada e Protectora da Ordem, e
o altar do Santíssimo Sacramento.
O seu
«estudo era grave e exigente, a disciplina escolástica severa e
rígida e as provas difíceis», ― dizem os cronistas.
Gerardo
de Frachet nas Vidas dos Irmãos (P. IV, cap. 1) pôde com toda
a verdade escrever que os Frades «suspiravam por ser prestáveis uns
aos outros; cada um tinha-se por ditoso em servir na enfermaria, na
hospedaria, no refeitório e no lava-pés. Corriam a servir os outros
com o mesmo fervor como se servissem o mesmo Deus ou os seus
Anjos. Quantas vezes não se despojaram da capa, do hábito, do
calçado, para dá-los a irmãos que nunca tinham visto».
No
convento de Santarém, onde vivia S. Fr. Gil (e nos outros conventos
era semelhante o viver) «era tal o silêncio dos religiosos que,
estando a casa cheia de religiosos, julgavam-na erma os que entravam
de fora; recolhimento constante excepto nas horas forçadas em que se
davam ao próximo confessando, pregando, aconselhando ou fazendo
doutrina. Esta até pelas ruas e praças, como então costumavam. Fora
destas horas não se via frade senão no coro ou no Altar». (cf. Fr.
Luís de Sousa, História de S. Domingos). O mesmo, Fr. Luís de Sousa
(op. cit. I p. 285) acrescenta: «O convento de S. Domingos de
Santarém era conhecido e nomeado em toda a Ordem como viveiro de
Santos, principalmente na (chamada) Província de Espanha de
que era cabeça.
Muitos
padres dos mais abalizados da Ordem, depois de a terem servido nos
mais altos cargos, quiseram rematar nele o curso da sua
peregrinação, fiando que seria consolação dos últimos dias e remédio
para a alma viver entre santos e ficar entre santos sepultado».
Confirma estas afirmações o historiador da Ordem, Hernando del
Castillo, O. P., dizendo: «No convento de Santarém não se achava
quem não fosse santo e singularmente: era um retrato do Céu cá na
Terra».
Perante
o que fica exposto, e sendo a vida santa a alma de todo o
apostolado., é fácil concluir que S. Fr. Gil, unindo a santidade à
ciência teológica que adquirira na Universidade de Paris, se
tornasse um verdadeiro frade pregador, difundindo a Boa Nova da
Salvação, quer ensinando na Cátedra quer no Púlpito ou pregação
propriamente dita.
Quando
era Provincial das Espanhas, pela segunda vez, o Papa Alexandre IV
escrevera-lhe nestes termos: «Entre os outros defensores da fé
cristã, os Irmãos da tua Ordem, em virtude da religião que
professam, são devorados pelo zelo das almas, etc.» (Fr. L. Sousa,
IV, p. 297).
Abundantes foram os frutos, já que por toda a parte, os Frades
Pregadores renovavam os êxitos apostólicos porque pregavam em
humildade, pobreza e desprendimento total. A sua actividade
apostólica era novidade.
6 - Provincial
Fr.
Soeiro Gomes, companheiro de S. Domingos, que o enviara com outros
companheiros para a Península, foi quem, como primeiro Provincial,
governou a Ordem de Pregadores em toda a região aquem-Pirinéus.
Assim se lê numa antiga vida de S. Raimundo de Penhaforte:
«Fr.
Soeiro, Primeiro Provincial em Espanha...» (Cf. Frei Gil de
Portugal, Médico, Teólogo, Taumaturgo - página 83 - por João de
Oliveira, O. P. - 1973).
D.
Lucas de Tuy dedicou-Ihe a «Vida de Sto. Isidoro de
Sevilha» como o «Bom Pastor Soeiro, Prior Provincial da
Santíssima Ordem dos Pregadores nas Espanhas».
Sucedeu-lhe, segundo concluem os melhores historiadores (Ibid.),
S. Fr. Gil que governou com êxito a Ordem em toda a Península
desde 1233 até 1259, durante dois Provincialatos, portanto. É
assunto que não vamos desenvolver tendo em conta o fim que nos
propomos e a índole dos leitores a quem nos dirigimos.
Promoveu a Observância religiosa, a pregação, o progresso da Ordem
pela fundação de vários conventos, a conversão dos muçulmanos,
cumprindo com a Bula de Alexandre IV que, além de tecer louvores e
dar incitamentos, dizia:
«Dos
Irmãos da tua Ordem que, pela religião que professam, andam
devorados de zelo, decretamos que envieis alguns aos povos que
ignoram a Cristo», isto é, aos muçulmanos.
Com S.
Raimundo de Penhaforte, promoveu o estudo do árabe e do hebreu a fim
de que os seus frades pudessem atender espiritualmente os cristãos
cativos e trabalhar na conversão dos judeus e mouros que viviam na
Península, em parte ainda em poder dos sarracenos, e também, no
norte de África.
Como
Provincial interveio, segundo alguns historiadores, na execução da
Bula pontifícia que determinou a deposição de D. Sancho II a quem
sucedeu no governo do reino seu irmão, D. Afonso III.
7 - Escritos
Segundo
os historiadores (cf. «Frei Gil de Portugal - Médico, Teólogo,
Taumaturgo» - páginas 167 e 168 - por João de Oliveira, O. P. -
1973) S. Fr. Gil também nos legou obras literárias, algumas das
quais desapareceram, sendo admitidas como autênticas as seguintes:
1.° - Vidas de Fr. Fernando Pires e de Fernando de Jesus.
2.° - «Livro de Naturas».
3.° - Grande parte do Livro «Vidas dos Irmãos».
Este
último contém depoimentos que constituem a parte de S. Fr. Gil nesse
livro: uns, com certeza, obra sua; outros com toda a probabilidade
ou redigidos por ordem dele. Segue um exemplo a comprovar o que
afirmamos:
«Dois
Irmãos de Espanha, Frei Gil e outro, regressando à sua Província
depois de haverem estudado Teologia em Paris, fizeram, uma alta no
Poitou. Estavam cansados e com fome, pois tinham caminhado desde
manhã até à hora de Sexta.
Ali
próximo havia um lugarejo habitado por gente pobre.
Aquele
que se achava mais fatigado queria ir lá para mendigar pão, de porta
em porta; mas o outro, que sofria mais da fome, era de opinião que
fossem antes a uma aldeia menos pobre, embora mais afastada. Assim
exprimia as suas razões:
― Se
nós não tivermos com que refazer as forças, cairemos desfalecidos e
não poderemos continuar a caminhada.
O
primeiro, querendo então consolar o seu companheiro, disse-lhe:
― Meu
irmão, não será Deus bastante poderoso para nos dar uma refeição
neste pobre lugarejo?
― Bem
sei que pode, respondeu este, mas ordinariamente não o faz.
― Querido irmão, retorquiu o outro, não tenhais receio. O Senhor nos
deparará o necessário nesta aldeiazinha.
Estavam
eles nesta conversa, quando adregou de passar por eles a castelã de
Saint Maixent, dama rica e nobre, com o seu filho e um séquito
numeroso.
Ao
vê-los exaustos de fadiga, diz ela ao filho num tom repassado de
compaixão:
― Apeia-te, meu filho, e, por amor de Deus e de mim, dá de comer a
estes Frades Pregadores.
O jovem
logo se apressou a saltar do cavalo; pegou num excelente «paté» de
peixe, preparado pela sua mãe, vinho, queijo, ovos, pão fresco e
outras qualidades de peixe, tudo com muita abundância, e ofereceu
aos Irmãos, instando para que aceitassem, com alegria aquelas
dádivas porque, sendo pobres de Deus, tinham ainda que suportar
muitas canseiras e noutro sítio quase nada encontrariam.
Tendo-os servido ele mesmo da maneira mais afável, com um grupo de
moços muito pressurosos e dedicados, o mais velho dos Irmãos disse
para o outro:
― Peçamos ao Senhor que proteja este excelente jovem que tão bem nos
serviu e o conduza ao termo da bem-aventurança.
Recitaram o «Véni, Creátor», o «Pai-nosso» e a oração; depois
despediram-se dele recomendando-o instantemente a Deus.
Algum
tempo depois, um desses irmãos, quando se dirigia de Espanha a Paris
para o Capítulo Geral, pousando no convento dos Frades Pregadores,
em Poitiers, encontrou lá esse mesmo jovem já envergando o hábito
dominicano. Surpreendido, perguntou ao Prior:
― Donde
é esse moço?
Foi-lhe
respondido que era filho da castelã de Saint Maixent. Logo o mandou
chamar e disse-lhe:
― Meu
irmão, ainda vos lembrais de que em tal sítio a pedido da vossa mãe,
vós destes de comer a dois frades que vinham de Paris?
― Oh,
sim, respondeu o jovem religioso; e dou graças a Deus que me trouxe
para a Ordem pelos méritos das suas preces.
― Pois
bem! Eu sou um deles. E desde então, quantas vezes não pedimos para
vós uma vida excelente e um ditoso fim. Vida excelente já a tendes.
Agora fazei Por perseverar, meu muito querido, e certamente
chegareis ao fim bem-aventurado».
Nas
«Vidas dos Irmãos» lê-se em seguida:
― «Este
episódio foi registado por Frei Gil de Portugal, que veio a ser
Provindal da Espanha e foi muito considerado e distinguido entre
todos pela sua santidade, autoridade e ciência. Era ele um destes
viajantes» (IV parte, Cap. V, 6).
8 - Santa Morte
Como
mortal que era e muitos haviam sido os seus trabalhos e canseiras na
vida religiosa que abraçara, no apostolado que exercera e no
desempenho dos cargos que a Ordem lhe confiara, deixou o cargo de
Provincial. Recolheu-se ao convento de Santarém aguardando
santamente a partida deste mundo e a entrada na Jerusalém do Céu.
No dia
14 de Maio de 1265, festa da Ascensão, rodeado dos seus irmãos a
quem consolou com palavras de verdadeiro carinho paternal e
fraterno, levantando as mãos ao Céu, exclamou: «Nas vossas, mãos,
Senhor, entrego o meu espírito» e expirou.
Os seus
restos mortais foram colocados em humilde sepultura monástica, até
que seis anos mais tarde, D. Joana Dias, Senhora de Atouguia, sua
parenta, custeou as despesas dum melhor túmulo numa das capelas do
convento de Santarém.
A sua
sepultura tornou-se lugar de peregrinação; por sua intercessão e
pela virtude das suas relíquias operaram-se graças singulares e
milagres que bem cedo levaram o povo a venerá-lo como Santo.
Do
túmulo de S. Fr. Gil apenas resta a tampa com a estátua jacente no
Museu do Carmo, em Lisboa. Recolheu-a das ruínas do que foi convento
dominicano de Santarém o arqueólogo Possidónio Narciso da Silva.
D.
Fernando Teles da Silva, Marquês de Penalva, descendente colateral
do Santo, conseguiu entrar na posse do cofre-relicário com as
relíquias do seu corpo. Encontram-se agora na Quinta das Lapas,
perto de Torres Vedras. O maxilar inferior, relíquia insigne,
devidamente autenticada, é venerado na Capela de S. Fr. Gil em
Vouzela. Uma tíbia conserva-se na Igreja do Corpo Santo em Lisboa.
(cf. Frei Gil de Portugal, Médico, Teólogo, Taumaturgo - Prefácio,
págs. 11 e 12 - por João de Oliveira, O. P. - 1973).
Bento
XIV em 9 de Maio de 1748 confirmou o aliás nunca interrompido culto
de S. Fr. Gil de Santarém ou de Vouzela, às Dioceses de Viseu e
Lisboa, à qual, até há pouco, pertencia a actual diocese de
Santarém, e à Ordem de S. Domingos. A sua festa era celebrada a 14
de Maio. Hoje, depois da reforma litúrgica do Concílio Vaticano II,
celebra-se a 15 do mesmo mês. |