servo perfeito da Dama Pobreza
Uma das maiores vocações da História
da Igreja, o fundador da Ordem Franciscana recebeu os estigmas do Redentor e
tornou-se um sustentáculo da Igreja universal; modelo de despojamento total, não
desprezava os ricos; possuía a alegria que deriva da pureza do coração e da
constância na oração
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São Francisco de Assis, um dos santos
mais populares do mundo, marcou profundamente não só a vida da Igreja, mas
também a sociedade
temporal
de sua época. Comemoramos sua festa no dia 4 deste mês.
Poucos santos exerceram uma influência
tão determinante na história civil e eclesiástica de seu tempo como o
Poverello de Assis. E poucos terão levado as máximas evangélicas tão longe
quanto esse homem que se identificou tanto com Nosso Senhor Jesus Cristo
crucificado, que mereceu receber em seu corpo os sagrados estigmas da Paixão.
Francisco nasceu em 1182 na pequena e
poética cidade de Assis, situada nos Apeninos. Seu pai foi Pedro Bernardone —
que se tornará famoso por sua usura e cegueira em relação ao filho — e sua mãe
uma dama de origem francesa, de nobre sangue e grande virtude, chamada Pica.
Narra uma lenda que esta, sentindo as
dores do parto, não conseguia dar à luz, até que se trasladou à estrebaria da
casa, nascendo assim Francisco, à semelhança do Salvador, sobre a palha, entre o
asno e o boi.
Alegre, esbanjador, mas temente
a Deus
Nada sabemos da
infância do Santo. Na Legenda de São Francisco (ou Dos Três Amigos), escrita por
três de seus primeiros discípulos, lemos: “— Já crescido, como era dotado de
inteligência viva, dispôs-se a continuar o ofício paterno, isto é, a mercancia,
porém com outros entendimentos, pois ele era muito mais alegre e liberal do que
o pai: gostava de andar em festiva companhia, quer durante o dia quer durante a
noite, pelas estradas de Assis, em divertimentos e cantos, e era tão grande
esbanjador, que gastava em reuniões e banquetes tudo quanto ganhava” 1.
Ao que acrescenta São Boaventura, terceiro geral dos franciscanos, contemporâneo
e póstero do Poverello: “Mas, com o auxílio divino, jamais se deixou levar pelo
ardor das paixões que dominavam os jovens de sua companhia” 2.
O próprio
Francisco confessa: “— Eu verdadeiramente creio nunca haver, por graça de Deus,
cometido falta sem ter feito disso expiação, confessando o meu pecado e
arrependendo-me da minha culpa” 3.
Alegre, jovial,
desprendido, gentil, afável, “— o Senhor incutia em seu coração um sentimento de
piedade que o tornava generoso com os pobres. Este sentimento foi crescendo em
seu coração; e impregnou-o de tanta bondade, que ele decidiu, como ouvinte
atento que era do Evangelho, ser generoso com quem lhe pedisse esmola, sobretudo
a quem pedisse por amor de Deus” 4, de modo a dar até parte de seu
vestuário, se não tivesse mais dinheiro.
A popularidade
que Francisco adquirira até então entre seus conterrâneos devia-se mais às suas
qualidades morais que às físicas, pois “— era pequeno e de aspecto miserável”
5, atraindo pouco a atenção daqueles que não o conheciam.
“Despreza o que
amaste” – entrega à Dama Pobreza
Levava ele essa
alegre e despreocupada vida, quando teve as primeiras revelações divinas que o
chamavam para uma vida mais elevada. Rezando um dia na igreja de São Damião,
ouviu o Crucificado pedir-lhe que restaurasse Sua casa, que estava em ruínas.
Tomando as palavras literalmente, empenhou-se na reforma não só desse templo,
mas de dois outros mais. O Divino Redentor, porém, pediu que sobretudo
restaurasse não os edifícios das igrejas, mas a própria Igreja enquanto
instituição.
Mas disse-lhe o
Salvador: “Se queres conhecer minha vontade, precisas desprezar todas as
coisas que até aqui materialmente amaste e desejaste. Quando tiveres feito isto,
ser-te-á agradável tudo quanto te é insuportável e se tornará insuportável tudo
quanto desejas” 6.
Foi então que
interveio Pedro Bernardone, pois o filho dava de esmola tudo o que tinha e
passou a levar uma vida considerada insensata pelo mundo. Ocorreu nessa época o
conhecido episódio de o pai apelar ao Bispo para fazer cessar as
“extravagâncias” do filho; este se apressa em despojar-se até da roupa do
corpo, para satisfazer a ganância do pai. Depois disso Francisco entregou-se
inteiramente ao que chamou a Dama Pobreza, seguindo ao pé da letra os
conselhos do Evangelho.
Fundação dos Frades Menores
“Como outro
Elias, começou Francisco a anunciar a verdade, no pleno ardor do Espírito de
Cristo. Convidou outros a se associarem a ele na busca da perfeita santidade,
insistindo para que levassem uma vida de penitência. Começaram alguns a praticar
a penitência, e em seguida se associaram a ele, partilhando a mesma vida, usando
vestes vis. O humilde Francisco decidiu que eles se chamariam Frades Menores”
7.
Surgiram assim
os primeiros 12 discípulos que, segundo registram os Fioretti, “foram homens de
tão grande santidade que, desde os Apóstolos até hoje, não viu o mundo homens
tão maravilhosos e santos” 8. “Aqueles que vinham abraçar esta vida
distribuíam aos pobres tudo o que tinham. Contentavam-se só com uma túnica, uma
corda e um par de calções, e não queriam mais”, dirá mais tarde Francisco em seu
Testamento 9.
Os novos
apóstolos reuniram-se em torno da pequena igreja da Porciúncula, ou Santa Maria
dos Anjos, que passou a ser o berço da Ordem.
O Santo sustém a Igreja
Católica
Para obter a
aprovação de sua incipiente Ordem, Francisco dirigiu-se a Roma. E o Senhor era
com ele, pois, pouco antes de chegar, e para preparar-lhe o terreno, “o
Pontífice Romano viu em sonho a basílica de Latrão, prestes a ruir; mas um
pobrezinho, homem pequeno e de aspecto miserável, sustentava-a com seus ombros,
impedindo que ruísse” 10. Quando o Sumo Pontífice viu em sua
presença o Poverello de Assis, reconheceu-o, abraçou-o, e disse a ele e a
seus companheiros: “Irmãos, ide com Deus e pregai a penitência, segundo vos
será inspirada. Quando tiverdes crescido em número e o Senhor aumentado suas
graças a vosso favor, tornai a nós, que vos concederemos o que desejardes e
ainda mais” 11.
Munidos dessa
aprovação pontifícia, os novos religiosos saíram para pregar, em duplas,
percorrendo as cidades da região e mostrando aos seus habitantes, pela palavra e
pelo exemplo, o caminho da salvação.
Espírito e força de Elias
Certa noite os
frades viram um carro de fogo de um esplendor maravilhoso, com um globo
brilhante, parecido com o sol, entrar pelo aposento em
que
estavam, dando três voltas no recinto. Compreenderam que Deus quisera
mostrar-lhes, por aquela figura, “que seu pai Francisco viera ‘no espírito e
na força de Elias’. Desde então [Francisco] penetrava os segredos
de seus corações, predizia o futuro e realizava milagres. Estava patente para
todos que o espírito de Elias, duas vezes mais poderoso, viera habitar nele com
tal plenitude, que o mais seguro para todos era seguir sua vida e ensinamentos”
12.
Francisco
manifestava seu amor a Deus por uma alegria imensa, que se expressava muitas
vezes em cânticos ardorosos. A quem lhe perguntava qual a razão de tal alegria,
respondia que “ela deriva da pureza do coração e da constância na oração”.
Essa divina
loucura da cruz, que assomou Francisco e lhe angariou muitos discípulos, devia
atrair também uma jovem, filha do Conde de Sasso Rosso, Clara, de 17
anos. Desde o momento em que ouviu o Pobrezinho pregar, compreendeu que a
vida que ele indicava era a que Deus queria para ela. Francisco tornou-se seu
guia e pai espiritual de sua alma.
Como os pais
tinham outros planos para Clara, foi preciso que ela fugisse para a igrejinha da
Porciúncula, onde Francisco cortou-lhe os cabelos e fê-la vestir um
simples hábito. Nascia assim a Ordem Segunda dos Franciscanos, a das Clarissas.
Duas semanas depois, Inês, irmã de Clara, a seguia no claustro, e mais tarde uma
terceira, Beatriz.
Não desprezar os ricos
Apesar de pregar
sobretudo aos pobres e com eles identificar-se, “Francisco tinha o hábito de
alertar seus discípulos, exortando-os a não condenar e não desprezar ‘aqueles
que viviam na opulência e vestiam com luxo’. Dizia que ‘também esses têm a Deus
por senhor, e que Deus pode, quando quer, chamá-los, como aos outros, e
torná-los justos e santos’” 13. Um desses nobres deu ao Poverello o
Monte Alverne, onde ele receberia a maior graça de sua vida.
Encontro de dois homens
providenciais
Em 1217, indo a
Roma, Francisco encontrou-se com outro luminar da Igreja da época, Domingos de
Gusmão, que também havia fundado uma Ordem religiosa para combater a decadência
dos costumes. Os dois santos se abraçaram, estabelecendo uma amizade
solidificada pelo amor de Deus.
Pouco depois
Francisco recebia em sua Ordem um dos que seriam sua maior glória e se tornaria
um dos santos mais populares do mundo, Frei Antônio de Lisboa — mais tarde,
também “— de Pádua”.
Dissabores e fundação da Ordem
Terceira
Uma das maiores
dores de Francisco foi ver surgir uma nova tendência entre seus frades, chefiada
pelo Superior Frei Elias, que dava uma orientação diferente da do Santo,
principalmente em relação aos estudos e ao modo de se observar a pobreza.
Francisco chegou a amaldiçoar Frei Pedro de Stacia, um dos frades da nova
tendência.
Por outro
lado, eram tantos os leigos que, ligados pelos laços do matrimônio ou com outros
encargos terrenos, não podiam observar inteiramente as regras franciscanas, mas
queriam pertencer à sua família de almas, que Francisco fundou uma Ordem
Terceira para abranger a todos. Muitos grandes personagens — como São Luís, Rei
de França, e Santa Isabel, Duquesa da Turíngia — a ela pertenceram.
Recepção dos estigmas
Dois anos antes
de sua morte, tendo Francisco ido ao Monte Alverne em companhia de alguns de
seus frades mais íntimos, pôs-se em oração fervorosa e foi objeto de uma graça
insigne. Na figura de um serafim de seis asas apareceu-lhe Nosso Senhor
crucificado que, depois de entreter-se com ele em doce colóquio, partiu
deixando-lhe impressos no corpo os sagrados estigmas da Paixão. Assim, esse
discípulo de Cristo, que tanto desejara assemelhar-se a Ele, obteve mais este
traço de similitude com o Divino Salvador.
Cantando os louvores da “Irmã
Morte”
Em sua última
doença, e já próximo à morte, queria Francisco que Frei Ângelo e Frei Leão
permanecessem junto a seu leito para cantar os louvores da “Irmã Morte”.
Àqueles que se escandalizavam com essa atitude, respondia: “Por graça do
Espírito Santo, sinto-me tão profundamente unido ao meu Senhor Deus, que não
posso deixar de me alegrar nEle” 14.
“Por fim,
tendo-se realizado nele todos os planos de Deus, o bem-aventurado adormeceu no
Senhor, rezando e cantando um Salmo” 15,
no dia 4 de outubro de 1226, aos 45 anos, sendo canonizado apenas dois anos
depois.
Plinio Maria
Solimeo

Notas:
1.
Legenda de São Francisco,
escrita pelos três humildes irmãos franciscanos Leone, Rufino e Angelo, no Ano
da graça de 1246”, transcrição livre de Brasil Bandecchi, São Paulo, 1957, p.
13.
2.
São Boaventura, Legenda Maior e
Legenda Menor — Vida de São Francisco de Assis, Vozes, 1979, p. 21.
3.
Specumlum Perfectionis,
in Johannes Joergensen, São Francisco de Assis, Vozes, 1957, p. 316, nota
345.
4.
São Boaventura, id, ib.
5.
Id. ib., p. 174.
6.
Legenda de São Francisco,
p. 25.
7.
São Boaventura, op. cit., p. 173.
8.
Las Florecillas,
Zeus, Madrid, 1963, p. 22.
9.
Joergensen, op. cit., p. 137.
10.
São Boaventura, op. cit., p. 174.
11.
Legenda de São Francisco,
pp. 66,67.
12.
São Boaventura, id., p. 175.
13.
Joergensen, op. cit., p. 216.
14.
Id. ib., p. 393.
15.
São Boaventura, op. cit., p. 200.
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