O dia
13 de Fevereiro de 1948 é uma sexta-feira, dia em que regularmente a
Alexandrina vive a Paixão dolorosa e recebe, depois desta, a visita
do Senhor.
No seu
Diário desse dia, a “Doentinha de Balasar” começa por queixar-se dos
“agudos espinhos que têm ferido o seu coração” e por
“quantos suspiros e lágrimas” é atormentada a sua alma. Será
“melindre meu ?” pergunta ela a si mesma. Mas se assim é, ela
quer corrigir-se, porque não quer ofender Jesus. “Vede a dor do
meu coração só com o receio de vos ofender” diz ela ao Senhor.

Depois,
constata tristemente que “sofre imenso por ser má”. Ela
“não tem pena de dar a conhecer aquilo que é mas sim por ferir o meu
Jesus e dar tão mau exemplo”.
Poderia
pensar-se que estes sentimentos são ditados por um ardente desejo de
“perfeccionismo”, mas tal não é o caso. Não se trata aqui de
perfeccionismo mais de humildade sincera, do conhecimento profundo
do seu próprio ser e dos defeitos que afectam a sua alma. Toda a
alma sinceramente amorosa do Senhor, procura subir sempre mais alto
na escada da perfeição, aproximar-se sempre e cada vez mais do
Modelo que quer em tudo imitar.
Esta
busca de perfeição está também subordinada à aceitação generosa e
sem partilhas de tudo quanto a Artista divino que modelar naquela
alma. Alexandrina sabe isso e, generosamente o confirma ao Senhor :
― “Ó Jesus da minha alma, poderá este sofrimento servir de
consolação para vós ? Se assim é, Jesus, é pouco ainda, dai-me mais,
muito mais”.
Dias
antes tinha sido dia de Carnaval, e era a este dia que se referiam
as suas queixas, os seus sofrimentos de que acima fala. Lembrando-se
disso, explica ela, “fitei o Sagrado Coração de Jesus com os
olhos rasos de lágrimas. Lembrei-me do dia, que era de tantas
ofensas para Ele, ofereci-lhe o sacrifício e todo o meu sofrimento
em reparação”.
Uma vez
mais aqui fica bem clara a aceitação do lema que muitos anos antes
lhe tinha sido fixado por Jesus : “Amar, sofrer, reparar”.
“Tive com o demónio três combates, mas ao menos dois foram
demoradíssimos e aterradores”, diz ela
mais adiante. O mafarrico não a deixa em paz : quer, por todos os
meios de que dispõe ou lhe são permitidos, levá-la ao pecado.
“Parecia-me pecar no inferno, sair do inferno a pecar e às portas do
inferno cair, sem forças para levantar-me”,
explica ela, antes de afirmar que “compreendia toda a malícia do
pecado e bem claramente conhecia qual a reparação que Jesus, naquela
ocasião, desejava”.
Assim
tão perto do fogo eterno, ela “ouvia os ruídos e urros do
inferno”. Sentindo-se “humanidade”, ela “estava tão presa ao
pecado, só ele a satisfazia, nada mais desejava”, mas a
Alexandrina, não enquanto portadora da humanidade pecadora, mas
enquanto vítima generosa e voluntária, “quando caída às portas do
inferno”, “sentia que necessitava de alguém que a arrastasse
para longe de tão grande perigo”, porque ela mesma não podia
“fazer o mais pequenino esforço para levantar-se e de lá sair”.
Jesus
vem e ordena ao diabo de se retirar, tirando assim a vítima daquela
situação “de tão grande perigo”.
Vindo
falar-lhe, Jesus queixa-se dolorosamente das Comunhões sacrílegas,
dos corações demoníacos que o recebem em estado de pecado grave, de
pecado mortal. As palavras de Jesus são terríveis :
“Melhor seria que a minha divina Carne fosse lançada aos cães !...”
E
Jesus chorava...
Alexandrina oferece-se prontamente : “Sou a vossa vítima e tudo
vos dou, tudo quero sofrer para ser o vosso divino Coração
consolado”.
Para
que tenha forças e possa assim continuar a sua missão, Jesus
oferece-lhe uma gota do seu precioso Sangue, como desde há tempos
vem fazendo e fará ainda depois, durante anos : “Vou dar-te a
gota do meu divino Sangue, a maior prova do meu infinito Amor, a
maior de todas as maravilhas, a única maravilha, que tinha destinado
dar à maior vítima da humanidade, a quem confiei a missão mais
sublime”.
* * * * *
« Que
grandes, que agudos espinhos têm ferido o meu coração.
― Ó
Jesus, quantos desabafos, quantos suspiros e lágrimas só para vós !
Dai-me a conhecer, meu Jesus, iluminai-me, divino Espírito Santo, se
eu sentir-me assim ferida, tão profundamente magoada, se é melindre
meu, se é orgulho da minha parte, para eu me emendar de tão grandes
defeitos. Ó maldito orgulho, ó maldito amor próprio, que tanto
ofendes a Jesus ! Tenho tantos desejos de me conhecer, de ma
transformar num coração humilde e dócil, de ser só bondade e doçura
para todos ! Jesus, Jesus, tudo por Vosso amor. Vede a dor do meu
coração só com o receio de vos ofender. Paga bem caras as minhas
maldades ; sofro e sofro imenso por ser má. Eu não tenho pena de dar
a conhecer aquilo que sou, mas sim por ferir o meu Jesus e dar tão
mau exemplo. Todo o mar da minha dor é de espinhos. Luto, nado
neles, noite e dia. Eu não vivo, eu não sofro, nem nado nestes
espinhos, é um sopro que existe em mim, a sofrer e a ser nos
espinhos ferida. Ai, Jesus, a minha vida se é que é vida, se sou eu
que vivo, não vivo para vos amar, vivo uma vida morta, sinto que
vivo uma vida imunda de podridão. E as minhas chagas sangram, os
espinhos da cabeça penetram fundos, muito fundos, trespassam os
olhos e os ouvidos e o sangue corre de tantas feridas, a lança
abre-me o coração, cercado de espinhos ; já quase não existe parte
dele e do peito ; a podridão tem feito desaparecer. Que covas eu
sinto em mim. Ó Jesus da minha alma, poderá este sofrimento servir
de consolação para vós ? Se assim é, Jesus, é pouco ainda, dai-me
mais, muito mais. O dia de Carnaval foi um dia de grande tormento
para a minha alma. Custou-me a resistir com as saudades de me
alimentar. Que sofrimento quase insuportável. Foi com muito custo
que encobri as lágrimas. Queria desabafar e desabafar muito ; queria
dizer que dava grande soma de contos, se eu tivesse, para me
alimentar. Queria dizer : se soubessem o que sofro com estas
saudades, não diziam que era falso eu não me alimentar. Ai, quem me
dera comer como vós, eu tentava dizer aos meus. Fitei o Sagrado
Coração de Jesus com os olhos rasos de lágrimas. Lembrei-me do dia,
que era de tantas ofensas para Ele, ofereci-lhe o sacrifício e todo
o meu sofrimento em reparação.
― Ó
Jesus, ó Mãezinha, é por vosso amor, é pelas almas que eu quero
encobrir toda a minha dor ; para vós, só para vós os meus desabafos.
O dia
passou, e assim vão passando outros sem uma palavra de queixume,
mostrando-me o mais possível satisfeita com a minha cruz.
Tive
com o demónio três combates, mas ao menos dois foram demoradíssimos
e aterradores : O meu coração parecia ter o movimento de uma
fábrica. Todo o corpo, da cabeça aos pés, ficou banhado em suores.
Antes dos combates sentia-me como se o demónio nunca me tentasse.
Inesperadamente travou-se a luta. Parecia-me pecar no inferno, sair
do inferno a pecar e às portas do inferno cair, sem forças para
levantar-me. Compreendia toda a malícia do pecado e bem claramente
conhecia qual a reparação que Jesus, naquela ocasião, desejava.
Ouvia os ruídos e urros do inferno. Estava tão presa ao pecado, só
ele me satisfazia, nada mais desejava. Quando caída às portas do
inferno, sem fazer o mais pequenino esforço para levantar-me e de lá
sair, senti que necessitava de alguém que me arrastasse para longe
de tão grande perigo. Mesmo ali continuava a luta. Então chamei por
Jesus e pela Mãezinha ; já não podia mais. O demónio não me deixava.
Não sei se pelo meu brado ou se já por se dignar vir, veio Jesus,
levantou a Sua divina mão e disse apenas estas palavras :
― “Retira-te, maldito, já tirei da minha vítima a reparação
desejada”.
Fiquei
logo libertada e com a alma em paz. O demónio fugiu raivoso. Deixei
de sentir o que até ali sentia o corpo por ele estrancinhado.
Ontem
de tarde foi imenso o meu sofrimento ; sentia-me por todos
desprezada, caluniada, maltratada. Tinha em mim um rochedo imenso ;
parecia-me que este rochedo me arrastava e continuamente me dava
pontapés, ao mesmo tempo que me odiava. Sem passar por outras
coisas, cheguei ao Horto ; ali fiquei aniquilada entre uma
fortíssima prensa. Antes de por ela ser apertada, trespassavam-me os
espinhos, dum lado ao outro, e sobre as feridas deles vinha o
esmagamento. No mesmo lugar deste martírio, sobre mim, e o rochedo
mundial caiu do Coração divino de Jesus um chuveiro de sangue ;
senti a Sua agonia, e, dali com Ele, a ser maltratada passei à
prisão. Em algumas horas da noite, lá o vi naquele escuro cárcere ;
parecia um moribundo. Hoje encontrei-o no caminho do Calvário,
curvado sobre a cruz. Das feridas da Sua sacrossanta Cabeça, caía
tanto Sangue, que regava o chão, por onde Ele passava. A Mãezinha,
de mãos cruzadas, seguia Jesus, trespassada de dor. Quase no fim da
viagem, ao terminar da montanha, eu senti o esforço que Jesus sentia
para caminha. O seu divino Coração parecia-me estar no meu, ofegante
de cansaço. Os vestidos de Jesus, sentia-os colados ao meu corpo,
ensopados em sangue. Já pregado na cruz, sentia cair ou caírem as
carnes de Jesus aos bocadinhos, quase desfeitas como se fossem
cinzas. A Mãezinha chegou ao Calvário mais atrasada um pouquinho do
que Jesus ; juntou-se à cruz na mesma dor, na mesma posição das
mãos, como quando atrás d’Ele o seguia. O meu coração e a minha alma
são testemunhas de toda esta tragédia, de todo este mar de dor. O
meu coração estava tão ferido e mais o feriu o brado doloroso e
tristíssimo de Jesus com o pranto angustioso da Mãezinha. Quisesse
ou não, tinha que sofrer com Eles. Passaram-se as horas da agonia, e
eu com Jesus expirei. Senti-me morta, e muito tempo tive que esperar
por Ele para me dar vida. Ao fazer-se chegar, disse-me :
― “Minha filha, minha filha, Eu vim, já estava, estou sempre no teu
coração, à sombra da graça, da pureza e do amor. Eu vim, já estava,
estou sempre neste paraíso de delícias. Eu vim, já estava, estou
sempre neste jardim formoso, encantado com tão belas flores, sentado
como Rei no trono do teu coração. Queres saber, filha querida,
porque me fiz demorar assim ? Para mais te fazer sofrer,
esperando-me, buscando-me, para um e outro lado, nessa ansiedade. Eu
espero do teu coração puro e generoso que não Me dás uma negativa.
Eu quero dor, mais dor, sempre dor e mais ainda neste tempo da minha
Paixão, para mais te assemelhar a mim, e, nestes colóquios dolorosos
e de ansiedade por mim, tirar grande proveito para as almas, fazer
que elas venham a mim purificadas e lavadas de todo o pecado, para
Eu não ter que dizer :
― Melhor seria que a minha divina Carne fosse lançada aos cães ;
melhor seria que a minha divina Carne fosse lançada às chamas para
as espécies serem extinguidas, de que entrar em muitos corações a
arderem em fogo de desvairadas paixões. Melhor seria que a minha
Carne divina fosse lançada às feras, porque nelas produziria mais
frutos, acalmando-lhes a fúria. Preferia as feras a muitos corações
desordenados, furiosos pela loucura de seus crimes. Dá-me dor,
sempre dor, cruz, sempre cruz, minha filha ; acode às almas, para
que não tenha que lhes dizer tudo isto”.
Enquanto que Jesus falava, o meu coração parecia percorrer louco,
muito louco todos os caminhos da humanidade.
― Ó meu
Jesus, é por essa razão que o meu coração não descansa, anda
loucamente por um e outro lado ? Sou a vossa vítima e tudo vos dou,
tudo quero sofrer para ser o vosso divino Coração consolado. O que
eu não posso é sozinha ; conto com vós, só com a Vossa força divina
posso caminhar com a minha cruz.
― “Coragem, coragem, filha querida. Quero-te na cruz, e à cruz te
auxilio. Vem, descansar em mim, toma conforto, espera-te o
martírio ; não temas, é a moeda das almas”.
Fiquei
inclinada ao seio de Jesus, quase nele adormecia. Eu não sei o que
recebia de Jesus, não sei o que esta união me comunicava, parecia
que todo o meu ser de Jesus se alimentava. Jesus interrompeu o nosso
silêncio, e disse-me :
― “Minha filha, chama a mim o mundo desvairado, traz ao meu divino
Coração o mundo criminoso. Eu quero, Eu quero as almas ; dá-mas com
a tua cruz”.
Neste
momento, Jesus chorava.
― Pronto, pronto, meu Jesus ; pelo vosso divino amor acabai com
essas lágrimas ; quero chorá-las eu, quero sofrer tudo quanto vos
aprouver.
Uns
momentos mais de silêncio, e após eles, disse-me :
― “Vou dar-te a gota do meu divino Sangue, a maior prova do meu
infinito Amor, a maior de todas as maravilhas, a única maravilha,
que tinha destinado dar à maior vítima da humanidade, a quem confiei
a missão mais sublime”.
Jesus,
enquanto falava, introduziu o tubo no meu coração e deixou passar do
d’Ele para o meu o seu Sangue divino. Senti, como se todo o coração
por ele fosse molhado. Jesus foi para mim, como se fosse um pintor.
Dilatou-se-me o coração, ficou grande, grande, infinitamente
grande ; tinha a grandeza do Senhor à qual eu não pude resistir.
Acudiu Jesus, passou sobre o meu peito e sua divina Mão,
acariciou-me, fiquei curada, deixei de sentir tal grandeza.
― “Minha filha, vai agora para o martírio, que te espera ; sorri,
sorri à tua cruz, sofre com alegria, quero a tua dor, quero a tua
dor”.
― Meu
Jesus, eu não sei sofrer nem amar-vos, e tenho-vos ofendido tanto ;
compadecei-vos de minha miséria.
― “Vai, florinha Eucarística, alma forte, coração de ouro, coração
puro. Sofres bem, e muito amas. Eu não te deixo pecar ; as tuas
faltas são para tua humilhação, delas tiro grande proveito. Eu velo,
Eu velo por ti”.
― Jesus, que horror eu tenho o ter que dizer as vossas coisas.
Gostava tanto de nada dizer, e não tenho forças para falar.
― “Coragem, minha filha, é pouco mais. Eu sou a tua força, não és tu
que dizes, sou Eu a falar em teus lábios. Vai em paz”.
― Obrigada, meu Jesus. »
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