Depois dos
Jesuítas terem privado a Alexandrina do seu Director espiritual, o Padre Mariano
Pinho, o Privincial pediu que a “Doentinha de Balasar” lhe confiasse as cartas
que o sacerdote Jesuíta lhe tinha escrito até então.
Claro está que
Alexandrina não era obrigada a fazê-lo, mas fê-lo por obediência, mesmo se tal
gesto muito lhe custou, pois pensou que não voltaria mais a recuperá-las.
Depois de
controladas pelo Provincial da Companhia de Jesus, as ditas cortas foram
devolvidas à dirigida do Padre Mariano Pinho que, surpreendida por tal
recuperação inesperada, jubila.
A página do seu
Diário que agora vamos ler, conta esse retorno e a reacção da bem-aventurada
“Vítima do Calvário de Balasar”.

* * * * *
« Jesus, hei-de
vingar-me ― escreve ela para o seu Diário ―, e vingar-me com toda a força,
daqueles que tanto me têm feito sofrer. Sabeis como, meu Amor ? Com orações mais
fervorosas, com todos os meus sacrifícios para que eles vos conheçam e vos amem.
Se vos amassem como vós quereis, não procediam assim. Perdoai-lhes, bom Jesus.
Tudo quanto dizem de mim, eu sem vós, sem a vossa graça, julgo-me capaz de muito
mais. Se me deixásseis sozinha um momento, seria o bastante para eu praticar os
maiores crimes. Eu só tenho que agradecer àqueles que me humilham e me ferem.
Abriram-me um novo caminho para eu vos seguir mais de perto, com mais perfeição
e amor. A tudo quero sorrir e seja sempre e primeiro que tudo esse sorriso para
vós. O meu pobre coração está retalhado, não cessam de o pisar e na mesma chaga
continuamente ferir. Não importa, só importa o vosso Amor, esse basta-me, esse
quero possuí-lo ainda que para isso seja esmagada e por todos tratada como
escrava. A vós, meu Jesus, já me dei como escrava e continuamente me dou.
Inclino a cabeça para receber de vós o cutelo de toda a dor e sacrifício. E no
íntimo do meu coração vou dizendo sempre : “Faça-se, Jesus, faça-se como
quereis”.
Jesus, morrem os
meus lábios de sede e de fome, e de sede morre a minha alma. A sede do meu corpo
sois vós que permitis que eu a não possa saciar ; ofereço-vos o sacrifício,
aceito-a por amor, para que possais vós saciar a sede de todos os corações. A
sede e fome da minha alma é causada pelos homens, são eles que me deixam morrer,
não permitem que a minha alma se alimente e se sacie naquela fonte que vós
escolhestes. Ó Jesus, ó Jesus, compadecei-vos de mim, olhai a minha alma como a
avezinha perdida, a perder a vida ao desamparo.
Ai de mim sem vós !
Que dor, que dor, meu Jesus ! Que trevas ! Que escuridão tão assustadora ! Que
caminhos tão cobertos de espinhos ! Caio às cegas sobre eles, neles dilacero o
meu corpo, perco o meu sangue. É pelas almas. Pondes à minha frente, diante dos
meus olhos a minha enorme cruz ; vejo-a claramente, nela sou cravada
continuamente. E agora, Jesus, de momento para momento vai sendo a minha agonia
mais dolorosa. De longe a longe solto um gemido, já quase sem vida ; os meus
olhos perdem a luz ; morro abandonada, cheia de medo. Aproxima-se a crucifixão ;
amparai-me, velai por mim, meu Jesus.
Depois de crucifixão
Meu Jesus, ao
aproximarem-se para mim os momentos de maior angústia, ouvistes, meu Jesus, a
minha voz quase sumida a dizer-vos que me levásseis para vós, que já não podia
mais ? Perdoai-me, meu bom Jesus, perdoai-me, meu Amor. É verdade que o meu
desfalecimento era tanto, o meu corpo não tinha forças, não era capaz de
mover-me. A vontade queria seguir-vos, essa estava firme e vós viestes
ampará-la, destes-me a vossa vida, fortalecestes-me com a vossa doce voz :
— “Minha filha,
amada minha, dá a esmola a Jesus que bem poucas vezes te será pedida .
Sem ela, morrem de fome os pecadores e milhares cairiam no inferno. Sem ela,
Portugal não teria paz e todo o universo não receberia a paz desejada ; sem ela
não estaria o meu divino Amor em muitos corações, em muitas almas. Coragem ! O
teu Paizinho ampara-te, auxilia-te com Jesus e a Mãezinha”.
Caminhei para o
Horto de cada vez com mais tristeza, trevas e dor. Sentia-vos, meu Jesus,
revestido de mim a chamardes as almas. Dizíeis-lhes a agonia do vosso divino
Coração, mostráveis-lhes como ele estava ferido e só por amor. Que ingratidão !
Eu sentia elas a voltarem-vos as costas, a desprezar-vos. Pobres almas, não
querem escutar-vos ; fugiam de vós, loucas, para a perdição. Retivam-se as almas
para um lado e o Eterno Pai para o outro, irado contra vós, deixando-vos no
maior abandono. Eu já quase não podia resistir ao sentir a vossa dor, a vossa
amargura fazia estalar as pedras. Não podia ver-vos fugir para a solidão,
meter-vos sob a terra, esmagado com um universo de pecados. Não sei exprimir a
vossa dor, meu Jesus ; não tenho palavras que expliquem a infinidade do vosso
amor.
Levantei-me do
Horto para continuar a ser o mesmo instrumento em vossas divinas mãos em todos
os passos da Paixão. Aumenta o abandono de crucifixão para crucifixão ; o
desfalecimento é mais, mil vezes mais. Do Céu não posso esperar auxílio, da
terra tudo me querem tirar. Ó Jesus, ó Jesus, para onde hei-de voltar-me ? Só
com a obediência tão mal compreendida resisto a um mar de dores. Na flagelação
inclinei-me a vós, foi o vosso divino Coração o meu abrigo, nele recebi a vida
que estava quase perdida. Resguardada por vós, olhava todos os sofrimentos, mas
enquanto descansava não os temia. O vosso divino abrigo dava-me força,
suavizava-me a minha dor. Quando sem dó nem piedade batiam na minha cabeça e
nela se enterravam agudíssimos espinhos, fui descansar na querida Mãezinha.
Então, como a criancinha que brinca no regaço de sua mãe, atirava-me a Ela,
lançava-me ao seu pescoço, beijava-a, abraçava-a e por Ela era acariciada.
Mirava para um e
outro lado, por todos eles surgiam sofrimentos ; sabia que eram para mim ; o meu
coração sorria a tudo e dizia : tudo recebo por amor. Ó meu Jesus, isto são
alívios, não consolações, bem o sabeis. Tenha o vosso divino Coração a
consolação que eu poderia ter. Brilhai nas almas enquanto que eu sofro nas
trevas.
Fui para o
Calvário, fui para a cruz ; o desfalecimento era de morte, os insultos caíam
sobre mim. O corpo e a alma estavam tomados de medo e pavor. Bradar ao Céu era o
mesmo que bradar a nada. Morrer sozinha, morrer em dor entre lágrimas e
suspiros, morrer para dar vida, morrer para que as trevas se transformem em luz,
eram as minhas ânsias.
Terminou este
martírio, meu Jesus, e o meu pobre coração não teve uns momentos de alívio ;
continuou a sangrar ; não podia esperar horizontes alegres. Quase tudo cava
apressadamente a minha sepultura. Olho para trás, olho para a frente, não vejo
ninguém por mim, tudo é revolta, tudo é desprezo. E continua a minha vida de
ilusões. Dar-me-ão o meu Paizinho espiritual ? Virá hoje, virá amanhã ? Meu
Jesus, eu não pratiquei nenhum crime ; sofro inocente, sofro por vosso amor,
sofro para dar-vos almas. Antes sofrer uma vida inteira inocente do que sofrer
um só momento culpada.
Meu Jesus, foram-me
dadas de novo as cartas do meu Paizinho. Para quê ? O sacrifício está
feito. Foi o mesmo que colocá-las sobre um cadáver que nada sente. Manda a
obediência, eu aceito. A vossa bênção e perdão .
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