CAPÍTULO 2°
(1911-1918)
CRESCE EM IDADE E SABEDORIA
Fitei a Sagrada Hóstia
(da Primeira Comunhão)
que ia receber de tal maneira que me
ficou tão gravada na alma, parecendo-me unir a Jesus para nunca mais
me separar d’Ele. Parece que me prendeu o coração.
Não
deixava dia nenhum de rezar a estação ao SS. Sacramento, meditada,
quer fosse na igreja quer em casa, até pelos caminhos, fazendo
sempre a Comunhão espiritual.
Quando me levantava cedo para ir trabalhar nos campos e quando me
encontrava sozinha, punha-me a contemplar a natureza. O romper da
aurora, o nascer do sol, o gorjeio das avezinhas, o murmúrio das
águas entravam em mim numa contemplação profunda que quase me
esquecia de que vivia no mundo. Chegava a deter os passos e ficava
embebida neste pensamento: o poder de Deus!
Dei
muitas vezes conselhos a pessoas de bastante idade, evitando até que
praticassem crimes horrendos, e de tudo guardava absoluto silêncio.
Na Póvoa de Varzim para frequentar a escola
Naquele
tempo faltava em Balasar a escola primária para meninas, que abriu
só no Março de 1931: quem queria e podia, mandava as filhas para a
Póvoa de Varzim, sede de concelho. Deolinda testemunhou ao P.e Humberto
Pasquale quanto segue:
«Devo
muito a minha mãe por nos ter mandado para a escola; com grande
sacrifício mandou-nos para a Póvoa de Varzim para aprender o que ela
não tinha podido. Dizia: - Poderá ser-vos útil na vida –.»
Como se
confirmou esta previsão!
Em 1911
Deolinda devia terminar primária e em Janeiro daquele ano voltou à
Póvoa levando consigo também a Alexandrina, a qual na Autobiografia
dita:
Em
Janeiro de 1911, fui com a minha irmã Deolinda para a Póvoa de
Varzim, para frequentarmos a escola. Não quero pensar quanto sofri
com a separação da minha família. Chorei muito e durante muito
tempo. Distraíam-me, acariciavam-me, faziam-me todas as vontades e,
depois de algum tempo, resignei-me.
As duas
irmãs foram postas numa pensão com a família do carpinteiro Pedro
Texeira Novo. Alexandrina, que não tinha ainda 7 anos e sofria por
se sentir muito desenraizada, a princípio dedicou-se pouco ao
estudo. Mais tarde aplicou-se e aprendeu a ler e a escrever; mas não
fez nenhum exame da primária, como ela diz própria (ver à frente, n.
12). Nos primeiros tempos da permanência a Póvoa, Alexandrina deu
largas à sua natureza vivaz e um pouco rebelde:
Continuei a ser muito traquinas: agarrava-me aos americanos e
deixava-me ir um pouco e depois atirava-me ao chão e caía;
atravessava a rua quando eles iam a passar, sendo preciso o condutor
deles acusar-me à patroa. Muitas vezes fugia de casa e ia apanhar
sargaço para a praia, metendo-me no mar, como fazem as pescadeiras;
trazia-o para casa e dava-o à patroa, que o vendia depois aos
lavradores. Com isto afligia a patroa, pois fazia isto às
escondidas, embora rapidamente.
Alexandrina era muito afeiçoada à senhora que a hospedava, com a
qual partilhava qualquer coisa boa, como fruta, doces que lhe
ofereciam:
Eu
procedia assim porque o meu coração assim o queria, apesar de ser
muito má.
Comovente é o seguinte episódio.
Lembro-me de ir acompanhar a minha patroa a Laundos (a cerca de 5
km a norte da Póvoa) cumprir uma promessa a Nossa Senhora da
Saúde. Connosco foi uma filha dela e a minha irmã. Esta ajudava-a
pegando-lhe na mão, porque (ao chegar ao Santuário) ia de
joelhos, e eu ia à frente dela e arrumava-lhe todas as pedrinhas que
encontrava no caminho. A filha, que era mais velha do que nós, foi
para a brincadeira.
A
primeira Comunhão
Aos 7
anos, na Póvoa, a Alexandrina fez a primeira Comunhão.
Foi na
Póvoa de Varzim que fiz a minha Primeira Comunhão, com sete anos de
idade. Foi o Senhor P.e Álvaro Matos quem me perguntou a doutrina,
me confessou e me deu pela vez primeira a Sagrada Comunhão.
Como
prémio, recebi um lindo terço e uma estampazinha.
Quando
comunguei, estava de joelhos, apesar de pequenina, e fitei a Sagrada
Hóstia que ia receber de tal maneira que me ficou tão gravada na
alma, parecendo-me unir a Jesus para nunca mais me separar d’Ele.
Parece que me prendeu o coração.
A
alegria que eu sentia era inexplicável. A todos dava a boa nova.
A
encarregada da minha educação levava-me a comungar diariamente.
As S.
Missas na Póvoa celebravam-se de manhã muito cedo e isto obrigava-a
a um muito grande sacrifício para a sua tenra idade.
O P.e
Pinho comenta:
«Assim
quis Jesus deixar bem marcado este seu primeiro encontro sacramental
com aquela que havia de ser na Terra uma das almas mais
eucarísticas, das mais apaixonadas por Jesus Sacramentado!»
Quanto
Alexandrina desejasse receber Jesus quotidianamente, fica bem claro
do episódio que se segue.
Uma
ocasião, a minha irmã pediu-lhe licença para ir estudar à casa de
uma colega que morava perto de nós, e eu também queria ir. Como ela
não me deixasse, chorei e por fim chamei-lhe «poveira»; estava
zangada.
Não me
castigou, mas disse-me que não podia confessar-me sem lhe pedir
perdão. Minha irmã disse-me o mesmo.
Isto
fez-me muita repugnância e, como quisesse confessar-me e comungar,
venci o orgulho. Pus-me de joelhos e, de mãos erguidas, pedi-lhe
perdão.
Ela
comoveu-se até às lágrimas e perdoou-me.
Senti
uma grande alegria por já poder no dia seguinte confessar-me e
receber Jesus.
O
Crisma
Durante
a permanência na Póvoa a Alexandrina recebeu também o sacramento da
Crisma.
Foi em
Vila do Conde onde recebi o Sacramento da Confirmação, ministrado
pelo Ex.mo e Rev.mo Senhor Bispo do Porto (era então bispo do
Algarve, mas foi-o depois do Porto)..
Lembro-me muito bem desta cerimónia e recebi-a com toda a
consolação.
No
momento em que fui crismada, não sei o que senti em mim; pareceu-me
ser uma graça sobrenatural que me transformou e me uniu cada vez
mais a Nosso Senhor.
Sobre
isto, queria exprimir-me melhor, mas não sei.
O P.e
Pinho comenta em «No Calvário de Balasar»:
«Cedo
começa, portanto, a experimentar os efeitos da presença e da acção
divina. Daí a contínua lembrança de Deus… “Desde que cheguei ao uso
da razão, não me lembro de passar dia nenhum, sem que me lembrasse
de Nosso Senhor.»
O
respeito pelos sacerdotes, recebido da educação familiar,
manifesta-se também em atitudes exteriores, como é descrito na
Autobiografia:
Tinha
muito respeito pelos sacerdotes. Quando estava sentada à porta da
rua, só ou com a minha irmã e primas, levantava-me sempre à sua
passagem, e eles correspondiam tirando o chapéu, se era de longe, ou
dando-me a bênção se passavam junto de mim.
Observei algumas vezes que várias pessoas reparavam nisto e eu
gostava e até chegava a sentar-me propositadamente para ter ocasião
de me levantar no momento em que passavam por mim, só para ter o
gosto de mostrar a minha dedicação e respeito pelos ministros do
Senhor.
Regresso à terra natal
Passados dezoito meses (interrompidos por um período de férias de
Verão), como minha irmã fizesse exame (da terceira classe),
viemos embora Julho de 1912). Minha mãe queria que eu
continuasse, mas sozinha não quis ficar; fiquei a saber pouco.
Voltámos ao lugar onde nascemos Gresufes) e aí estivemos
quatro meses; depois fomos morar para perto da igreja, numa casa da
minha mãe[1].
A
sua vida de oração
A sua
vida de oração torna-se sempre mais intensa. Deolinda depõe no
Processo Diocesano:
«Regressadas a Balasar, recordo-me que continuávamos a ir à
catequese, à qual a Alexandrina não faltava nunca e procurava
aproximar-se o mais possível à catequista para fazer com ela as suas
orações, porque já naquele tempo gostava muito de rezar.»
Aos 12
anos será ela mesma nomeada catequista e será admitida a fazer parte
do coro. Tem uma bela voz e boa disposição para a música:
Foi aos
doze anos que me deram o cargo de catequista e cantora; trabalhava
com muito gosto, tanto num cargo como noutro, mas pelo canto posso
dizer que tinha uma paixão louca.
Deolinda prossegue assim a sua deposição:
«Contou-me mais tarde que por aquela idade (8-9 anos)
costumava conservar bocados de vela de que servia par ler à sua luz
as orações o livro de Missa, que continha várias devoções.»
Sobre
leituras espirituais, lê-se na Autobiografia:
Vidas
de santos ou meditações muito profundas não me satisfaziam, porque
via que em nada ma assemelhava aos santos e, em vez de me sentir
bem, faziam-me mal.
Aqui si
vê já claramente a sua aspiração a ser santa, como repetidamente
pedirá depois na oração. Sempre na Autobiografia lê-se:
Não
deixava dia nenhum de rezar a estação ao Santíssimo Sacramento,
meditada, quer fosse na igreja quer em casa, até pelos caminhos,
fazendo sempre a comunhão espiritual assim:
Ó meu
Jesus, vinde ao meu pobre coração! Ah, Eu desejo-Vos, não tardeis!
Vinde
enriquecer-me das Vossas graças; aumentai-me o Vosso santo e divino
amor. Uni-me a Vós! Escondei-me no Vosso Sagrado Lado!
Não
quero outro bem senão a Vós! Só a Vós amo, só a Vós quero, só por
Vós suspiro!
Dou-vos
graças, Eterno Pai, por me haverdes deixado a Jesus no Santíssimo
Sacramento. Dou-Vos graças, meu Jesus, e por último peço-Vos a Vossa
santa bênção!
Seja
louvado em cada momento o Santíssimo e Diviníssimo Sacramento da
Eucaristia!
Também
dizia várias jaculatórias.
Destas
linhas ressalta já bem marcada a sua disposição espiritual: a
devoção à Eucaristia.
Neste
período faz a primeira confissão geral.
Foi aos
nove anos que fiz pela primeira vez a minha confissão geral e foi
com o Sr. P.e Manuel das Chagas.
Fomos,
a Deolinda, eu e a minha prima Olívia, a Gondifelos, onde Sua
Reverência se encontrava, e lá nos confessámos todas três.
Levámos
merenda e ficámos para tarde, à espera do sermão. Esperámos algumas
horas e recorda-me que não saímos da igreja para brincar.
Tomámos
nosso lugar junto do altar do Sagrado Coração de Jesus e eu pus os
meus soquinhos dentro das grades do altar.
A
pregação dessa tarde foi sobre o inferno. Escutei com muita atenção
todas as palavras de Sua Reverência, mas, a certa altura, ele
convidou-nos a ir ao inferno em espírito.
Para
mim mesma disse: «Ao inferno é que eu não vou! Quando todos se
dirigirem para lá, eu vou-me embora!», e tratei de pegar nos
soquinhos.
Como
não vi ninguém sair, fiquei também, não largando mais os soquinhos.
Experiências místicas de uma sua participação nas penas do inferno
fará muitas, durante o seu longo martírio de vítima!
Sempre
pelos 9 anos, também no trabalho continua a sua atitude de oração.
Pelos
nove anos, quando me levantava cedo para ir trabalhar nos campos e
quando me encontrava sozinha, punha-me a contemplar a natureza. O
romper da aurora, o nascer do sol, o gorjeio das avezinhas, o
murmúrio das águas entravam em mim numa contemplação profunda que
quase me esquecia de que vivia no mundo. Chegava a deter os passos e
ficava embebida neste pensamento, o poder de Deus!
E,
quando me encontrava à beira-mar, oh, como me perdia diante daquela
grandeza infinita!
À
noite, ao contemplar o céu e as estrelas, parecia esconder-me mais
ainda para admirar as belezas do Criador!
Quantas vezes no meu jardinzinho[2],
onde hoje é o meu quarto, fitava o céu, escutando o murmúrio das
águas e ia contemplando cada vez mais este abismo das grandezas
divinas!
Tenho
pena de não saber aproveitar tudo para começar nesta idade as minhas
meditações.
Já
destas primeiras páginas da Autobiografia se sente a capacidade de
expressão poética que será um outro fascínio de todos os seus
escritos.
Rigorosa, vigilante defesa da pureza
Ao
mesmo tempo desenvolve-se uma atitude de defesa da própria pureza,
não só física.
Não
gostava de ouvir conversas maliciosas e, embora não compreendendo o
sentido delas, chegava a dizer que me retirava se não falassem
doutra forma. Também me indignava toda quando presenciava cenas
indecentes entre pessoas adultas. Tinha medo de perder a minha
inocência e receio que Nosso Senhor desse algum castigo.
Cândido
dos Santos testemunhou ao P.e Humberto Pasquale:
«Vi-a
um dia a fugir de um rapaz que lhe tinha dirigido uma frase
inoportuna. Batendo com o indicador na fronte gritou-lhe: – Mais
sal, meu caro, tem juízo!»
E na
Autobiografia lemos:
Aos
treze anos dei uma bofetada a um homem casado que me tinha dirigido
uns palavrões… Virei as costas a um rapaz rico que me esperava num
lugar solitário, por onde eu tinha de passar, para me falar em
namoro.
A
sua caridade
Alexandrina tem um coração muito sensível para todo o criado, por
isso ama também os animais e em particular os passarinhos, que lhe
são muito familiares:
Apesar
de tudo isto e de subir às árvores – pois trepava muito bem – nunca
fiz mal às avezinhas. Não era capaz de tirar os ninhos, nem de
brincar com os passarinhos.
Sofria
muito quando via ninhos desfeitos ou quando ouvia o piar triste e
dolorido dos pais pelos filhinhos. Cheguei a chorar com pena das
avezinhas que ficavam sem os seus filhinhos ou destes que perdiam os
seus pais.
Naturalmente o seu amor, as suas solicitudes estendiam-se aos
pobres, aos doentes, aos idosos.
Dava
esmola aos pobres e sentia grande alegria em fazer obras de
caridade. Algumas vezes chorava com pena deles e por lhes não poder
valer em todas as suas necessidades.
A minha
maior satisfação era dar-lhes daquilo que tinha para comer,
privando-me assim do meu alimento.
Quantas
vezes fiz isto!...
Um
outro episódio retrata a Alexandrina durante uma obra de caridade,
mas põe também em evidência a sua força de vontade, que as faz
vencer o medo:
Em
Santa Eulália de Rio Covo (tinha eu os meus 11 ou 12 anos) viviam
meus tios que adoeceram com uma febre intitulada a espanhola. Minha
avó foi tratar deles, mas adoeceu também. Para olhar por eles foi
minha mãe que também ficou doente.
Por
fim, fomos nós, apesar de ser novinhas.
O meu
tio morreu à noite e ficámos lá até à Missa do sétimo dia.
Foi
preciso ir ao arroz, mas tinha que passar pelo quarto donde meu tio
morrera. Ao chegar à porta do quarto, senti-me tomada de medo. Não
entrei. A minha avó veio dar-mo.
À
noite, era preciso ir fechar a janela. Chegando à parte da sala,
disse comigo: Eu hei-de perder o medo. E passei devagar, mesmo com
esta intenção. Abri a porta, passei por onde tinha visto o cadáver e
fui ao quarto onde ele morreu.
Desde
então, nunca tive medo. Venci-me a mim mesma, à minha custa.
E tanto
se venceu que dois anos depois terá verdadeiramente a coragem de
ajudar a vestir os cadáveres!
Assisti
à morte de alguns, rezando o que sabia e, por fim, ajudava a vestir
os defuntos, o que me custava imenso; fazia-o por caridade: não
tinha coração para deixar sozinha a família dos mortos e, por serem
pobrezinhos, fazia-o com muito gosto.
E eis
em detalhe um episódio que demonstra a força de vontade da
Alexandrina e a sua generosa coragem em fazer uma boa obra junto dos
moribundos e defuntos.
Veio
aqui uma rapariga dizer que estava a morrer uma vizinha. Minha irmã
pegou num livro e num garrafãozinho de água benta e foi à casa da
moribunda. Seguiram-na duas aprendizas de costura. Eu fui também.
Minha
irmã começou a ler as orações da boa morte. Estava nervosa e tremia,
pois custava-lhe muito assistir aos moribundos.
A minha
irmã acabou de ler quando a mulherzinha morreu e disse:
–
Até agora fiz o que pude; agora não tenho coragem para mais.
Vi a
filha ao pé da mãe da morta. A neta fugiu e eu não tive coragem para
a deixar só. Fiquei a ajudar a lavá-la e a vesti-la. Estava cheia de
chagas. Exalava um cheiro horrível. Julguei que caía sem sentidos,
porque me sentia mal.
Outra
mulher que se encontrava no quarto, percebendo o meu estado, foi
buscar uns raminhos de sardinheiras e deu-mos a cheirar.
Só vim
para casa depois de tudo pronto.
Inteligência e sabedoria do coração
Com o
passar dos anos desenvolve-se também a inteligência, e muito; e nela
não falta sequer um acentuado sentido de humorismo:
Nas
reuniões de família, não sei o que dizia, mas dispunha bem as
pessoas que me rodeavam, que se riam a bom rir. Minha mãe dizia: –
Os fidalgos têm um bobo para os fazer rir e eu não sou fidalga, mas
também tenho quem me esteja a fazer festa.
E o P.e
Humberto Pasqual recordava que Alexandrina, no fim duma carta por
ela escrita, tinha colocado uma sucessão de sinais de pontuação
(,!?), com o comentário: - Eu sou ignorante e não entendo estas
coisas; ponha-as você no lugar certo.
Mas
como a Alexandrina vive uma vida de oração, mesmo no meio das suas
muitas actividades, com a inteligência acuta desenvolves-e nela
também a sabedoria do coração ao ponto de muitos irem até ela, não
obstante a sua jovem idade, a pedir conselhos e conforto:
Dei
muitas vezes conselhos a pessoas de bastante idade, evitando até que
praticassem crimes horrendos, e de tudo guardava absoluto silêncio.
Vinham ter comigo e faziam-me conversas que não eram próprias da
minha idade, e eu confortava-as e dizia-lhes o que entendia.
Presenciei e soube de viários casos que por caridade não contei.
Quanto
hoje estou agradecida a Nosso Senhor por ter procedido assim: era a
Sua graça e não a minha virtude!
Trabalho
Regressada da Póvoa, Alexandrina explica as suas energias em tantas
actividades de trabalho. Ouçamos a Deolinda:
«A
mãezinha ocupava-se a tecer, a irmã (Deolinda, ela própria)
aprendia a costurar e ela (Alexandrina), com os seus 9 anos,
trabalhava já muito: cozinhava, lavava, gostava de ir à lenha. Assim
continuou até aos 12 anos.»
Apendia
com a irmã a costurar. Mas pelos 12 anos começam as complicações!
Aos
doze anos, tive uma doença muito grave, chegando a receber os
últimos sacramentos. Preparei-me para morrer, e lembro-me que estava
bem-disposta para a morte.
Um dia
em que a febre estava muito alta, delirei, mas lembro-me que pedi à
minha mãe que me desse Jesus; ela deu-me um crucifixo e eu
disse-lhe:
«Não é
esse que eu quero. Eu quero o Senhor do sacrário.»
A
Deolinda precisa na sua deposição ao Processo Diocesano:
«Era
uma infecção que um primeiro médico não diagnosticou; foi chamado um
outro médico que descobriu a doença e minha irmã curou
completamente. Até 14 anos completos gozou de boa saúde.»
A mesma
Deolinda tinha contado ao P.e Pinho:
«Alexandrina ia passar alguns períodos de tempo a casa de uma tia
que habitava junto a Barcelos (a cerca de 18 km da Balasar):
lá trabalhava a arrumar a casa, quase como uma mulher. Aos 13 anos
trabalhava nos campos ganhando tanto como a sua mãe ou qualquer
outra jornaleira: os patrões não faziam distinção das outras ao
indicar-lhe os trabalhos que lhe confiavam.»
Neste
tempo decorre aquele que Alexandrina chama «o período mais doloroso
da minha vida de trabalho»... Ouçamo-la.
Minha
mãe pôs-me a servir em casa de um vizinho (Lino Ferreira),
mas, ao ajustar-me, tirou certas condições, como: confessar-me todos
os meses, passar as tardes dos domingos em casa, para ir à igreja e
estar sob o domínio dela, não andar de noite, etc. A combinação foi
de cinco anos, mas não estive até ao fim.
O
patrão era um perfeito carrasco; chamava-me nomes, obrigava-me a
trabalhar mais do que as forças que tinha. Tinha mau génio e pouca
paciência – até os animais o conheciam, porque batia-lhes e
assustava-os, sendo quase impossível chamar o gado, quando ele ia
junto do gado. Envergonhava-me sem causa, fosse diante de quem
fosse, e eu sentia-me humilhada.
Apesar
de estar no princípio da minha mocidade, não sentia alegria com
aquele triste viver.
Um dia
fui à azenha levar a fornada, mas era já noitinha quando lá cheguei
e, portanto, muito tarde quando regressei a casa, pois gastava no
caminho uma hora.
Depois
que cheguei a casa, ralhou-me muito, insultou-me e até me chamou
ladra. O pai dele, homem velhinho, revoltou-se contra ele,
defendeu-me, dizendo que eu não tinha tido tempo para mais.
Todos
os dias vinha ficar à casa, e naquele dia, como estava melindrada –
porque a minha consciência não me acusava a mais pequena falta –
queixei-me a minha mãe que, depois de se informar do caso, não me
deixou voltar, apesar de pedir muito para que continuasse a
trabalhar lá.
Uma vez
estive das dez horas da noite às quatro da manhã na Póvoa de Varzim
a tomar conta de quatro juntas de bois, porque o patrão e um seu
amigo ausentaram-se de mim.
E eu,
cheia de medo, lá passei aquelas horas tristíssimas da noite.
Enquanto vigiava o gado, ia contemplando as estrelas que brilhavam
muito e serviam de minhas companheiras.
Quanto
às suas condições físicas neste período, notemos o que se segue. O
médico Azevedo, que a assistirá desde Janeiro de 1941 até à morte
com a máxima solicitude e atenção, além de competência, e que a
soube compreender a fundo, recolheu também as suas confidências;
numa “História da doença”, redigida em Julho de 1941 e completada
depois, escreve em relação à doença tida pelos 12 anos:
«Supõe-se que tenha sido uma febre intestinal (tifóide?)... Depois
desta doença grave viveu com pouca saúde».
Como é
que a Deolinda diz «gozou de boa saúde»? E como é que a mãe permitiu
que trabalhasse nos campos de modo tão fatigante e depois a pôs a
servir naquele vizinho da casa?
É
evidente que a Alexandrina, conhecendo as difíceis condições
económicas da família e dotada de temperamento generoso para o
sacrifício, escondeu aos outros o mal-estar decorrente da infecção.
Também
no episódio seguinte se nota a sua força em suportar a dor.
Entre
os 13 e os 14 anos cai duma carvalheira a que tinha subido para
tirar hera para o gado.
Caí
dela abaixo, ficado algum tempo sem me poder mexer e sem respirar,
levantando-me pouco depois para continuar o meu serviço.
Vemos
já aqui o germe daquele heroísmo que a levará aos mais altos cumes
da imolação.
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