22 DE
FEVEREIRO
De manhã cedo,
comecei a sentir a minha alma atormentada pela dor que me causava a
viagem que a Deolinda ia fazer. Ia com pessoas que tanto estimava e
visitar pessoas que tanto amava. Fazia muito gosto que ela fosse,
mas gostava de eu ir também. Ofereci a Nosso Senhor o sacrifício de
não manifestar os sentimentos que me iam na alma. Mas, por fim, não
fui capaz de me vencer, mostrei a minha pena e saudade.
Fiquei na minha
cruz, aumentada pela preocupação do que se passaria na viagem pela
fraqueza da minha irmã, e que correria mal a viagem para todos, e
pelo paizinho que eu esperava fossem visitar, o que teria dado a ele
um grande gosto, coisa que se não pôde realizar. Senti-me também
mais pequenina por ver que pessoas de respeito tanto se incomodavam
por nós. Este sentimento persegue-me nestes dias, sentindo cada vez
a minha indignidade diante de qualquer pessoa que me vem visitar.
Na noite deste
mesmo dia, sofria amarguradamente as consequências daquela tarde.
Sem querer, recordava o que se tinha passado. Nem ao menos Jesus
deixou a minha alma sentir o conforto da confissão. Oh, não! O
bondoso sacerdote não me deu conforto; já não foi a primeira vez.
Vejo que Jesus até isso tirou para Ele. Anseio sempre a visita do
confessor para mais purificar a minha alma e depois confessar-me.
Meu Deus, que
amargura! Amargura, sim, grande, muito grande, mas estava em paz,
tinha a tranquilidade da alma, porque não menti nem pensei em
enganar. Aceitai, Jesus, a minha amargura; eu quero-a, eu amo-a,
porque Vos amo e amo as almas.
Estavam duas
noites em contacto uma com a outra: a noite que ia lá fora e a noite
dentro de mim. O demónio afirmava-me ter havido desastre na viagem
dos que eram tão queridos. É o pai da mentira, queria atormentar-me.
Pouco depois, acabavam de chegar. A alegria não foi para mim, Jesus
não permitiu que eu a sentisse.
Estive algum
tempo com o santo sacerdote que veio para dar luz à minha alma e
tirar-me das minhas dúvidas. Parecia-me mentira ele estar junto de
mim; sentia-o a uma distância tão longe que nada havia que pudesse
alcançá-lo. O seu rosto parecia-me apenas uma casca de ovo.
Ó meu Deus, como
são variados os Vossos sofrimentos!
Ia alta a noite,
eu estava sozinha, veio o demónio, insultou-me, convidou-me ao mal,
à carne, ao prazer. Lutei tanto, tanto, estava num banho de suor. O
coração de momento para momento parecia perder a vida. O maldito,
sem conseguir de mim o que desejava, disse-me:
— Hei-de levar-te
ao prazer. Já que eu não basto, chamo a minha tropa. Vêm já, eu sou
chefe de comando.
Chamou pelos
camaradas: principiaram a subir dum profundo abismo por entre chamas
muitos demónios em forma de esqueletos. A minha aflição era grande,
temia que fossem ouvidos os meus gemidos. O maldito dizia-me:
— Caladinha, que
não venha aqui aquele fulano! - e chamou um nome feio ao santo
sacerdote. Desde que me satisfizer em ti, vou matá-lo, vai morrer
debaixo do meu pé, ao fio da minha espada.
Eu estava sobre
abismos assustadores. Meu Jesus, que escuridão!
Só de longe a
longe caíam sobre eles umas folhas brancas que mais faziam mostrar
os seus horrores, as suas negras trevas. Ou porque os demónios se
satisfizessem de me atormentar ou porque Nosso Senhor assim o
permitisse, deixaram-me. Já não podia mais; era tão violenta a minha
posição! O que fazer, se eu não podia mover-me? Triste, muito
triste, na dúvida de ter pecado, clamei, clamei
por Jesus. Enquanto isto fazia, corriam os demónios, virados ao
quarto do bondoso sacerdote, dizendo-me, já de longe, que o iam
matar. Levavam nas mãos espadas ou não sei o quê. Ainda com esta
visão, ouvi Jesus dizer:
— Anda, meu anjo,
desempenhar a tua missão.
Fiquei logo
direitinha nas minhas almofadas. Jesus disse-me então:
— Não pecaste,
minha filha. Coragem! Viste as pétalas brancas que sobre os abismos
caíam? São pétalas da tua reparação. Com a sua alvura, iluminam as
almas que neles estão, atraem-nas a si e vêm ao meu Divino Coração.
Mais confortada
com Jesus, o ferimento de todo aquele passado continuou a causar-me
imensa dor. Não tinha susto que os demónios tivessem feito a morte
que tinham dito. Só de manhã, como achava que ele estava muito em
silêncio, veio-me o temor que ele estivesse morto. Nosso Senhor nada
disso tinha permitido. Recebi o meu Jesus, desprendida dele,
despreocupada, só de momentos a momentos é que Lhe dizia:
— Ó meu Jesus,
como eu estou, não Vos amo, não Vos dei graças. Perdoai-me, tende dó
de mim!
Veio o sacerdote
para falarmos das coisas da minha alma e eu continuei a sentir-me
longe, sempre longe, mergulhada num mar de dores na alma e no corpo.
De vez em quando, sentia dentro de mim estremeções, horrores, grande
repugnância por ter de dizer o que se passava em mim, por me sentir
pequenina e miserável, tímida e envergonhada diante das pessoas
queridas, por não compreender a minha vida e não amar Jesus, e
atormentada a mais não poder com a lembrança de ser quinta-feira.
Oh, se desaparecessem estes dias!, dizia eu. Sinto que se aproximam
de mim todos, todos os sofrimentos e que estão a armar-se laços para
me prenderem.
Era já noite e
eu sentia na minha alma a intimidade
dos que me eram tão queridos, dos que junto a mim estavam reunidos.
Tinha de deixá-los, tinha de partir para o Céu, mas de alguma forma
ficar entre eles, não me separar deles.
Ó sofrimento
amado, quem te compreenderá?! |