Entrevista de Natal
Entrevista
virtual
O
segundo aniversário da consagração do mundo ao Coração Imaculado de
Maria em 1942 tinha sido comemorado ; pouco tempo se passara depois
da festa da Imaculada Conceição...
Alexandrina — o “instrumento” de que se servira o Senhor para essa
consagração — estava ali, deitada no seu leito de dor, quando a
visitei...
Foi no
dia 25 de Dezembro de 1944, no fim da tarde... quase à noite...
Parecia
dormitar, visto que as suas pálpebras cobriam quase por completo os
seus olhos negros. Aproximei-me, pé ante pé, para a não
acordar — pensava eu que dormia — mas logo abriu os olhos, olhou e
sorrio, um sorriso que põe o coração em festa, sorriso maviosa e
cheio de ternura e carinho...
Quis
desculpar-me por incomodá-la, mas fez-me sinal que me sentasse ali,
à beira da cama, ao mesmo tempo que o seu dedo indicador direito se
posava sobre os seus lábios. Compreendi que rezava e, sem
precipitação sentei-me na cadeira que a Deolinda amavelmente me
proponha.
Olhei-a
demoradamente e, quanto mais a olhava, mais o meu coração parecia
galopar, como se quisesse ultrapassar aquela alma simples e pura que
falava com Deus; ultrapassá-la, não para chegar primeiro, mas para
lhe ir na frente e poder assim melhor admirar aquele rosto que as
cores do Paraíso adornavam, aqueles olhos que reflectiam a luz
divina, aqueles lábios estáticos que não precisavam de mover-se para
falar com o Senhor... Como era bela naquela postura de oração,
naquele colóquio com Jesus ou Maria, não sei!...
Depois,
como se acordasse dum sonho que a arrebatara, olhou com ternura,
sorrio e, com um aceno da cabeça, fez-me sinal que poderia começar a
interrogá-la, visto que sabia para o que eu vinha...
— Alexandrina, obrigado por ter aceitado de me receber neste dia de
Natal, dia de festa...
— « Os dias de festa são sempre para mim de profunda tristeza! »
Como
notasse que fiquei surpreendido, acrescentou:
— « Esforço-me sempre para consolação dos que me rodeiam
mostrando-me alegre : a minha alegria é fingida.
Ia
fazer um comentário, mas os seus olhos rasos de lágrimas, impediram
que lhe dissesse qualquer palavra. Ela, com carinho e doçura,
explicou:
— « Fito Jesus, a Mãezinha, elevo o meu pensamento ao Céu e por amor
aceito a dor. É por amor que a tristeza para mim é alegria. Não
olhando a terra, firmo no Céu, só no Céu, os espinhos são rosas, a
dor é doçura. »
Surpreendido ao ouvir tais paradoxos, não resisti e perguntei:
— Mas,
na noite de Natal, a noite passada, foi certamente para si uma noite
de alegria, uma noite em que Jesus Menino desceu ao seu coração...
— « À meia noite do dia de natal, não falando da noite que me ia na
alma, dores agudíssimas pareciam retalhar-me todo o corpo. Não
chorava, mas gemia ; só Jesus sabe quanto eu sofria. Principiei a
ouvir fogo e repique de sinos. Pedi que me trouxessem umas
imagensinhas do Menino Jesus. Colocadas sobre o meu peito queria
aquecê-las. O calor que lhe dei não era o que eu queria dar-lhes ;
queria queimá-las com fogo de amor. Queria dizer-lhes muitas coisas
e não sabia. Estreitei-as ao meu peito docemente e continuei os meus
gemidos. — Estou certa que Jesus os aceitou e não ficou triste.
Ninguém como Ele via quanto eu sofria ; ninguém como Ele sabe que
mesmo gemendo é por amor que gemo e quando mais não posso. »
— E
esse seu estado durou toda a noite? Perguntei eu admirado e
surpreendido.
— « Não sei os minutos que se passaram, o que sei é que passei a
outra vida e ouvi Jesus no meu coração. »
— Viva!
Ao menos uma boa notícia: Jesus veio visitá-la... E que lhe disse
Ele? Perguntei, cheio de curiosidade.
— “Nasci no presépio do teu coração, minha filha. É o Esposo que vem
à sua esposa, é o Rei que vem à sua rainha. Sou Rei do Céu e da
terra. Como estou bem aqui, ó rainha do amor. O presépio que Me dás
não é áspero como o de Belém, é fofo com as tuas virtudes. No te
presépio não sinto os rigores do frio ; sou aquecido com o amor mais
puro e abrasado. Tu és a minha estrela, estrela que guias o mundo
como outrora guiou os Reims Magos no caminho de Belém. Diz, minha
filha a todos os que cuidam de ti, aos que te são queridos, amam e
rodeiam que lhes dou abundância das minhas graças, um enchente do
meu divino Amor, um lugar reservado em meu divino Coração com a
promessa do Céu”.
— E viu
mesmo o Menino Jesus, viu o presépio, Nossa Senhora e São José?
A minha
curiosidade tinha ares infantis... Eu sentia-me extasiado diante de
tanta simplicidade, da tanta humildade e tanta fé...
Alexandrina respondeu:
— « Não vi o Menino Jesus, mas enquanto que Ele me falou estava
junto a mim uma grande palmeira de Anjos, centos ou milhares de
Anjos, muitos deles com seus instrumentos desciam do alto e
rodeavam-me. Tinha graça a pressa com que desciam. No meio deles
estava uma grande escada ; de todos os degraus desciam para mim
numerosos raios dourados. Eram como setas a penetrarem no meu
peito... »
E os
olhos negros da Alexandrina pareciam iluminados ainda por aqueles
raios de que falava: eles brilhavam como se milhares de estrelas
neles se espelhassem.
— E,
durante esse tempo, Jesus falava-lhe, perguntei eu, cada vez mais
atiçado pela curiosidade.
Ela
olhou-me, compreendeu que eu “bebia” as suas palavras, e disse:
— « Jesus dizia-me :
— “São as tuas virtudes, são raios de amor divino. Recebe, é a tua
vida”. »
Ao
explicar-me o que vira e sentira, Alexandrina parecia sentir-se
feliz, pois o seu sorriso era mavioso. Quanto aos seus olhos, fixos
em mim, pareciam ler o meu pensamento, descobrir na minha alma os
mais profundos recônditos — o que me atemorizava um pouco! —,
descortinar a minha curiosidade crescente e, sem que precisasse que
algo mais lhe perguntasse, ela continuou:
— « Aqueles raios fortaleceram-me, davam mais luz do que o sol mais
brilhante. Vi tudo claramente. Não sei o tempo, mas foi demorada
esta visão. Desprendi-me a custo, ia como os que caminham e olham
para traz, dando a conhecer que querem alguma coisa. Eu desejava
voltar ao mesmo. Não voltei à visão, mas voltei à dor. »
Ao
terminar o que acabava de me dizer, pareceu-me aperceber-lhe uma
lágrima, como se a recordação desta visão da noite de Natal a
tivesse deixado numa grande nostalgia, numa tremenda saudade.
— Mas,
depois da noite vem o dia, disse eu, como se quisesse consolá-la do
inconsolável. Como foi então a sua aurora, como foi para si o
despertar deste dia de hoje, dia de Natal?
— « Veio o dia ; dia sem luz e vida sem vida. Sempre a querer
guardar com toda a segurança o mundo dentro em mim continuei a minha
alegria fingida. Todos os mimos que recebi e carinhos de pessoas de
tanta estima passavam como se não fossem para mim. »
— Alexandrina, não vou abusar da sua extrema bondade, visto serem já
passadas as oito horas da noite... No entanto, se me permite uma
última pergunta, qual o balanço, se assim posso dizer, deste dia de
Natal, como foi ele para si?
— « Ao terminar o dia digo para mim : “Onde passei este dia ?
Parece-me que estive morta para Jesus e para todos quantos me
rodeiam. Vivi mas não senti a vida. Sofri, mas não foi minha a dor.
Não vivi para Jesus, não senti que O amava.”
Não
sei dizer melhor e nada digo do que me vai na alma. Ó minha triste
vida tão mal compreendida ! »
Assim
foi, para a Alexandrina o dia de Natal de 1944.
*****
Escusado é dizer, claro está, e cada um compreenderá, esta
entrevista é virtual, visto nunca ter visitado a Alexandrina. Quando
ela faleceu, tinha eu apenas 9 ans.
Todavia, as respostas da Beata Alexandrina não o são: foram tiradas
dos “Sentimentos da Alma” do dia e ano referidos, ou seja 25
de dezembro de 1944.
Afonso
Rocha
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