Colóquio de 24 de Janeiro de 1947 (sexta-feira)
Não posso falar e
tenho que falar ; sofro horrivelmente e não compreendo a
minha
dor.
Caí num abismo de tal
cegueira que nada vejo nem sei compreender. Apesar do meu viver ser dor, sempre
dor, mergulhei-me nela e nem um só momento posso libertar-me.
Perdi toda a vida; só
a vida do sofrimento ficou ; e, neste mar sem fim de toda a espécie de
sofrimento, estou louca a querer viver, a procurar viver a vida do alto, a vida
divina, a vida que não sei viver, a vida para onde o meu coração e a minha alma
batem as asas, levantam voo; lá vão voando noite e dia à procura daquela vida
que não conseguem viver. Tão sequiosa e faminta, por vezes me parece cair das
alturas à terra ; é o desfalecimento de não encontrar aquilo por que tanto
suspiro. Quando estou caída e triturada de toda a dor, a sentir ir quase a
naufragar, a desesperar-me por completo, eu chamo pelo meu Jesus, pela querida
Mãezinha :
– Vinde em meu
auxílio, vinde acudir-me. Eu sou vossa, inteiramente vossa, eternamente vossa,
sou a vossa vítima, não me deixeis ofender-Vos !
Neste duro martírio,
logo o meu coração e a alma são transportados para um enlevo, para uma vida que
os absorve e parece tirar da terra. E logo posso levantar-me e caminhar abraçada
à minha cruz, louca, louca de amor por ela.
Estes momentos de
enlevo são raros, mas alimentam a alma; fico mais forte por algum tempo, posso
melhor resistir à dor.
Tenho passado noites
de tormentosos sofrimentos. E a Mãezinha, a querida Mãezinha do Céu, tem vindo
junto de mim, mostrando-me o seu Coração como Mãe do Perpétuo Socorro, e ainda
outras vezes trazendo consigo um Menino Jesus muito pequenino.
Estas visões são
rápidas, mas confortam-me ; sinto-me outra por algum tempo. Ora confortada ora
desfalecida, vou passando as horas e os dias, vivendo dentro de mim a adorar a
Trindade divina, a quem tanto amo.
Unida a Jesus, unida
à Mãezinha, balbuciando os Seus santíssimos nomes, vou sentindo sempre contra
mim a grande tempestade, a grande derrota, mas com o coração fito no
Todo-Poderoso e os olhos fitos no Céu, saudosa Pátria por que tanto suspiro,
espero levar ao cimo da montanha a minha cruz.
Foram dois os ataques
do demónio da noite que passou. Antes da luta andou horas a sondar à minha
volta. Parecia que eu mesma era o inferno e que pedaços do inferno caíam sobre
mim. Que bichos tão feios, que medonhas serpentes me rodeavam !
É o sofrimento mais
amargo, por ser num ponto tão delicado. Que medo, que medo de pecar !
Ouvi as suas feias
lições e os seus maldosos ensinamentos ; forçava-me por os não atender. Só por
Jesus e pela Mãezinha chamava.
Vieram muitos
demónios e alguns em forma de animais.
Terminou a luta para
pouco depois principiar outra. Não sabia quando terminaria, mas sentia-me não
poder mais. Depois de um brado contínuo pelo nome de Jesus, não O vi : mas senti
na minha alma como se Ele levantasse a mão e ouvi uma voz que dizia :
– Aparta-te,
retira-te para o teu lugar !
Descansa, minha
filha. És minha. Sossega, não pecaste.
Retirou-se
o maldito desesperado, mas ainda por algum tempo passavam à minha frente vultos
pretos ; pareciam pedaços de negras nuvens.
Com a alma em paz,
passei por um ligeiro sono. Ao acordar, logo fiquei a sofrer por nem uma só vez
receber o meu Jesus sem um ataque do demónio, depois de me ter confessado para
ter a alma muito pura para O hospedar.
Bendita seja a
vontade do Senhor !
Ao terminar o dia de
ontem, ao chegar a noite, senti-me tremer e comigo tremer toda a terra. Senti os
sofrimentos causados por todo o mundo e do mesmo mundo senti o medo.
Apavorei-me. Afastou-se tanto, tanto de mim o Céu que fiquei como se da terra
não pudesse fitar o firmamento.
Principiei a sentir
da cabeça aos pés o corpo cheio de gotas de sangue.
Oh, que diferença ! A
maior parte lançavam-se a mim como feras, despedaçavam-me as carnes, causavam-me
ainda mais dor.
O número mais pequeno
servia-se do meu sangue ou, para melhor dizer, do sangue de Jesus, mas com mais
paz, com mais doçura.
Refugiada, escondida
de todos os olhares, pude chorar.
E logo depois subi a
encosta debaixo duma chuva de pontapés e varadas.
As lágrimas de Jesus
continuaram, dentro do meu coração.
De manhã, continuou o
coração a receber os maus-tratos em toda a tragédia do Calvário : foi Ele que
foi calcado e arrastado.
No Calvário, para
serem virados os cravos, não foi virada a cruz rente com a terra, mas sim
levantada a alguma altura para o rosto de Jesus e todo o Seu santíssimo corpo
ser ferido novamente com toda a crueldade. E quando foi para ficar ao alto, que
grandes dores eu senti em todas as chagas ao deixá-la cair na cova com tanta
força : pareceu-me cair num poço. E, ali com Jesus, sofria imensas trevas.
Ele, moribundo,
observava tudo. Perto de dar o Seu último suspiro, a um impulso do coração,
vieram-lhe ainda aos lábios algumas golfadas de sangue e correram no Seu
santíssimo rosto as últimas lágrimas e agonizou.
Agonizou e viveu,
agonizou e falou-me :
– Minha
filha, branco lírio, pomba querida, consolação e amor do Meu Divino Coração,
guia e conselheira das almas, cópia mais real e fiel de Cristo crucificado… Eu
uno, Minha filha, à tua missão, à mais alta e nobilíssima missão todas as Minhas
graças, todos os Meus tesouros e méritos da Minha santa paixão, para teres todo
o poder para melhor desempenhares a missão de nova redentora. É Cristo que sofre
em ti, é Cristo que fala, vê e move em ti.
Ó bela, ó
encantadora, ó altíssima missão, a missão das almas !
Mas nada podia fazer,
filha querida, sem o teu consentimento, sem a tua generosidade, sem o teu amor.
Quanto te deve o
mundo, quanto te devem as almas !
Faço-te poderosa e
faço que maior número de almas se encantem e atraiam para ti e vejam em ti o que
é Meu. Eu dou luz, Eu faço luz.
Mas, ai, pobres
daqueles que mais se deviam deixar iluminar da luz e não deixaram! Por Mim lhe
serão pedidas rigorosas contas.
O brilho é da minha
causa divina, a dor é tua. Ela não podia passar sem prejuízo, senão à custa dos
teus sofrimentos. Tem coragem ! É Minha a vitória.
A causa divina está
na sua primavera de flores, flores que em toda a parte do mundo vão desabrochar.
São flores saídas dos teus espinhos.
A tua vida é vida de
luz, vida de salvação. Quantas almas por ti se irão converter ! Quantas, levadas
pelo teu exemplo, imitar-te-ão, seguindo os teus caminhos, atraídas por ti !
Que milagres
prodigiosos! Para tudo isto, Minha filha, é sempre precisa a tua dor.
– Eu estou pronta, ó
Jesus, para tudo sofrer e amar, pronta para Vos deixar trabalhar em mim à
vontade. Manejai o meu corpo como vos aprouver contanto que sempre em mim
estejais Vós para com a Vossa força sofrer, para com o Vosso amor eu amar.
– Vem então, Minha
esposa querida, tirar do Meu Divino Coração estes punhais, estas espadas que tão
cruelmente o ferem. Tira-mas tu, uma a uma, e depois, com o teu amor, com a tua
reparação, cura-lhe todas as feridas, para ficarem de todo cicatrizadas. Para me
dares a maior prova do teu amor, tira-as e crava-as em teu coração, para ficarem
continuamente a ferir-te.
Voltei-me para Jesus,
vi-Lhe o Seu lado aberto e por aquela abertura saíam os cabos das lanças e
punhais que tão vivamente Lhe atravessavam o Coração. Eram tantas! Muito
devagarinho, a tremer de dor e compaixão por Jesus, principiei a tirar-Lhas com
toda a força e a cravá-las em mim. Longe de terminar, caí desfalecida. Senti
mais a dor a tirá-las de Jesus, porque me parecia feri-Lo ainda mais do que ao
espetá-las em mim. Parecia-me que o sono da morte me ia levar.
Jesus levantou-me,
acariciou-me e incendiou dele para mim labaredas de fogo e disse-me :
– Coragem! Coragem !
Pude continuar;
tirei-Lhas todas.
E depois
Jesus uniu o Seu peito santíssimo ao meu e disse-me :
– Cura-me agora todas
as feridas. O teu carinho, o teu amor, a tua reparação é o bálsamo.
– Meu Jesus, sou a
vossa vítima, amo-Vos.
Como pode haver
coragem para Vos ferir assim, Meu Jesus ! ? E de que servem os meus sofrimentos
se não evitam os Vossos ?
– Sossega, sossega. A
tua reparação, o teu sofrimento curam-Me umas feridas para poder receber outras.
E evitas de tantas e tantas almas caírem no inferno ! Ele vai continuando
fechado. Os pecadores salvam-se aos milhares, aos milhões.
Olha para Mim : já
não tenho em Meu Coração nem uma só ferida.
Vi o coração de Jesus
todo em fogo e vi cerrar-se o lado de Jesus que estava aberto. Ele ficou todo
resplandecente de luz.
– Vai em paz, Minha
filha amada. Vai corajosa, vê o valor da tua dor.
Vai semear: é
florescente a tua sementeira !
Coragem! A tua dor, o
teu amor é a salvação do mundo.
Pede, não te canses.
Quero oração, quero penitência; quero emenda de vida, a principiar pelos
sacerdotes. Foram deles os primeiros punhais que me tiraste ; são eles os que
mais Me ferem por serem discípulos Meus.
Haja reparação ! Ai
tanta inocência perdida, tanta vida roubada ao Céu antes da sua existência na
terra !
Ai que maldade humana
! Até por um grande número de velhos sou ferido ! Que horror, que horror ! Tudo
é lodo.
Sofre com alegria,
Minha filha, dá-me o teu amor.
Tem coragem, não te
enganas. Vai em paz.
– Obrigada, Meu
Jesus. Sede a vida da minha dor, sede a força do meu Calvário.
Fiquei a sentir no
meu coração os punhais que lhe cravei e sinto o peito aberto como estava o de
Jesus.
Quero sofrer : é por
Ele e pelas almas !
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