

CONTO DO NATAL
P.e Leopoldino Mateus
Conhecemos este
conto de Natal do P.e Leopoldino Mateus pelo artigo da balasarense Dra. Zulmira
Linhares saído no último número do Boletim Cultura Póvoa de Varzim, o 42º, de
2008.
Já sabíamos que
em meados do século passado em Balasar tinha havido uma vida cultural com alguma
expressão, graças à dinamização do activo Manuel Ferreira da Silva e Sá, da
professora Sãozinha e do seu colega António Costa. Também sabíamos que o P.e
Leopoldino escrevia algumas vezes para a imprensa da Póvoa e que era pregador de
alguma nomeada. Mas não sabíamos que era capaz de se meter pela ficção ou pela
poesia. Verdade seja que esse gosto pela cultura não era novidade entre o clero
do ocncelho, tendo havido mesmo um pároco de Balasar que foi poeta. Mas agora
conhecemos mais coisas do P.e Leopoldino e é de justiça que sejam divulgadas.
Este conto
começa quando Nicolau, o protagonista, e a esposa, Sofia, vivem um momento
crítico, o da partida de Nicolau para a guerra. Dá-nos depois os antecedentes,
para a seguir retomar a narrativa.
Globalmente,
essa acção tem um começo vulgar; surgem depois as complicações, primeiro do
amor, vencida pela ousadia dum casamento entre pessoas de desigual nível
económico e social, depois a da guerra. Mas acaba em final feliz, mas um final
que exigiu duro sacrifício.
O que se nota é
que o autor é expedito em manusear os ingredientes, sejam eles o discurso
narrativo ou descritivo, seja a organização das sequências ou a vivência dos
estados de espírito. Parece pessoa experimentada.
Num tempo em que
a onomástica masculina e feminina recorria a uma gama muito limitada de nomes, é
curioso que o autor use para as suas personagens antropónimos tão pouco comuns.
A aldeia do
Minho do conto podia muito bem ser Balasar, onde não faltavam casas abastadas. A
crítica às exigências paternas quanto ao nível económico das noivas ou dos
noivos era muito justificada.
Ao tempo da
publicação do conto, em 1943, estava-se em tempo da Segunda Guerra Mundial;
embora Portugal não participasse, ela dava-lhe actualidade.
A história
lembra por vezes Júlio Dinis, pela intenção moralizante, mas tem uma feição
muito própria.
*****
– Nicolau, Nicolau,
assim me deixas sozinha na companhia do nosso filho a curtir as saudades da tua
ausência e a esperar os crepes da viuvez?!...
– Um
dever nobre e patriótico me obriga neste momento a deixar a tua santa companhia
e a abandonar o nosso lar, o dever de defender a Pátria, mas, partindo, não vos
esqueço, porque a minha família é tudo quanto me prende à terra; mas é
necessário marchar, marchar.
Um soluço embargou
a voz do Nicolau.
– Nicolau, já que
não posso impedir a tua saída, vai, que Deus te acompanhe e que o meigo Jesus, a
quem recorro com confiança nas minhas preces, me não desampare a mim e ao nosso
menino.
– Sofia, não te
esqueças de orar por mim a esse Jesus que também amou a sua Pátria, porque ao
contemplar a ingrata Jerusalém que lhe havia pagado com a perseguição os
benefícios recebidos, chorou, porque era Deus, ao lembrar-se do castigo que a
esperava pela sua perversidade e ingratidão!
Deixada a esposa
mergulhada num oceano de dor e amargura, banhada em lágrimas que caíam
lentamente sobre as faces rosadas do filhinho, Nicolau partiu a cumprir o seu
dever de militar.
***
Nicolau Castelo era
filho de uns lavradores abastados de uma aldeia do Minho. Desejando os
progenitores dar a seu filho honrosa posição na sociedade, mandaram-no estudar
para o liceu de Braga. Não sentindo grande vocação para as letras, era fraco
estudante, levando muito lentamente a conseguir a aprovação de algumas
disciplinas. Depois de alguns anos de frequência, resolveu abandonar os estudos
e dedicar-se à agricultura.
Nicolau era muito
apaixonado pela caça; numa das suas excursões venatórias, encontrou numa
freguesia vizinha Sofia Duque a cegar erva no campo. Como Sofia era uma formosa
rapariga do campo, mas pobre, Nicolau deixou-se enlevar pela sua beleza e
começou a cortejá-la. Sofia, porém, como não era forma do pé dele, porque era
pobre e Nicolau abastado, deu-lhe pouca confiança e falava-lhe poucas vezes.
Esta atitude reservada e honesta da pobre camponesa despertou tal ciúme e paixão
no coração de Nicolau que resolveu desposá-la, mas Sofia, sempre desconfiada,
não lhe deu logo o sim, receando uma cilada à sua honra. Nicolau, porém, era
sincero e tanto que, dando parte da sua pretensão a seus pais, estes
consideraram uma utopia tal enlace, negando-lhe o seu consentimento. Não
estranhamos o procedimento dos velhos lavradores, porque tratam o casamento dos
filhos como o negócio da feira, não olham às qualidades morais, mas só ao
interesse – quanto traz ela de dote?
Nicolau é que não
estava pelo ajuste. Casa-se com Sofia e vai habitar numa humilde vivenda e
dedica-se a alugar terras; então, os pais, envergonhados pela situação
paupérrima do filho, dão-lhe uma quinta para ele trabalhar e viver com a mulher.
Nicolau e Sofia
amavam-se extremosamente; não tinham dificuldades na vida nem contrariedades de
génio; pareciam ter nascido um para o outro. Da sua união conjugal veio o
primeiro filho, que era o objecto de todos os seus cuidados e desvelos. Eram
felizes, porque nada lhes faltava. Nem paz, nem alimentação, nem alegria, nem
prazer. Quem poderia perturbar o bem-estar desta família cristã?!
Um dia rebentou a
guerra europeia – 1914 – que, principiando por duas nações poderosas, dentro em
pouco arrastou no seu torvelinho outras, e entre estas o nosso Portugal, terra
de heróis e de santos. Nicolau, que era muito novo, dentro em breve foi chamado
à vida militar e, como tinha alguns preparatórios do liceu, foi convidado para
oficial miliciano. Foi então que se deu a despedida que referimos no princípio
desta novela.
Nicolau marchou e,
depois de aprender o exercício militar, que durou alguns meses, lá seguiu para
França a cumprir o seu de ver de honra e de patriotismo. No campo da batalha,
por vezes manifestou rasgos de heroísmo que mereciam os louvores dos comandantes
da expedição. Nas horas vagas, por vezes escrevia à esposa de quem se lembrava
em todos os instantes, para lhe comunicar o seu estado de saúde, nunca lhe
falando dos perigos e combates, dos ferimentos e mortes, para ela não se
afligir. Mas chegou um dia em que Sofia deixou de receber notícias do marido,
porque este, gravemente ferido, foi levado numa maca da ambulância para o
hospital militar e tão mal que recebeu os últimos Sacramentos.
Alguns meses
Nicolau esteve entre a vida e a morte e quando a guerra acabou – 11 de Novembro
de 1918 – foi trazido com grande cuidado para Lisboa onde passou algum tempo em
convalescença. Durante esse período de tempo, Sofia estava desolada por falta de
notícias do marido. É verdade que este tinha-lhe escrito de Lisboa, mas não
tendo recebido resposta (e esta não foi dada porque a carta de Nicolau tinha-se
extraviado), Nicolau pediu alta, que lhe foi concedida, seguindo para a sua
aldeia, ansioso por visitar sua esposa e filho. Quando lá chegou, a noite ia
alta, ouvindo-se ao longe o tanger do sino para a missa do galo. Oh, como o seu
coração batia fortemente ao som dos sinos da sua terra natal, desses sinos que
se alegraram um dia com o seu nascimento, que marcaram o seu ingresso na casa de
Deus, que foram testemunhas das dores dos seus antepassados!
Há de tudo, menos
sonhos encantados, a que nos levam os sinos do nosso torrão natal: religião,
família, pátria, o berço e o túmulo, o passado e o futuro, assim o afirma
Chateaubriand.
Nicolau seguiu
avante para a sua habitação, mas esta estava vazia, porque a mulher tinha ido
com o filho para a missa do galo. Então ele seguiu para a igreja, que estava
iluminada e cheia de povo a festejar o Natal de Jesus Cristo! Sofia, apesar de
triste e meditabunda, lá se encontrava com os fiéis a assistir às cerimónias da
Noite de Natal. Quando estas terminaram, foi mostrar o lindo presépio ao
filhinho que levava ao colo. Ali lhe mostrou os diversos personagens do
presépio. Aquele nobre que ali vai todo ufano, entre seus apaniguados e
familiares! O solitário, de jaqueta vermelha, tão senhor de si, à beira do
caminho! A mulher que limpa o filho ou ralha com o marido! Aquele pobre lapuz,
com o burro pela mão e a saca às costas! Ou o rapaz do pião, do papagaio, o que
pede os “dez-reizinhos” para o cego da sanfona e da capa até aos pés! Vai ali o
ricaço a choutar no burrico, além um grupo de homens e mulheres com trouxas à
cabeça ou nos ombros. Descem das encostas rebanhos, pastores e multidões
indecisas.
Vêem-se homens e
mulheres e crianças com presentes: cestinhos na cabeça e cabazes enfiados no
braço. E pombos e galos e perus. Zagais com anhos, zagaias com requeijão correm
lestos. À margem do caminho esmolam os mendigos. Alguns aleijados, cegos,
hediondos erguem-se de repente e associam-se à multidão caminhando agora
conforme podem. Do cabeço mais alto, corre como a lava do Vesúvio a riqueza
oriental do cortejo dos Magos. Fulguram armas e faíscam ao sol as jóias na
policromia do arco-íris nos contos de fadas.
Cá mais abaixo – a
cabana com S. José, Nossa Senhora e o Menino Jesus deitado nas palhinhas e
bafejado por animais!
Tudo interessava o
pequenito, que perguntava à mãe banhada em lágrimas e soluçando:
– Quem é aquele
Menino?
– É Jesus, o
Messias prometido aos hebreus, que sendo filho de Deus fez-se homem, encarnou no
seio de Maria Imaculada por obra e graça do Espírito Santo e nasceu em Belém
para resgate da humanidade.
– Quem é aquela
mulher?
– É Maria, a Mãe de
Jesus que, aceitando a missão de co-redentora do género humano, ali em tanto
abatimento e pobreza deu à luz o seu filho que está deitado nas palhinhas e que
se chama Jesus!
– E quem é o homem
que está ao lado do recém-nascido?
– É José, que não
sendo pai de Jesus, porque este é Filho de Deus, aceitou o encargo de ser o seu
protector e fazer as vezes de pai!
– Eu não tenho pai,
como aquele menino?
– Tens sim, meu
filhinho!
– Onde está o meu
pai? Sofia, estreitando o filho ao peito, respondeu amargamente: – Está longe,
muito longe daqui.
– E ele não vem?
– Vem, sim, não sei
quando.
– Então vamos de
joelhos pedir ao Menino Jesus que nos dê a alegria de ver, de beijar e abraçar o
meu bom pai.
Nicolau estava
presente, tudo viu, tudo ouviu e tudo o comoveu. Não podendo mais conter-se, dá
aos passos e ajoelha-se ao lado da esposa, unindo as suas orações às dela e do
seu querido filhinho!
Grande foi a
alegria dos esposos queridos, que, regressando a sua casa, cheios de
contentamento, bendiziam aquela noite em que Jesus apareceu ao mundo para dar a
paz aos homens de boa vontade. E associando-se ao cântico dos anjos, cantaram
com alegria:
“Glória a Deus nas
alturas, paz na terra aos homens de boa vontade!”



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