Alexandrina de Balasar

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Bartolomeu dos Mártires
Dominicano, Arcebispo de Braga, Beato
1514-1590
 

Apresentação

Em 4 de Novembro deste ano de 2001 o Santo Padre João Paulo II proclamou solenemente Bem-Aventurado D. Frei Bartolomeu dos Mártires, um religioso dominicano que foi arcebispo de Braga.

Não se trata de uma personalidade qualquer -- se o fosse, não teria sido proclamado Beato – mas de alguém que marcou a sua época, quer como membro da Ordem dos Pregadores, quer como Primaz das Espanhas, quer como interveniente no concílio de Trento.

A sua actividade, a sua palavra e os seus escritos exerceram grande influência na via da Igreja, projectando-o no tempo e no espaço.

O presente trabalho tem como objectivo dar a conhecer aos cristãos de hoje, e não só aos cristãos, quem foi D. Frei Bartolomeu dos Mártires. Apresenta uma síntese da sua biografia e destaca aspectos fundamentais da sua personalidade: a austeridade com que sempre viveu, o amor à Igreja que o levou a empreender uma corajosa e difícil reforma, a dedicação aos pobres.

1
Biografia

D. Fr. Bartolomeu dos Mártires nasceu na freguesia de Nossa Senhora dos Mártires, em Lisboa, no princípio do mês de Maio (no dia 3?) de 1514. Reinava em Portugal el-Rei D. Manuel I e presidia à Igreja universal o Papa Leão X.

Filho de Domingos Fernandes e de D. Maria Correia, começou por ter o apelido de Fernandes Vale. Este, de um dos avós. Mais tarde adoptou o apelido dos Mártires, em homenagem à igreja onde foi baptizado.

Em 11 de Novembro de 1528 recebeu das mãos de Fr. Jorge Vogado, Prior do Convento de S. Domingos de Lisboa, o hábito da Ordem dos Pregadores, em cujo Instituto professou em 20 de Novembro de 1529.

Logo que terminou o noviciado iniciou os estudos de Filosofia e de Teologia, defendendo teses nos dois Capítulos da Ordem, reunidos em Guimarães (1532) e em Lisboa. Aqui, foi escolhido para professor de Filosofia no colégio fundado na Capital por D. Manuel I.

No Capítulo reunido em Santo Estêvão de Salamanca foi-lhe conferido o título de Doutor e Mestre em Teologia. Leccionou durante 28 anos Teologia e Filosofia nos conventos de S. Domingos, no Mosteiro da Batalha e no Convento de Benfica.

A pedido do Infante D. Luís foi mandado para o Convento de S. Domingos, de Évora, onde se encontrava a Corte e onde continuou a leccionar. Teve como discípulos o filho bastardo do Infante D. Luís, D. António, que veio a ser Prior do Crato; o continuador das Décadas de João de Barros, Diogo do Couto; os primeiros teólogos da Companhia de Jesus, fundadores do Colégio de Évora.

Foi mais tarde eleito Prior do Convento de Benfica, nos arredores de Lisboa, para onde se deslocaram, a fim de prosseguirem estudos com o Mestre, D. António, Prior do Crato, e Diogo do Couto.

Por morte de D. Fr. Baltasar Limpo, da Ordem de Nossa Senhora do Carmo, em 31 de Março de 1558, D. Catarina, regente do Reino na menoridade de D. Sebastião, por conselho do seu confessor Fr. Luís de Granada, nomeou Frei Bartolomeu dos Mártires Arcebispo de Braga, cargo que, contra sua vontade, foi obrigado a aceitar pelo Provincial da Ordem, em Capítulo reunido em 8 de Agosto de 1558. A nomeação foi confirmada em 27 de Janeiro de 1559 por Paulo IV, pela bula Gratiae divinae praemium.

Recebidas as bulas em fins de Agosto de 1559, tomou posse do arcebispado por intermédio do seu procurador Doutor Martim Salvador Azpilcueta.

Foi ordenado bispo na igreja de S. Domingos, em Lisboa, em 3 de Setembro e no dia 8 recebeu o pálio das mãos do arcebispo de Lisboa D. Fernando Vasconcelos de Meneses.

Partiu da Capital no dia 22 de Setembro e fez a sua entrada solene em Braga a 4 de Outubro. Acompanhavam-no, entre outros, Fr. João de Leiria, que foi seu Mestre de noviços no convento da Batalha, e a quem confiou, mais tarde, o governo da Arquidiocese, durante a sua ausência por ocasião do Concílio de Trento.

Em Janeiro de 1560 iniciou a visita pastoral aos vários locais da Arquidiocese, regressando a Braga no princípio da Quaresma. Tenha-se em conta que o arcebispado de Braga era muito maior do que hoje e que as deslocações se faziam numa mula.

Em 24 de Março de 1561 partiu para Trento, onde chegou em 18 de Maio, a fim de participar no Concílio com que a Igreja Católica respondeu à reforma protestante. Aí desempenhou um papel de grande relevo. Terminado o Concílio saiu de Trento em 8 de Dezembro de 1563, montado numa mula que Pio IV lhe oferecera, tendo entrado na Arquidiocese por Freixo de Espada à Cinta. Chegou a Braga, como que em segredo, na tarde de sábado, 26 de Fevereiro de 1564, e no dia seguinte, segundo domingo da Quaresma, inesperadamente, apareceu a pregar na Catedral.
A partir de então o grande trabalho do Arcebispo foi a aplicação das Reformas decididas em Trento, o que não foi fácil.
Por ocasião das alterações políticas surgidas após a morte do Cardeal Rei D. Henrique, em 31 de Janeiro de 1580, D. Frei Bartolomeu dos Mártires chegou a refugiar-se em Tui, onde adoeceu gravemente. Regressado ao País, participou em 16 de Abril de 1581 nas Cortes de Tomar, perante as quais Filipe II de Espanha prestou juramento como Rei de Portugal, e no fim destas solicitou ao Monarca a sua renúncia ao Arcebispado de Braga, que foi aceite. Tinha 67 anos e encontrava-se, escreve Mons. Ferreira, exausto, esgotado, velho, doente e falho de memória.

Enquanto a renúncia não foi confirmada por Gregório XIII, prosseguiu a visita pastoral à arquidiocese, que governou durante 22 anos, de 1559 a 1581.

Quando se encontrava em visita pastoral, em 23 de Fevereiro de 1582, foi informado de que já tinha sucessor, D. João Afonso de Meneses (1581-1587). Nesse mesmo dia recolheu ao Convento de Santa Cruz, em Viana do Castelo, que tinha fundado naquela Cidade.

Apercebendo-se do fim da vida terrena, em 7 de Julho de 1590, fez testamento:

«Eu o Arcebispo D. frei Bartolomeu quero e ordeno que levando-me Nosso Senhor para si, meu corpo seja sepultado neste mosteiro de Santa Cruz de Viana que eu fundei. E declaro que faço pura e irrevogável doação inter vivos a este mosteiro dos meus livros e dos meus móveis que tenho e assim de tudo o que me pertencer e tiver vencido até o tempo do meu falecimento».

Veio a falecer pouco depois, em 16 daquele mês e ano, com 76 anos de idade e dois meses. Quis levar consigo um anel que Pio IV lhe dera, antes de regressar do Concílio de Trento.

Foi sepultado na capela mor do referido convento, do lado da Epístola. Para impedirem que trouxessem o cadáver para Braga ficaram na igreja, por ordem da Câmara de Viana, «trinta homens armados e tantos continuaram depois muitos dias sem faltar momento de dia nem de noite revezando-se ordenadamente com suas armas na mão como em auto de guerra. Até que o Prior e Padres pediram à Câmara quisessem escusar o trabalho».

Em 24 de Maio de 1609 foi trasladado para um túmulo alto de mármore, do lado do Evangelho, no qual foi posto o seguinte epitáfio, escrito em latim:

Aqui jaz Fr. Bartolomeu dos Mártires, natural de Lisboa, Religioso da Ordem de S. Domingos, Primaz das Espanhas, Adão três vezes grande, o qual sendo tirado da sua cela para a Sede e Arcebispado de Braga, assim foi em sua opinião forçado e violentado, como se o arrancaram donde tinha cetro e reinado, para ir ser crucificado. E tendo por mercê de Deus alcançado em segundo lugar aquela graça de bem governar a Igreja, que os Apóstolos somente tiveram em primeiro, e com tanta abundância, que resplandeceu entre os homens, como o Sol entre as pequenas estrelas, do que nasceu ser amado dos Sumos Pontífices, respeitado e amado dos Padres do Concílio Tridentino. Vendo-se entrado em dias deixou de sua vontade a dignidade e tornou a povoar alegremente uma cela, que escolheu neste Convento que ele tinha edificado, na qual passou o restante da vida, amado de Deus e dos homens. E vivendo em contínuo trato com o Céu por meio de altas considerações e arrebatamentos de alma, foi levado a ele dentre os braços e ósculos do Senhor, com mágoa dos pobre e dos Religiosos, aquele que era pai deles, amador da pureza, mártir em desejos, em profissão de letras. Doutor e mestre, sal da terra, tocha acesa e cheia de luz, como espelho e treslado de verdadeiros Bispos e entre todos como a banha e grossura apartada da carne (Ecles. 47). Viveu 76 e entrado em 62 de hábito e 32 de Arcebispo e cumpridos 8 depois que tornou para a Ordem, faleceu no Senhor de 1590 aos 16 de julho. Requiescat in pace. Amen.

Por ocasião da renúncia ao Arcebispado foi-lhe fixada uma pensão anual de mil cruzados.

2
Divisa

Ao entrar na Ordem de S. Domingos, Bartolomeu dos Mártires tomou por divisa Ardere et Lucere. Nolite conformari huic saeculo.

Ardere: arder em amor por Deus e pelos homens.

Lucere: ser luz para todos. Alumiar o mundo com exemplos e dourinas, guardando-se de o querer comprazer ou conformar com suas leis (Nolite conformari huic saeculo).

Esta letra, escreve Fr. Luís de Sousa, «lançava em todos os seus papéis e cartapácios e desta usou depois toda a vida por divisa junto com a Cruz da Ordem» (de S. Domingos).

3
O Evangelizador

Um dos problemas com que D. Frei Bartolomeu dos Mártires se confrontou, logo que chegou a Braga, foi o da ignorância religiosa, quer de sacerdotes quer de leigos. Mal deu início às visitas pastorais começou a notar «a falta de doutrina, tanto nos doutrinados como nos doutrinantes, escreve Fr. Luís de Sousa; muitos sacerdotes idiotas (ignorantes) e poucos idóneos, alguns viciosos e, ainda assim, maus de contentar...»

Falando no Concílio de Trento, o Arcebispo dizia: «Ai, e muitas vezes ai, gravíssimos Padres, que vejo e sei que se dão hoje as igrejas paroquiais como quem dá hortas ou quintas. E daí vem que não temos quem ensine, quem confesse, nem quem pregue frutuosamente. Por isso ninguém estuda, ninguém trabalha por saber e geralmente se tem por erro gastar tempo, vida e fazenda nas Universidades: quando basta servir ociosamente ao bispo; ou a seu parente sem mais cansar, nem saber, para gozar rendas de grandes benefícios: quando vale mais a ignorância com poucas onças de favor, que a ciência e boas letras com grandes pesos de merecimento» (José de castro, «Portugal no Concílio de Trento, vol. V, pag. 177-178).

Numa localidade de Barroso, por ocasião da visita que fez à região em 1565, conta Fr. Luís de Sousa, as pessoas juntavam-se a «recebê-lo pelos caminhos com suas danças e folias rudes, que era o extremo de festa que podiam fazer. E porque não fossem julgados menos agrestes que os seus beatos, nas cantigas que entoavam entre as voltas e saltos dos bailes, publicaram logo o que sabiam do Céu e da Fé.

Que dizia assim: — Benta seja a Santa Trindade irmã de Nossa Senhora.

Este mote com glosas igualmente disparatadas repetiam muitas vezes havendo que grangeavam com música santa um prelado que trazia fama de santo e mostravam fineza de Cristandade».

«Encontrou a um caminhando, chamou-o, perguntou-lhe quantos eram os mandamentos da Lei de Deus, respondeu espevitadamente que eram dez.

Mandando-lhe que os declarasse, foi a resposta levantar as mãos ambas e alargar os dedos, fazendo conta que em mostrar o número nos dez dedos estava a ciência e nenhuma outra cousa soube o pobre dizer», lê-se em «A vida do Arcebispo».

Encontrou igrejas que em três meses não tinham Missa porque «nenhum cura aturava nelas por ser a vivenda intolerável, e se alguns perseveravam eram tão rudes como os seus fregueses».

Com o intuito de resolver o problema trouxe para Braga jovens daquelas terras a fim de lhes dar formação.

Logo no início da sua actividade como Arcebispo estabeleceu no Paço duas lições de Casos de consciência, dadas por dois Religiosos da Ordem de S. Domingos.

Porque, dada a distância, nem todos os eclesiásticos as podiam frequentar, encarregou Fr. Diogo do Rosário, seu antigo condiscípulo, de verter do espanhol para português a Summa dos Casos do Cardeal Caetano, antigo Mestre Geral da Ordem de S. Domingos.

Ele mesmo compôs, para o povo, um Catecismo da Doutrina Cristã e Práticas espirituais, a fim de ser lido nas paróquias, onde não houvesse pregação.

Por provisão de 3 de Novembro de 1564 ordenava aos párocos e capelães que lessem aqueles livros ao povo. Os sacerdotes ilustrados eram dispensados de fazer a leitura mas deveriam tratar de viva voz esses ou outros temas.

Pediu também a Fr. Diogo do Rosário que compusesse um Flos Sanctorum ou História das vidas e feitos heróicos dos Santos e antes de partir para o Concílio de Trento mandou fazer uma nova edição do Manual dos Sacramentos.

Ele mesmo redigiu uns sermões breves sobre as festas principais de Cristo e de Nossa Senhora para se lerem ao longo do ano.

Por provisão de 27 de Fevereiro de 1561 entregou à Companhia de Jesus, com o intuito de os melhorar, o Colégio de S. Paulo onde funcionavam os Estudos e, como fonte de rendimento, as igrejas anexas de Vimieiro, Negrelos e Moledo, no que foi contrariado pelo Cabido mas apoiado pelo Papa Pio IV. Foi primeiro reitor do Colégio, nesta fase, o Beato Inácio de Azevedo, que viria a ser martirizado, com trinta e nove companheiros, por corsários conotados com os calvinistas, em frente das Canárias, em 15 de Julho de 1570.

De posse do Colégio e com a ajuda do Arcebispo os Padres da Companhia de Jesus construíram a actual Igreja do Seminário dos Apóstolos S. Pedro e S. Paulo, que do lado da Epístola tem o brasão de D. Fr. Bartolomeu dos Mártires.

Os Estudos públicos no Colégio, edificado próximo da Porta de Santiago, da parte de dentro da Cidade, com capela dedicada a S. Paulo e edifício anexo, tinham começado em 1531, com D. Diogo de Sousa, que esteve à frente da Arquidiocese entre 1505 e 1532. Foram completados pelo Infante D. Henrique, Arcebispo de Braga de 1533 a 1540, que trouxe para cá professores estrangeiros como Clenardo e João Vaseu. Como fontes de rendimento uniu-lhe as igrejas de Santa Maria de Vimieiro e de Santa Maria de Negrelos. D. Fr. Baltasar Limpo, da Ordem do Carmo, que governou a Arquidiocese entre 1550 e 1558, uniu ao Colégio a igreja de S. Salvador de Mazedo, do concelho de Monção. O referido Chegou a ser frequentados por três mil alunos.

Os Estudos naquele estabelecimento terminaram antes da expulsão dos Jesuítas, em 15 de Fevereiro de 1759, quando o Regimento de Infantaria de Viana bloqueou o Colégio de S. Paulo, por força de um decreto de 19 de Janeiro do mesmo ano. (Os Jesuítas foram expulsos do País por Decreto de 3 de Setembro de 1759).

Depois de incorporadas na Coroa, em 4 de Julho de 1774, as Casas dos Jesuítas foram cedidas à Universidade de Coimbra, pelo que o Arcebispado ficou sem os Estudos, e a Mitra, sem os rendimentos das igrejas por ela aplicados ao património dos mesmos Estudos. E os alunos do Seminário ficaram sem ter onde poder ir às aulas, pois era ali que estudavam, de manhã e de tarde, Humanidades — sobretudo Latim —, Filosofia e Casos de Consciência.

Em 1560 D. Fr. Bartolomeu dos Mártires lançou os fundamentos do Convento de Santa Cruz, da Ordem de S. Domingos, em Viana do Castelo, onde veio a falecer. Os Religiosos tinham a obrigação de ir pregar à Matriz aos domingos e festas de Cristo e de Nossa Senhora e de dar quotidianamente lições de Casos de consciência, excepto durante quarenta dias de férias, perto do Outono. Na Quaresma deviam percorrer as paróquias de fora da cidade, a fim de nelas fazerem sermões.

A formação do Clero foi também uma das necessidades apontadas pelo Arcebispo de Braga no Concílio de Trento.

«Que aproveitará, perguntou, ser o Bispo tão sábio e tão santo como um S. Martinho, se os párocos forem inábeis e destruidores?...»

Regressado de Trento, tratou de construir o Seminário, que, por resultar de uma decisão do Concilio passou a chamar-se conciliar e tomou como patrono S. Pedro. O local escolhido foi o Campo da Vinha de Santa Eufémia. Começou a funcionar em Outubro de 1572 e foi seu primeiro reitor Fr. João de Leiria.

O Seminário ficava em frente ao Convento do Salvador, com as traseiras encostadas ao antigo muro da Cidade, que fechava o quintal ou cerca do Paço Arquiepiscopal, fazendo-se por aí a comunicação entre os dois edifícios. A fachada principal tinha 63 metros de comprimento e o edifício era de dois andares.

O Arcebispo anexou ao Seminário três «benefícios simples e ténues»: S. Clemente do Fujacal, na então freguesia de S. Vítor; S. Salvador de Bulhente, no concelho de Caminha; Santa Eulália de Trute, no concelho de Monção.

Na opinião de Fr. Luís de Sousa este foi o primeiro Seminário que em Portugal e porventura em toda a Espanha se edificou. O P. José de Castro, porém, (Ob. cit., vol. VI, pag. 9) assevera que o Seminário Conciliar de Braga foi o primeiro seminário de Portugal e do mundo. Ao contrário do que afirmam os biógrafos de S. Carlos Borromeu, o seminário de Braga foi construído antes do de Milão.

O capítulo 18 e último da Sessão 23 de Reformatione, do concílio de Trento, manda erigir um seminário em cada diocese para prover à educação dos jovens eclesiásticos. «Todos os que desejam ver a Igreja reformada concordam nisto, que não há outro remédio, se não criar os Clérigos como antigamente se criavam, isto é, em Colégios, e encerramentos, e exercícios de doutrina, e disciplina eclesiástica, e devoção», escrevia o Arcebispo em carta dirigida de Trento em 9 de Março de 1563 a Fr. João de Leiria, que na sua ausência tinha ficado à frente da Arquidiocese.
Também aqui D. Fr. Bartolomeu dos Mártires teve de vencer a oposição do Cabido, a quem «parecia, salvo opinião mais sã, que se devia escusar o dito Seminário, e, quando a alguém parecesse necessário, devia sustentá-lo à sua custa, e não se fazer agravo às pessoas do Cabido nem à sua Mesa capitular». (Mons. Cónego José Augusto Ferreira, «História Abreviada do Seminário Concliar de Braga», pag. 142).

É que, para poder construir o Seminário, D. Fr. Bartolomeu do Mártires lançou um imposto de 2% sobre todos os rendimentos líquidos das igrejas e mosteiros do Arcebispado, menos das Comendas da Ordem de Malta e dos Conventos das Ordens mendicantes, exceptuados pelo Concílio.

Em 14 de Outubro de 1880 D. João Crisóstomo de Amorim Pessoa, Arcebispo de Braga entre 1876 e 1883, transferiu o Seminário do Campo da Vinha para o edifício do extinto Colégio de S. Paulo, no Campo de Santiago, onde esteve até à execução da Lei da Separação decretada pelo Governo provisório da República em 20 de Abril de 1911. Em meados de Julho de 1911instalou-se no edifício do Seminário, no Largo de Santiago, o Regimento de Infantaria n.º 29, criado pela reorganização do Exército em 25 de Maio daquele ano e colocado em Braga por decreto de 8 de Junho. Todavia, as dificuldades criadas ao Seminário tinham começado com a extinção do Colégio de S. Paulo e com o Decreto do Governo Liberal de 30 de Julho de 1832 (Idem, pags. 220, 263, 418)

O edifício de Santa Margarida, onde agora funciona a Faculdade de Teologia, foi construído por iniciativa do Arcebispo D. Manuel Vieira de Matos (1915-1932) e concluído no tempo de D. António Bento Martins Júnior. A primeira pedra foi benzida em 8 de Dezembro de 1928. A inauguração teve lugar em 14 de Outubro de 1934.

Além do Seminário Conciliar, a Arquidiocese, como é sabido, possui também o Seminário de Nossa Senhora da Conceição, na Rua de S. Domingos, construído por iniciativa de D. Manuel Vieira de Matos, que em 27 de Novembro de 1922, para esse efeito, comprou os edifícios dos extintos Recolhimento de S. Domingos da Tamanca e do Conservatório das Órfãs do Menino Deus.

4
Um dos Padres de Trento

D. Fr. Bartolomeu dos Mártires foi, juntamente com S. Carlos Borromeu, seu particular amigo, o que, na linguagem profana de hoje, poderíamos classificar como uma das grandes estrelas do Concilio de Trento, convocado por Paulo III em consequência do fenómeno protestante. A ele se deve a maior parte do decreto sobre a reforma (De Reformatione), votado na sessão 25.ª de 3 de Dezembro de 1563. Composto por quarenta e dois artigos, pode considerar-se a essência da reforma tridentina. Trata da nomeação dos bispos e dos deveres dos cardeais, da organização dos sínodos e dos seminários diocesanos, da visita da diocese pelo bispo, da reforma dos capítulos e das ordens monásticas, etc.

Do Prelado bracarense escrevia o Padre Mestre Frei Henrique de Távora, em carta dirigida ao hoje Beato Inácio de Azevedo, datada daquela cidade de 3 de Novembro de 1561: «Enquanto ao Senhor Arcebispo, posso afirmar-lhe que diariamente cresce em luzes e santidade (...) Adquiriu aqui uma extraordinária reputação. Os bispos admiram-no; os pobres procuram-no porque aqui, como em Braga, é o pai deles».

A cidade de Trento, no actual norte de Itália, naquela altura pertencia ao império alemão. Convocado pelo Papa Paulo III para 15 de Março de 1545, o Concílio abriu oficialmente em 13 de Dezembro daquele ano, na presença de uns trinta participantes, e encerrou somente no pontificado de Pio IV (1559-1565), em 4 de Dezembro de 1563, após os pontificados de Júlio III (1550-1555), Marcelo II (cujo pontificado durou apenas alguns dias) e Paulo IV (1555-1559).

D. Fr. Bartolomeu dos Mártires saiu de Braga em 24 de Março de 1561, já no tempo de Pio IV, tio de S. Carlos Borromeu, montado numa mula.

Pormenores curiosos do que foi a viagem de ida e volta podem ler-se na citada obra de José de Castro, vol. III pag, 420 e seguintes e vol. V, pag. 408 e sgs.

Iniciou o regresso a Portugal em 8 de Dezembro de 1563, montado numa outra mula, branca, mais veloz, a Águia, que lhe oferecera Pio IV. Chegou a Braga após 64 dias de jornada, em 26 de Fevereiro.

Na 5.ª sessão do Concílio, celebrada em 16 de Julho, tratando-se da Comunhão sob as duas espécies e sobre a concessão do Cálix pedida pelo Imperador, exprimiu D. Fr. Bartolomeu dos Mártires uma opinião magistral, dizendo que na Alemanha havia quatro categorias de pessoas: verdadeiros católicos, hereges declarados e obstinados, hereges simulados, pessoas tíbias ou fracas na Fé. As primeiras não pediam o Cálice e até eram contrárias a ele; as segundas não se importavam com isso; as terceiras desejavam-no, para melhor encobrirem a sua heresia e terem as graças do Imperador, porém a estas se devia recusar, a fim de não lhes fornecerem meios de ocultar os seus erros; finalmente, aos fracos que pediam o Cálice, porque o julgavam necessário, também se não deve conceder, sobretudo quando houver a certeza de que não o pedem por devoção, pois muitos comungam uma só vez por ano. Que o Pontífice, concluiu, mandasse averiguar da qualidade das pessoas, e depois determinasse o que fosse mais conveniente à salvação do povo.

Relativamente ao provimento da Igrejas, lembrou que se distribuíam sem ter em nenhuma conta a salvação das almas, e propôs que todos os Benefícios fossem dados por concurso.

5
Defensor dos direitos da Igreja

D. Fr. Bartolomeu dos Mártires foi um grande defensor dos direitos da Igreja. Da Igreja universal e da Igreja bracarense.

A defesa desta sua Igreja de Braga levou-o a protagonizar, no Concílio de Trento, dois incidentes originados numa questão de precedência do Arcebispo de Braga sobre os outros arcebispos não primazes, embora mais antigos do que ele na promoção. O primeiro, com o arcebispo de Naxo, o dominicano grego D. Fr. Sebastião Leccavéla, muito mais antigo na dignidade; o segundo, por causa da reivindicada primazia de Toledo.

O primeiro caso foi facilmente sanado. Pio IV deu ordens para que D. Fr. Bartolomeu dos Mártires se sentasse à frente dos outros arcebispos, por ser primaz. (P. José de Castro, Ob. cit., vol IV, pag. 56-58; 100 sgs.)

O segundo foi muito mais complicado e deu lugar a uma porfiosa batalha diplomática. Tratava-se de dirimir sobre quem era o primaz das Espanhas, se o arcebispo de Braga se o arcebispo de Toledo. Aqui o Papa entendeu que não se deveria dar a precedência nem a um nem a outro, ignorando a disputa de primazias e deixando, neste pormenor, tudo como estava antes do Concilio. (Idem, pag. 104-132). No Breve Sicut ea, de 31 de Dezembro de 1561, Pio IV escrevia: «Para acabar com toda a matéria de controvérsia que entre os prelados reunidos pro tempore na cidade de Trento para a celebração do sagrado, ecuménico e geral Concílio acerca da sua precedência que já tenha nascido ou possa nascer mais tarde: queremos e mandamo-vos pelo presente mandado que todos e cada um dos prelados referidos, a saber primeiro os veneráveis patriarcas, depois os arcebispos e ainda depois os bispos se assentem e tomem lugar em todos e cada um dos actos públicos segundo o grau, ordem e promoção às suas igrejas, assim que o primeiro promovido tenha na sua ordem o primeiro lugar, não se tendo em nenhuma conta as suas dignidades primaciais sejam elas verdadeiras ou pretendidas e assim trateis de o fazer por nossa autoridade».

Recorde-se que o Cabido de Braga, antes de o Arcebispo partir para Trento, lhe tinha recomendado que tivesse todo o cuidado em defender no Concílio as preeminências da sua Igreja, como diz Mons. J. Augusto Ferreira.

Quando Filipe II de Espanha passou a ser também rei de Portugal, D. Fr. Bartolomeu dos Mártires participou nas Cortes de Tomar, reunidas em 16 de Abril de 1581, e foi sobre um Missal, colocado sobre as mãos do Arcebispo, que o Monarca fez juramento. Para vincar a ideia de que «a Igreja de Braga estava em posse da Primazia das Espanhas por muitas, mui antigas e mui jurídicas razões», o Arcebispo sentiu-se «obrigado a levar sua Cruz Primacial alçada por todo lugar e em todos os autos e solenidades das Cortes».

Porque o Arcebispo era também o senhor de Braga e dos seus Coutos, não consentiu que neles entrasse uma Alçada enviada por D. Sebastião em 1570 a visitar o Norte do País. «Não entrou em Braga em todo o tempo que o Arcebispo a governou nenhum ministro de justiça real, se não foi com ordem e a requerimento do mesmo Arcebispo».

No que refere aos direitos dos padroados, escreve Fr. Luís de Sousa, «o Arcebispo de nenhuma maneira sabia ceder um ponto da sua jurisdição ou fosse adquirida por razão de posse ou prescrição ou propriedade. Como era cousa em que intervinha qualquer género de escrúpulo, não havia força que o dobrasse».

6
Hospital de S. Marcos

Um dos primeiros actos de governo de D. Fr. Bartolomeu dos Mártires consistiu em anexar e unir perpetuamente à Irmandade da Misericórdia o Hospital de S. Marcos, por o achar menos bem administrado pela Câmara Municipal. Esta união fez-se por diploma de 19 de Outubro de 1559.

7
Retrato

Frei Luís de Sousa deixo-nos do Prelado bracarense o seguinte retrato:

«Foi o Arcebispo D. Frei Bartolomeu de boa e bem proporcionada estatura, maior que meã. Conformava com ela a composição de todos os membros, cabeça grande, rosto comprido e descarnado; testa larga e alta, que abria em uma venerável calva, os olhos eram pequenos e sumidos, a vista em ambos torcida. Este defeito (chamam os latinos aos que o têm Strabores) não é de natureza. Tinha o nariz proporcionado com o rosto, direito e moderadamente levantado; a boca grossa e o queixo e beiço inferior um pouco saído. Destas feições resultava uma certa majestade, que o fazia tão grave e venerável, que de primeira vista, era de quem o não conhecia julgado por esquivo e intratável; mas conversado não havia maior brandura: era chão, fácil, humano, mais do que se pode crer. Era alvo de rosto e antes de chegar à muita idade inflamado sempre em cor.

Sendo moço era miúdo e delicado de membros, que se duvidava se aturaria o trabalho da Religião. Com a idade engrossou e fez-se corpulento e, como se trocara em outro, assim se mostrou robusto de natureza e forças, sofredor de muito trabalho, de vigias, de estudo e penitências, que nunca largava.

A compleição era colérica e sanguínea, de que deram indício muitas doenças que padeceu de sangue mui graves, sendo de admirável temperança no comer e beber.

Era de engenho subtil, claro entendimento e firme memória, livre em dizer a cada um o que entendia e (o que é raríssimo no mundo) sofrido e humilde em ouvir o que cada um lhe dizia de avisos e advertências; animado em acometer as cousas de sua obrigação, acre e diligente na execução delas, constante em as levar a cabo, porque nenhuma acometia sem muito estudo e conselho, parte de verdadeira prudência».

O mesmo Fr. Luís de Sousa sublinhou a firmeza de carácter do biografado:

«o Arcebispo não sabia negociar com dobrezes, nem em toda a sua vida foi granjeador disto que chamam aura popular, quero dizer graça e estimação do mundo».

«Neste nosso Santo, acrescenta, temos exemplo de tudo porque foi em todas as virtudes abalizado e com extremo escondedor delas.

Era o Arcebispo tão humilde de coração que em nenhum tempo se lhe notou acto que cheirasse a soberba ou vanglória.

Quando de palavra era consultado em algum caso, ainda que fosse daqueles que andava visto e resoluto, respondia que veria os livros.

O que não fazia como hoje costumam fazer os letrados ou por crédito da ciência ou por melhor venderem a sua, mas somente para fugir ao fumozinho da vanglória de sentenciar de repente.

A muitos espantava a igualdade de ânimo com que levava as apelações de suas sentenças ou mandados para maior poder, sendo a cousa que tão mal toma qualquer julgadorzinho. E o Arcebispo não só se não escandalizava, mas com a boca cheia de riso respondia às partes que faziam acertadamente, porque de suas faltas e ignorâncias achariam eles emenda na mor alçada.

A um homem que vindo-o visitar entrou com grandes exagerações de louvores das obras e virtudes com que ilustrava o Arcebispo e trás esta adoração propôs como acontece no mundo, uma petição de negócio dificultoso.
Aos louvores se carregou, como outrem pudera fazer a opróbrios e à petição respondeu secamente por razão do prólogo (Jo. 2):

Omnis homo prius bonum vinum ponit, tunc deinde quod deterius est, dando-lhe a entender que errara os termos, em oferecer primeiro o vinho vinagre, que por tal tinha o de seus gabos, e depois o menos mau da petição, e por isso como ignorante arquitriclino não merecia nada».

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Beatificação

O Prior do Convento de S. Domingos de Viana do Castelo promoveu a beatificação de D. Frei Bartolomeu dos Mártires, requerendo para isso ao arcebispo D. Rodrigo da Cunha uma inquirição sobre a vida, virtudes e milagres do venerável servo de Deus, inquirição que foi feita duas vezes, em 1631 e 1635, pelo Prior do Carmo, da mesma cidade de Viana.

Também se trabalhou na causa da beatificação no governo do arcedbispo D. José de Bragança (1746 e 1748).
Em Agosto de 1863, por ordem do prelado D. José Joaquim de Azevedo e Moura, o arcipreste de Viana presidiu a uma inquirição de testemunhas que depuseram sobre os milagres atribuídos à intercessão de D. Fr. Bartolomeu dos Mártires.

De várias graças concedidas por sua intercessão falam «A Vida do arcebispo» e José de Castro (ob. cit., vol. VI, pag. 36 sgs.; pag. 82 sgs).

Por decreto da Congregação dos Ritos, de 23 de Março de 1845, que pode ser lido na íntegra na citada obra de José de Castro (vol. VI, pag. 102-105) Gregório XVI confirmou ter D. Frei Bartolomeu dos Mártires praticado as virtudes em grau heróico, dando-lhe o título de Venerável.

A marcha do processo, escreve José de Castro (ob. cit., vol. VI, pag. 101) foi lentíssima. Tanto que apenas a 27 de Agosto de 1819 D. Pedro de Melo Breiner, ministro de Portugal junto da Santa Sé, mandou a Tomás António Vilanova Portugal esta geladíssima e concisa notícia: «Terça-feira haverá na presença de S. S. a relação do Processo das Virtudes de Frei Bartolomeu dos Mártires, depois se procederá ao dos milagres». Só 26 anos decorridos, João Pedro Migueis de Carvalho mandou dizer a 10 de Abril de 1845 a José Joaquim Gomes de Castro: «Em 24 do próximo passado Março se declararam exercitadas em grau heróico as virtudes do Venerável Bartolomeu dos Mártires; declaração esta que é o passo mais dificultoso que se encontra nas causas de canonização».

Esta noticia foi dada ao governo dezassete dias depois.

Em artigo que publicou no «Diário do Minho» de 26 de Julho de 2001 D. Eurico Nogueira procura explicar o facto de só agora se proceder à beatificação do Arcebispo Santo. Diz que o processo informativo de beatificação e canonização, na fase diocesana, iniciou-se poucas décadas após a morte, em tempo dos Reis Filipes, e desenvolveu-se por várias etapas, de que recorda algumas.

O primeiro impulso partiu de D. Rodrigo da Cunha, seu quinto sucessor (1627-1635). D. José de Bragança (1741-1756) introduziu-o em Roma, passando à categoria de Processo apostólico, com dois impulsos: 1760 e 1764-66.

Informa que por Decreto episcopal de 21 de Fevereiro de 1989 instituiu em Braga o Tribunal eclesiástico que apreciaria a cura instantânea de Paula da Costa Madeira Lopes, em 14 de Setembro de 1964 (então criança de nove meses e actualmente professora de ensino secundário, natural de Guardão – Tondela), filha do Dr. Carlos Alberto Madeira Lopes, médico, e D. Olímpia da Conceição Costa Madeira, após preces por esta dirigidas a Deus, por intercessão do Arcebispo Santo, seguindo a sugestão do P. António do Rosário Sousa Carvalho, O. P., então no Caramulo, em serviço de pregação. A Conferência Episcopal Portuguesa, por Decreto promulgado na sessão ordinária de 12 de Março de 1999, aprovou o processo diocesano de investigação do milagre examinado.

Relativamente à morosidade do processo D. Eurico Nogueira crê poder dizer-se que se deveu isso, em boa parte, a acontecimentos de ordem política que impediram ou retardaram esse objectivo. «Homens da Igreja com tal envergadura, escreve, causam impacto na área sócio-política — não apenas na religiosa — sofrendo-lhe as consequências»

E o Arcebispo Emérito indica alguns daqueles acontecimentos, com reflexos retardatários no desfecho do processo em causa:

– revolução de 1640, dado que Frei Bartolomeu aceitara a sucessão de Filipe de Castela;
– consulado do Marquês de Pombal, em meados do século XVIII, que proibiu as obras do Arcebispo;
– implantação do Liberalismo, com a extinção da Ordens Religiosas (1834), entre as quais a Dominicana, impulsionadora da respectiva causa;
– ocupação de Roma e fim dos Estados Pontifícios (1870), com perturbações na Cúria;
– mudança do regime político-constitucional em 1910, com as conhecidas dificuldades criadas à acção da Igreja em Portugal.

(Um resumo dos processos de beatificação e canonização pode ver-se na referida obra de José de Castro, vol. VI, pag. 363-399).

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Locais de particular interesse

Relacionados com a vida e obra de D. Frei Bartolomeu dos Mártires há locais que se revestem de particular interesse.

Um deles é a igreja e o convento de S. Domingos, em Viana do Castelo, mandados edificar pelo Arcebispo Santo. Naquele convento se recolheu, depois de ter resignado ao arcebispado de Braga, e naquela igreja foi sepultado.

No Campo da Vinha, em Braga, se situou o Seminário Conciliar, por aquele Arcebispo fundado.

A pedra que se encontrava à entrada do mesmo, e que contém uma inscrição com dados relativos à finalidade do Seminário e à sua ligação com o Concílio de Trento, conserva-se no Museu D. Diogo de Sousa.

Na igreja do Colégio de S. Paulo (hoje, Seminário Conciliar), edificada no seu tempo, encontra-se o brasão do Arcebispo.

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Virtudes de que deu exemplo

De quanto escrevi já se pode ter concluído ter D. Frei Bartolomeu dos Mártires praticado em elevado grau um conjunto de virtudes. Vou, porém, salientar algumas em que particularmente sobressaiu.

10. 1. Austeridade de vida

Começo pela austeridade de vida.

Compelido a aceitar o cargo de Arcebispo de Braga, Frei Bartolomeu dos Mártires assegurou no Capítulo da sua Ordem, reunido em 8 de Agosto de 1558, que em nenhum tempo mudaria o estilo de vida que tinha levado.

«Digo claramente e declaro que se os meus prebendados desejam ouvir alvoradas de charamelas e se os fidalgos de Braga querem ver passeios de ginetes formosos e mulas gordas e anafadas e nuvens de pagens enfeitados e urgindo sedas, desenganem-se, que nunca me verão tão desatinado que despenda com ociosos aquilo com que posso dar vida a muitos pobres», afirmou mais tarde, por ocasião de uma visita do Provincial.

Quando, em 22 de Setembro de 1559, partiu de Lisboa para Braga, a recâmara que trouxe, escreve Fr. Luís de Sousa, «não passava de alguns livros, e não muitos, e uma pobre cama da ordem sem cousa comprada de novo».

Entrou no Paço, informa o Autor da «Vida do Arcebispo», «pelas formosas salas que chamam da Rosa e de Hércules e nem quando entrou fez caso delas nem pelo tempo adiante, porque nunca delas se quis servir... Só da câmara em que se recolheu e do concerto dela mostrou contentar-se, porque era a seu modo e, por ordem sua, nesta forma: -- Uma cama sem nenhuma diferença das ordinárias da Ordem de S. Domingos: três tábuas mal lavradas, atravessadas sobre dous banquinhos do mesmo lavor. Sobre este leito, que na Ordem chamamos barra, lançado um enxergão de palha e em cima seu colchão de lã, coberto com duas mantas de pano grosso, que eram as mesmas que tirou do Mosteiro e lhe serviram muitos anos depois. Estes faziam ofícios de lençóis mimosos e de amparo para o frio e entre mantas dormiu toda a vida... Na cabeceira uma táboa de pinho arrimada à parede com um papel pregado, em que havia só estas duas letras S. B...

Esta era a cama pontifical sem outro paramento, nem pavilhão nem cortina e era tão curta que, segundo sua estatura, de força havia de jazer encolhido e tão estreita que não dava lugar de mudar sítio nem jazida.

A mesa que tinha para escrever e estudar, era como as que usamos na ordem (é seu próprio nome banca na figura e no feitio). Sobre ela um devoto crucifixo a quem tal mesa ficava servindo mais de Calvário, que de Altar.
Ao lado da parede umas estantes a uso fradesco que diziam com a mesa na feição e pobreza. Poucos livros nelas, mas cartapácios muitos e cadernos de sua mão escritos, argumento de seus estudos... Do meio das estantes pendia um pequeno retábulo de nossa Senhora do Rosário.

Com este retrato da sua cela, que nunca alterou enquanto viveu e foi Prelado, temperava as vivas saudades que sempre o seguiam dela».

As letras S. B., ainda segundo Fr. Luís de Sousa, significavam: surge bestia: «levanta-te, animal torpe, dessa cama, que quem nela se deixa estar mais tempo do que é necessário precisamente para refazer a natureza fraca e cansada, mais é animal bruto, que homem racional, não digo já religioso nem estudante».

A mesma austeridade se manifestava no seu estilo de vida.

O mantimento quotidiano da sua mesa, prossegue Frei Luís de Sousa, os dias de carne (excepto as quartas-feiras que para ele eram dias de peixe), era uma só ração de vaca ou carneiro. Não comia peixe continuo por conselho médico.

Às quartas e sextas-feiras comia com seus capelães em refeitório com lição e silêncio a uso monástico.
Dos jantares não desdiziam as ceias, que deviam ser mais leves.

Não havia escudeiros, nem pagens, nem homens de capa e espada. Oficiais de câmara e mesa a uso de casas grandes, como ele era, que são camareiro, mordomos, estribeiro, trinchante, eram para o Arcebispo matéria de riso.

Todo o aparato da sua estrebaria era uma mula só de uma pessoa e esta de tão pouco estado que de ordinário, por não comer a cevada ociosa, andava ocupada com outras de serviço acarretando o que era necessário para provisão da casa.

Na viagem que fez para Trento, — em 56 dias percorreu 332 léguas — quando chegava ao lugar onde tencionava pernoitar, procurava um Convento de S. Domingos ou de S. Francisco. Deixava a mula e os companheiros e a pé, com Fr. Henrique de Távora, ia procurar o convento. Tinha a preocupação de se apresentar como um simples frade, ocultando a sua condição de arcebispo. Recomendava aos restantes companheiros, que não eram muitos, que repousassem juntos onde achassem mais cómodo e no dia seguinte o esperassem à saída do lugar, para tornarem todos ao caminho. Recomendava-lhes que «por nenhum caso dessem notícia de sua pessoa nem dissessem ser de sua família».

Depois de ter renunciado à Mitra bracarense, levou a vida de um simples frade dominicano.

«Quem quiser saber, escreve Fr. Luís de Sousa, a vida que o Arcebispo fazia depois que se achou entre os seus frades em Viana, ponha de parte o título de Arcebispo e debuxe à sua vontade um religioso observantíssimo, e qual for a vida que este der, tal assento que era a do Arcebispo.

Mostrou o santo velho em entrando no convento que vinha com ânimo de se avantajar a si mesmo e ao mesmo tempo mais florido.

A primeira cousa por onde começou, foi desafiar-se juntamente com todos os rigores e obrigações da regular observância, guardando-as tão pontualmente, como se fora um frade raso de inteira e firme disposição, que viera assinado para aquele Convento e muito desejoso de agradar ao Prelado com vida e exemplo.

Assim acudia ao coro a todas as horas canónicas, assim andava apontado nas inclinações e nas pausas e pontos ao rezar os salmos. E tão solícito era em se conformar com todos nos jejuns, silêncio, recolhimento, trato de suas pessoas e em todas as mais cerimónias da Ordem, como se então acabara de sair de casa de noviços com opinião do mais reformado dela.

Pedia com muita instância ao Prelado e aos mais religiosos que se lhe queriam dar gosto, o tratassem em tudo e mandassem como se agora entrara de novo na Ordem e começara seu Noviciado, sem lembrança nem respeito da dignidade passada.

Por nenhum modo consentia se usassem com ele particularidades nem dispensações e desconsolava-se muito se o Prelado o queria aliviar nos rigores da Constituição dizendo e provando com razões que a dignidade que tivera, fora uma cousa que se acrescentara e não sucedera ao estado monástico que professara.

Pelo que na hora que sua renunciação fora pelo Papa aceitada e ele assolto do Arcebispado, ficava puro frade com todas as obrigações de sua profissão, como sempre o fora e desde essa hora não havia mais nele, que frei Bartolomeu dos Mártires, o qual frei Bartolomeu estava obrigado a continuar com suas Comunidades e com toda a guarda da regra e constituições, como se nunca fora Arcebispo e somente andava alguns dias ausente com licença.

Fundado nesta razão não sofria que na mesa lhe pusessem cousa alguma em particular e se acaso lha punham, em notando que não corria a mesma por toda a comunidade, logo a apartava de si e o mesmo fazia a qualquer mimo que o Prelado lhe mandava».

Mesmo velho e doente, não deixou de usar sempre túnicas de estamenha.

«Aconteceu um dia tratar com aspereza a Frutuoso Fernandes, que só de todos os seus criados deixou consigo, porque uma manhã lhe dava uma túnica lavada, mais cedo a seu parecer do que costumava mudar-se.

Agastou-se e disse-lhe: -- Que é isso, irmão? Mimos à carne? Quereis-me regalar? Não sabeis vós que tenho escrito a quantos do mês vesti a que trago? -- E mandou-lhe que a guardasse».

Das mortificações do ex-Arcebispo conta o seu biógrafo:

«Com tal determinação e continuação perseguia o santo sua própria carne, assim se ia à mão em tudo o que podia ser de gosto ou de bom tratamento dela, que nenhum escravo rebelde foi nunca mais aperreado de senhor desumano cruel, no comer, no beber, no vestir, no trabalhar e em todas as mais cousas. São e doente parecia ter publicado contra si guerra de fogo e sangue».

Se comia em casa alheia, o maior desgosto que se lhe podia dar era porem-lhe na mesa muitas iguarias. Afrontava, gemia, não comia. Pelo contrário, entrando em parte onde acertava achar falta ou aperto, ali comia de boa vontade e notavelmente se lhe enxergava achar gosto e sabor no que lhe davam.

Visitando em Santa Maria de Airão no ano de 1573 não se achou em toda a terra um pão de trigo para a sua mesa, havendo abundância de tudo o mais. Pediu que lhe trouxessem uma boroa (assim chamam por aquelas partes ao pão de milho) e não só comeu dela mas serviu-lhe de salsa e apetite para comer bem do mais, confessando que só nela achara gosto por ser mantimento de pobres, grosseiro e não mimoso.

A cama de que se servia enquanto assistiu no governo do arcebispado, lê-sew ainda na Vida do Arcebispo, «sobre ser tão pobre que nunca foi avantajada às da Religião, e sobre ser tão curta que lhe cumpria jazer de contínuo encolhido sob pena de ficar com os pés de fora e tão estreita que não podia dar voltas sem perigo, mandava para mais mortificação abrir uma cova de alto a baixo no enxergão, onde assentando o colchão, que ficava em cima, com o peso do corpo, jazia não só entalado, mas como enterrado».

Frei Luís de Sousa salienta que o Arcebispo não se contentava com usar de rigor consigo somente quando andava são e robusto. A mesma regra guardava sendo enfermo.

Não despia as túnicas grossas de estamenha ardendo em febres nem consentia tirarem-lhe as mantas e porem-lhe em lugar delas lençóis de linho. E o que é mais, não trocava o género e quantidades de comida ordinária de são.

10. 2. Programa de vida

A austeridade do Arcebispo manifestava-se também no seu programa de vida.

Levantava-se infalivelmente todos os dias às três horas da manhã. Ocupava-se até pela manhã no estudo da Sagrada Escritura e dos Santos Padres, ou em escrever tratados de devoção. Rezava suas horas pela manhã cedo e sempre só, se não era quando nesse dia havia de pregar, porque então se ajudava do capelão. Às oito dizia sua Missa ou a ouvia. Depois da Missa dava audiência geral mandando entrar primeiro todas as mulheres que havia e logo se recolhia com um desembargador para a câmara, em que dormia, a despachar as petições e papéis que havia. Neste despacho entendia até horas de jantar, que para ele eram sempre as do meio dia.

À tarde mandava abrir as portas para quem queria negociar com ele e vendo papéis despachava até se cerrar o dia. De ordinário em se fazendo sinal nas igrejas às Avé-Marias se recolhia e fechava em sua câmara, e, largando todo o género de negócio temporal, entendia em suas devoções particulares e a principal era a oração e contemplação.

Quando andava em visita pastoral, no lugar que havia de ser visitado procurava ser o primeiro que de toda a família se levantava pela manhã cedo e gastava um grande espaço de tempo na oração.

10. 3. Cumprimento dos deveres

Procurou D. Fr. Bartolomeu dos Mártires cumprir escrupulosamente os seus deveres de primeiro responsável pela Igreja bracarense.

Não deixa de ser elucidativo o que Frei Luís de Sousa conta relativamente aos ensinamentos que o Arcebispo recebeu de um pequenino pastor de ovelhas:

«Passavam um dia de um lugar para outro. Salteou-os uma chuva fria e importuna que os não largou na mor parte da jornada, e corria um vento agudo e desabrigado, que os congelava.

Tinha-se adiantado o Arcebispo, segundo o seu costume, que era caminhar só, para se ocupar, com mais liberdade, em suas contemplações; e ia fazendo matéria de tudo quanto via no campo e na serra, para louvar a Deus.

Oferece-se-lhe à vista, não longe do caminho, posto sobre um penedo alto e descoberto ao vento e à chuva, um menino pobre e mal reparado de roupa, que vigiava umas ovelhinhas, que ao longe andavam pastando.

Notou o Arcebispo a estância, o tempo, a idade, o vestido, a paciência do pobrezinho; e viu juntamente, que ao pé do penedo se abria uma lapa, que podia ser bastante abrigo para o tempo. Movido de piedade, parou, chamou-o e disse-lhe que se descesse abaixo para a lapa e fugisse da chuva, pois não tinha roupa bastante para a esperar.

— Isso não, respondeu o pastorinho, que em deixando de estar alerta e com o olho aberto, vem o lobo e leva-me a ovelha, ou vem a raposa e mata-me o cordeiro.

— E que vai nisso? – disse o Arcebispo.

— A mim vai muito, -- tornou ele --, que tenho pai em casa, que pelejará comigo, e tão bom dia, se não forem mais que brados. Eu vigio o gado, ele me vigia a mim: mais vale sofrer a chuva.

Não quis o Arcebispo dar mais passo. Esperou que chegassem os da sua companhia, contou-lhes o que se passava com o menino, e acrescentou:

— E este esfarrapadinho inocente ensina a Frei Bartolomeu a ser Arcebispo! Este me avisa que não deixe de acudir e visitar minhas ovelhas, por mais tempestades que fulmine o céu; que se este, com tão pouco remédio para as passar, todavia não foge delas, respeitando o mandado do pai mais do que o seu descanso, que razão poderei eu dar, se, por medo de adoecer ou padecer um pouco de frio, desamparar as ovelhas, cujo cuidado e vigia Cristo fiou de mim, quando me fez pastor delas?»

Não obstante o inverno que fazia, iniciou as visitas pastoraisà Arquidiocese logo em Janeiro.

Mais tarde, regressado de Trento, decidiu visitar pessoalmente as igrejas da Cidade, no que teve de lutar contra a oposição do Cabido. Ficou finalmente acordado, «por assento perpétuo e irrevogável, que o Arcebispo visitasse por sua pessoa o Clero da cidade e nomeasse para a visitação dos leigos dous Capitulares quais lhe parecesse, os quais dariam conta a ele Arcebispo do que achassem».

Terminadas as visitas a todas as igrejas da Cidade, iniciou a visita ao restante do arcebispado. «E para o poder fazer, conta Fr. Luís de Sousa, como a Diocese é tão larga e espalhada ordenou parti-la em três comarcas ou distritos, dando poucas menos de quinhentas freguesias a cada distrito, e tantas assentou que poderia visitar cada ano.

E saiu-lhe tão acertada a traça, que por ela se governou enquanto assistiu no Arcebispado contentando-se com dar visita a todas as suas ovelhas cada três anos uma vez».

Durante a peste de 1570 não fez caso dos conselhos que lhe deram para se cuidar e evitar o contágio. E as razões eram estas: «Se o mal era declarado, escreve Fr. Luís de Sousa, se tão forte e impetuoso que os pais fugiam dos filhos, e os filhos dos pais, pelo mesmo caso cumpria acudir ele que tinha obrigação de socorrer todos, e não desamparar nenhum.

Se sua pessoa era de importância como diziam, com os necessitados o havia de mostrar, e isto havia de ser assistido com eles no trabalho e no perigo.

Que não era bom capitão quem se punha em salvo quando os soldados pelejavam nem bom pastor quem lhe sofria o coração ver de outeiro o perigo das ovelhas. Nem seria amigo verdadeiro do Pastor quem em tal tempo lhe aconselhasse fazer falta em seu ofício»

O Arcebispo fez-se, naquele período difícil, «enfermeiro de seus súbditos encerrando-se com eles e governando-os com amor».

Numa carta dirigida em 4 de Novembro de 1576 ao Papa Gregório XIII D. Frei Bartolomeu referia-se aos seus muitos afazeres: «Além dos infinitos negócios, escrevia, tenho de visitar quase mil e trezentas paróquias cuja visita faço em quatro anos, como também gasto nesta visita a maior parte do ano, e além disto tenho alguns conventos de freiras dos quais tenho a cura e de que me incumbi e que assaz me crucificam, e alguns outros de que agora me não recordo que foram visitados pelos meus antecessores por causa da distância da cidade de Braga».

10. 4. Vida de oração

De todos os exercícios e ocupações santas do Arcebispo, a que mais tempo lhe levava, era a oração.

Aludi atrás ao tempo que o Arcebispo lhe dedicava, ao recordar o seu programa de vida. Diz Fr. Luís de Sousa que, quer como pregador apostólico quer como leitor de Artes e Teologia, preparava-se sempre com a oração, «como quem tinha experiência que se alcançava mais nela em pouco espaço, que nos melhores cartapácios em muito». «De estudo sem devoção e de pregação sem oração, pouco proveito se pode esperar», dizia.
Já na última fase da vida, em Viana do Castelo, aconteceu um dia ir pregar longe. Regressou tarde e cansado do caminho. Entrou no refeitório e começou a jantar. Ouvindo tanger a Vésperas, no mesmo ponto deixou a mesa, o comer, e caminhou logo para o coro.

E tudo o que rezava ou entoava no coro e fora dele era com uma certa eficácia e devoção tão do íntimo da alma que notoriamente se via que saía dela o que pronunciava a boca.

10. 5. Santificação

Além da sua santificação pessoal preocupava-se o Arcebispo com a santificação dos outros.

Rezava a fim de «pedir a Deus que lhe desse particular favor e ajuda para fazer discípulos santos mais que doutos com a lição, para salvar almas com a pregação», escreve Fr. Luís de Sousa E acrescenta: «assim foi sempre o intento de seus sermões: desterrar vícios e pecados, mostrando o dano e o perigo deles e afeiçoar os corações a Deus».

10. 6. Devoção ao Santíssimo Sacramento

Tinha D. Frei Bartolomeu dos Mártires uma particular devoção ao Santíssimo Sacramento.

Acabado o Capítulo em que foi obrigado a aceitar a Mitra de Braga, diz Fr. Luís de Sousa, saiu-se o eleito do Coro e foi-se lançar diante do Santíssimo Sacramento no altar de Jesus...

10. 7. O grande Reformador

D. Fr. Bartolomeu dos Mártires, que ensinava muito com as obras e não apenas com as palavras, defendeu no Concílio de Trento o que hoje diríamos uma reforma de cima a baixo. Das cúpulas às bases, mas a começar por cima. «Porque lhe parecia, escreve Fr. Luís de Sousa, que como fim principal daquela sagrada e geral consagração era emendar o mundo e purificá-lo de vícios, convinha começar a obra pela parte mais grave dele, que era o Eclesiástico, e pela melhor do Eclesiástico que eram os Prelados e daí passar às coisas de menos consideração e isto dizia que era proceder com ordem». «Instava, rogava, persuadia e aconselhava em público e em particular, que não gastassem em cousas de pouca importância uma tão preciosa ocasião como tinham entre mãos para grandes efeitos. Começassem logo pelo que mais convinha que era limpar o ouro da Igreja, que era o estado eclesiástico, que estava escurecido com costumes depravados e delícias e pompas e com muitos vícios que daqui brotavam...

Que pois eram todos Médicos e para curar a Cristandade estavam ali juntos, curassem primeiro a si mesmos, que assim persuadiriam eficazmente ao mundo e aos hereges e aos membros podres da Igreja que sofressem o ferro e o cautério, onde fosse necessário, sem poderem dizer: — Medice, cura teipsum»

Depois desta luta do Arcebispo, prossegue Fr. Luís de Sousa, propôs-se aos padres conciliares em primeiro lugar se havia motivo para que fossem incluídos na reforma os Cardiais.

«Começaram a votar os que ficavam precedendo o Arcebispo e um após outro nemine discrepante (isto é, por unanimidade), foram dizendo com a cortesia costumada: — Que os Ilustríssimos e Reverendíssimos Cardinais não haviam mister reformados.

Quando tocou dizer ao Arcebispo, disse assim, aproveitando-se das mesmas palavras e termo dos que tinham votado, mas com liberdade e espírito de Varão Apostólico: Illustrissimi et Reverendissimi Cardinali indigent Illustrissima et Reverendissima reformatione.

A linguagem é: Os Ilustríssimos e Reverendíssimos Cardiais hão mister uma Ilustríssima e Reverendíssima reformação.

E logo visando com muita segurança por onde estavam os Candiais Legados e fazendo uma mui cortês inclinação, disse com voz grave e sonora: -- Vossas Senhorias Ilustríssimas são as fontes donde todos os Prelados bebemos e portanto convém que esta água esteja mui limpa e pura».

Segundo José de Castro (Ob. cit., vol V, pag. 183-184) a sátira pungente contra os membros do Sacro colégio, necessitados de ilustríssima e reverendíssima reforma, não se encontra nas actas do Concílio. Mas. acrescenta: «não é de admirar porque de ordinário, a não ser um ou outro discurso anteriormente redigido e entregue ao secretário do Concílio, somente inserem resumos dos discursos, pareceres, sentenças, votos, etc. Mas o Processo n.º 298 que trata do processo de canonização do Venerável Frei Bartolomeu dos Mártires traz a este respeito uma página interessante: ‘Chegado ao Concílio de Trento empregou toda a força e energia da eloquência para que em primeiro lugar se tratasse de reformar as pessoas eclesiásticas e não obstante encontrar muitos contrários à sua ideia, tanto soube dizer, aconselhar e pedir em público e em particular que finalmente obteve que se começasse a discorrer sobre este ponto e, numa das sessões, quando lhe tocou dar o seu voto, fez uma invectiva contra o fausto e a vaidade em que viviam muitos prelados e outros eclesiásticos, censurando com fervor apostólico que se proibisse tal costume com o título e o pretexto de tornar por este meio mais respeitável a dignidade e provando com razões e exemplos ser muito maior a autoridade e o respeito que aos prelados e ministros da Igreja’. E a transcrição prossegue, citando textualmente o desejo da tal eminentíssima reforma, a que acima se faz referência, como tendo sido efectivamente proferido em pleno Concílio.

Num parecer que em 13 de Setembro de 1563 deu ao exame dos 21 cânones da reforma geral pode ler-se:

«Ponha-se um capitulo especial acerca dos cardeais e diga-se que eles devem ser os primeiros clérigos do orbe, excelentíssimos pela santidade e doutrina e faça-se a reforma segundo esta sentença. Diga-se que sejam escolhidos entre os bispos que são famosos em ciência e santidade que não necessitem de exame; mas quando tais não se encontrem, faça-se um exame diligente».

«Ponha-se uma pena aos arcebispos que não reúnem concílios provinciais». (José de Castro, Idem, pag. 181).

O Arcebispo não se ficou em palavras mas entregou-se, corajosamente, a reformar a sua Diocese, aplicando as orientações do Concílio, para o que teve de vencer grandes resistências. Mas, diz Fr. Luís de Sousa, como «estava persuadido que o negócio lhe tocava na alma, respondeu com poucas palavras e desassombradamente, que nunca Deus quisesse que por temores do mundo deixasse de fazer o que a sua consciência lhe ditava».

Com esse objectivo convocou para 11 de Novembro de 1564 um sínodo Diocesano, que reuniu na Catedral e terminou no dia 14 com deliberações de que discordaram o Cabido e parte do Clero.

Reuniu em 8 de Setembro de 1566 o IV Concilio Provincial de Braga (nessa altura eram sufragâneos de Baga os bispados de Coimbra, Porto, Viseu e Miranda), onde foram tratados assuntos respeitantes à reforma dos costumes e ao melhor serviço e governo da Igreja. As sessões tiveram lugar em 8 de Setembro de 1566, nos dias 16, 20 e 25 de Março e 10 de Abril de 1567 e cuja nulidade foi deduzida pelos procuradores do Cabido de Braga. Em causa estavam assuntos como a visita das igrejas e capelas da Cidade; a visita das igrejas unidas à Mesa capitular; os livros e autos dessas visitas; o terço de todos os mantimentos que se vendiam na cidade; a Fábrica das igrejas unidas à Mesa capitular; a residência dos Cónegos nos benefícios curados, anexos às suas prebendas; as distribuições quotidianas dos Cónegos homiziados ou encarcerados; as contas da administração das capelas de D. Gonçalo Pereira, D. Lourenço Vicente, D. Diogo de Sousa e D. Fr. Baltasar Limpo; a apresentação, colação e provisão dos vigários das igrejas do Cabido.

Roma apoiou sempre o arcebispo e os diferendos vieram a ter soluções amigáveis.

Dando também sequência ao capítulo XVIII da sessão 23 do Concílio de rento, que mandava estabelecer nas sedes das dioceses seminários para a formação dos eclesiásticos, foi construído o Seminário de Braga, como já vimos.

Os bispos do Concílio Provincial decidiram fundar os Seminários.

Nas suas corridas apostólicas, conta o P. José de Castro (ob. cit., vol. III, pag. 345), encontrou igrejas pobres e sem culto, dadas em comenda aos Cavaleiros da Ordem de Malta e da Ordem de Cristo. Sequestrou-lhes os frutos das comendas, dotou-as com o necessário, e em algumas pôs párocos e coadjutores, sem consideração pelos privilégios locais ou pessoais.

Imaginam-se as consequências: iras, censuras, apelos aos tribunais, sendo os piores os da Ordem de Malta, e de um modo especial o Visconde de Ponte de Lima que, tendo o seu feudo dentro dos limites da diocese de Braga, teve com ele uma terrível controvérsia. Mas por fim o Visconde foi conquistado pelo zelo apostólico do Santo Arcebispo.

10. 8. Servo da Palavra

D. Frei Bartolomeu dos Mártires dedicou à pregação todo o tempo que pôde, como disse já a propósito da sua actividade evangelizadora.

Quando recolhido ao convento de Viana, «começou a continuar o ofício da pregação pelos lugarinhos do redor (...), como se saíra estudante moço e fresco do colégio e começara então a fazer exercício do púlpito e desbastar-se. E não passava domingo nem festa que deixasse de ir a uma e mais léguas de distância». Entendia que «não se jubilava na obrigação de servir os próximos, enquanto havia forças e que pois vencia e levava pensão e podia andar a pé, ainda que cercado de indisposições, estava obrigado a servir».

Eram as palavras do Arcebispo em todo o tempo chãs e singelas, comenta Frei Luís de Sousa, mas sabia-as propor com um termo tão grave que lhes dava alma e uma certa força que obrigava e persuadia e sujeitava.

O seu estilo de pregar era mui diferente do que usava na Corte. Deixou flores de retórica, explicações agudas e conceitos levantados e entregou-se todo a termos chãos e doutrina clara que servisse para todos.

Nas visitas pastorais pregava doutrina acomodada à necessidade e capacidade dos ouvintes que achava.

10. 9. Caridade

Uma das grandes virtudes praticadas por D. Fr. Bartolomeu dos Mártires foi a da Caridade, sobretudo para com os pobre e os doentes.

Como Prior do Convento de Benfica, escreve Fr. Luís de Sousa, «pelo temporal do Convento matava-se pouco ainda que não tinha descuido. Mas, persuadido e confiado que não podia Deus faltar a quem de verdade o servisse, conforme suas divinas promessas, não fazia diligência por adquirir renda nem acrescentar a que a casa tinha e do que havia de portas adentro era tão liberal que lhe aconteceu tempo de fome, acudindo muitos pobres a portaria, mandar repartir por eles o peixe que estava guisado e prestes para o jantar da comunidade, dizendo que, em tempo de necessidade, para religiosos que professavam a pobreza, bastavam ervas e frutas e que, se eles fossem verdadeiros filhos de S. Domingos em obras e exemplo, isto bastaria para os seculares se desentranharem por lhes acudir».

À mesa, a primeira coisa que fazia era separar logo metade para os pobres, fazendo de conta que, quando se sentava, tinha Cristo por convidado.

Nas visitas que fazia, ia tomando «estreita e miúda informação» das necessidades mais precisas que havia em cada lugar e os nomes dos necessitados, mandando-lhes depois roupas e outra ajudas.

Na Cidade, conta Fr. Luís de Sousa, «mandou tomar a rol todo o género de pobres, assim das portas, como envergonhados e viúvas e donzelas honradas, com tanta diligência que não havia necessidade tão encoberta que andasse fora de seus memoriais. E porque receava ficar-lhe alguma por remediar, como se fora algum grande delito, encomendava a pessoas de confiança e virtuosas que com todo o resguardo e cuidado procurassem saber se havia gente que antes quisesse padecer que manifestar-se e logo lhe dessem aviso para não lhe escapar o socorro. E ele por outra parte, com o mesmo segredo, se informava se viviam virtuosamente. E como achava necessidade e virtude, logo entravam no rol e conforme à qualidade e família lhe taxava a quantidade que haviam de haver de seu esmoler, de pão, carne e peixe, azeite e vinagre para cada semana E o pão mandava dar em grão e aos de mais qualidade ajuntava quantia certa de dinheiro e alguns alqueires de pão na entrada de cada mês. E a todos se acudia com tanta pontualidade, que nem no dia limitado havia falta nem na taxa alteração.

Estes eram providos todos de vestido e às mulheres mandava dar mantas para não faltarem em ir à igreja. A muitos que moravam em casas alugadas mandava pagar os alugueres.

A esmola da porta que se dava a todos os pobres que a ela vinham, era quartas e sextas-feiras e era em dinheiro e achava-se que passavam de mil pessoas, as que de ordinário vinham a ela em cada um destes dias. Afora esta esmola costumava o Arcebispo dar de sua mão outra a todos quantos lha pediam sem excepção de pessoa e para isso trazia na algibeira quantidade de vinténs em prata, que outra moeda nenhuma conhecia nem lhe sabia a valia. »

Nas visitas pastorais, além de pregar e crismar, reunia também com os pobres, e «a uns acudia com dinheiro na mão para remediarem suas necessidades logo, a outros tomava em rol para os mandar vestir».

Praticava também a hospitalidade. Costumava dizer que «em sua casa só ele era o estranho e os pobres eram os verdadeiros e naturais senhores dela».

Em tempos de maior carestia, como aconteceu na «esterilidade apertada» de 1567 e anos que se lhe seguiram, «mandou suspender os pagamentos e consignações de dinheiro que dava de suas rendas para a fábrica do Colégio da Companhia, e do seu Convento de Viana, dizendo que convinha acudir às paredes vivas com as rendas pontificais, rendas mais propriamente dos pobres que do Prelado». Chegavam a juntar-se à porta do Paço, para receber esmola, muito pouco menos de três mil pessoas, e a todos mandava o Arcebispo dar de comer cada dia. «À noite tinham suas esmolas, que as vinham buscar muitos homens nobres disfarçados, que dando-se a conhecer ao Padre frei João de Leiria, recebiam cada um com segredo e decoro a quantidade de pão que haviam mister para as suas famílias».

Em carta endereçada de Trento a Frei João de Leiria recomendava: «Digo que quanto Vossa Reverência recebeu o ano de 1561, eu não quero mais que os dois mil cruzados que comigo trouxe; e todo o mais minha vontade é que nada se entesoure, mas que tudo se gaste em obras pias, em casamento de órfãs assim na cidade como nas câmaras: e nos vestidos dos pobres, e nos estudantes, e doentes, e outras minhas esmolas». E mais adiante: «Bem suspeito que Vossa Reverência se enfastiará de tanto lhe repetir a diligência com os pobres, mas nisto me há-de perdoar é meu ofício, sou dispenseiro da fazenda dos pobres. Não a herdei, não a ganhei; queria-se repartir como manda seu Senhor. E porque não convém encobrir nada a Vossa Reverência, saiba que todas as novas que vêm de Braga são boas, tirando acerca dos pobres que vai a coisa mui apertada para eles» (José de Castro, ob. cit. Volume IV, pag. 206-208).

Já em Viana do Castelo, deu a própria cama a uma pobre velha, passando a dormir sem ela.

Uma vez deu o colchão a um pobre e um cobertor a outro.

Para tesoureiros do dinheiro buscou os mais afeiçoados aos pobres e a fazer esmolas.

Tendo conhecimento de que em Fevereiro de 1570 a peste iniciada em Portugal dois anos antes tinha invadido a Cidade, o Arcebispo, que andava em visita pastoral, regressou imediatamente a Braga, a fim de prestar assistência aos doentes, não obstante o risco do contágio.

Mandou levantar na Devesa, além da ponte de Guimarães, um hospital para recolher e curar os doentes com o pessoal médico e de enfermagem necessário. Ele mesmo visitava todos os enfermos. Fez guardar com rigorosa vigilância as portas da Cidade. Ordenou fossem feitas fogueiras em todas as praças e ruas e mandou que se limpasse a Cidade de todas as imundícies.

Memórias desta epidemia são, ainda hoje, uma inscrição no cruzeiro de S. João da Ponte, e o «caixão do rolo», existente na capela de S. Sebastião das Carvalheiras, a recordar o suposto voto da Câmara feito nesta ocasião e em nome do povo de, se o mal cessasse, ir todos os anos em procissão à capela do Santo, fazendo primeiro a volta à Cidade com um rolo de cera, da medida exacta da sua circunferência, o qual havia de arder no templo enquanto durasse a festa.

Condoído com a pobreza em que encontrou os moradores da serra da Gávia, autorizou-os a dormirem na igreja, «pondo-lhes preceito que pagassem a pousada com silêncio inviolável», pela grande veneração que tinha ao Santíssimo Sacramento.

Foi voto seu, conta Frei Luís de Sousa, quando se achou no Concílio de Trento e nele com veemência instou, que se decretasse que todo o Prelado, depois de tomar de suas rendas o necessário para uma côngrua e decente sustentação de sua pessoa e casa e oficiais, tudo o mais depositasse no tesouro de sua Sé, aplicado logo como património que era de Cristo, para sustentação de pobres e daí se repartisse por eles.

«Obrigava, diz também aquele Biógrafo, a estudar os filhos dos homens pobres e honrados da cidade de Braga para depois lhes sustentar a casa com mais abundância, porque enquanto eram moços assinalava-lhes ração de comida e vestido e quando maiores, se continuavam o estudo e davam boa conta de si em vida e costumes, provia-os nos benefícios de sua apresentação, com que ficavam ricos e remediados pais e filhos e toda a família».

Adoecendo qualquer capelão ou outro criado seu, não só fazia diligência que fosse bem curado e provido de todo o necessário, mas ele em pessoa o visitava em cada dia.

10. 10. Patriotismo

Houve quem, por ocasião da crise política de 1580, pusesse em dúvida o patriotismo do Arcebispo. Os partidários do Prior do Crato não gostaram do seu comportamento. Não parece, no entanto, que tenha sido partidário de Filipe II, que aceitou a sua renúncia ao Arcebispado com tanta facilidade.

Sobre este tema pode ler-se a citada obra do P. José de Castro, vol. I, pag. 55sgs. Em sua opinião «é efectivamente uma grande injúria pensar que o santo Arcebispo e Senhor de Braga fora pela candidatura de Filipe II (Idem, pag. 67).

Bibliografia

Castro, P. José de, Portugal no Concílio de Trento, volumes III, IV, V e VI. Ed. União Gráfica, Lisboa, 1944. No vol. VI, pag. 401-409) apresenta uma extensa bibliografia sobre D. Frei Bartolomeu dos Mártires. Também no vol. VI, pag.411-426, publica-se uma relaçao das obras de D. Frei Bartolomeu dos Martires.
Ferreira, Mons. J. Augusto, Fastos Episcopais da Igreja Primacial de Braga, tomo III, 1932, pag. 7-62.
Idem, História Abreviada do Seminário Conciliar de Braga e das Escolas Eclesiásticas Precedentes, Braga, 1937.
Nogueira. D. Eurico, Bartolomeu dos Mártires: porquê só agora beato?, «Diário do Minho», 26 de Julho de 2001
Sousa, Frei Luís de, O.P. Vida do Arcebispo D. Frei Bartolomeu dos Mártires, ed. da Empresa do Diário do Minho, L.da, Braga, 1946.

Monsenhor Silva Araújo

 

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