UMA GRANDE CRISE, SINTOMAS DE MORTE
― Em fins de Abril de 1937, passei por uma
grande crise que me levou às portas da
morte.
Principiei a vomitar de dia e de noite, nada conservando no estômago. Nos
primeiros dias, fiquei em profunda prostração. Não conhecia as pessoas, não
tinha fome, nem sede. O Sr. Abade leu-me as orações da agonia por três vezes.
Não me lembro senão de uma vez de poucas palavras. Ouvia gritos, mas não pensava
que morria, porque o meu estado físico assim o permitia.
Havia talvez um ano que recebia diariamente
Nosso Senhor, pois até aí recebia-O raras vezes no mês, o que me fazia sofrer
muito e sentir muitas saudades de Jesus. Não sei o que foi, mas talvez um
milagre, que levou o Sr. Abade a trazer-me Nosso Senhor todos os dias. Eu pedia
a Jesus esta graça e tinha quem a pedisse muito por mim. Foi uma das minhas
maiores alegrias alimentar-me do Pão dos Anjos todas as manhãs.
Neste período da minha doença – não sei se de
manhã se de tarde – vi entrar no quarto o Sr. Abade e, conhecendo-o, disse-lhe:
«Eu quero receber Nosso Senhor.» Ele respondeu-me: «Sim, minha menina, vou
buscar-te uma hóstia por consagrar e, se a não vomitares, trago-te Nosso
Senhor.» Assim o fez. Logo que engoli a hóstia por consagrar, imediatamente a
vomitei. Sua Reverência estava para desistir em me trazer Nosso Senhor, e alguém
disse: «Sr. Abade, uma hóstia por consagrar não é Jesus.» Foi então que se
resolveu a ir buscar uma consagrada. Recebi-a e não vomitei. Nunca mais deixei
de receber Jesus Sacramentado por causa desses vómitos. Quantas vezes entrava o
Senhor Abade no meu quarto para me dar Nosso Senhor, e eu a vomitar! Logo que
recebia Jesus, cessavam os vómitos, nunca vomitando antes de passar meia hora.
Como era assim, o Senhor Abade nunca temeu em me dar a comunhão. A crise durou
bastante tempo, mas, durante dezassete dias, estive sem tomar nada,
absolutamente nada. A minha medicina foi Jesus.
Eu dizia: «Morro à fome e à sede», pois
sentia uma sede abrasadora e uma necessidade de comer muito grande. A minha
maior pena depois que me senti melhorzinha era lembrando-me que, se tivesse
morrido durante aquela crise, não teria tido perfeito conhecimento da morte.
A PROTECÇÃO DESVELADA DE JESUS E DA MÃEZINHA
― Durante o mês de Maio, ficava sozinha e,
para fazer as minhas rezas, acendia umas velinhas com um acendedor. Uma vez
aconteceu de cair um morrão e incendiar a vela, fazendo grande labareda, podendo
incendiar as toalhas do altarzinho ou estalar a redoma. Quis apagar com um
apagador que tinha junto de mim, mas nada consegui; quando estava para deitar o
castiçal ao chão, tudo se apagou. Não quero pensar na aflição que senti por não
poder levantar-me e pôr termo a uma pequena coisa que podia ser a causa da ruína
da nossa casa.
Um dia em que houve necessidade de ficar
sozinha por algum tempo, sofri um grande susto. Veio junto de mim ma vizinha
saber se eu precisava de alguma coisa. Ao retirar-se, deixou a aporta da varanda
aberta e, pouco depois, entrava pela nossa casa uma cabrinha que tínhamos e
encaminhava-se para a sala onde tínhamos os vasos de begónias e avencas muito
floridos e viçosos. Com eles adornavam-se os altares da nossa igreja por ocasião
das festas. Ao vê-la dirigir-se para lá, chamei-a, e ela, olhando para mim, não
fez caso. Atirei-lhe uns bocadinhos de maçã, mas não os comeu. Fui-lhe mostrando
a maçã e chamando por ela até que se aproximou de mim. Agarrei-a e dei-lhe a
maçã e fui sustentando nela duas horas, ora fazendo-lhe mimos, ora dando-lhe
sapatadas. Quando minha irmã chegou, ficou admirada como, na minha cama, pude
segurar o animal tanto tempo. Atribuo isto a um milagre, pois a porta da sala
estava aberta e, se a cabrinha não (sic) comesse, estragaria tudo. Quanto
devo a Jesus! Estava presa no leito, mas Ele poupou-me este desgosto.
Pouco tempo depois, sofri outro, mais
doloroso. Minha irmã estava apara fora da terra e minha mãe fora ao mercado da
terra e eu fiquei com uma pequena, à ordem da minha mãe, para me servir, até que
esta chegasse da feira. A pequena, apesar de ter mais de vinte anos, entendeu
que devia ausentar-se antes de minha mãe chegar e assim o fez. Quando ela saiu,
falei-lhe assim: «Querendo ir, vai, que elas encontrar-me-ão aqui viva ou
morta.»
Logo que ela saiu, vieram para junto de mim
uns gatinhos fazerem-me festa, levantando as patinhas no ar para lhe dar a minha
mão e puseram-se em cima da minha cama. Mas, como os não quisesse ali, sacudi-os
e foram para o chão. Mementos depois, senti que um deles caiu à água e morreu
afogado. Ouvi-o lutar com a morte na água e miava muito. A mãe dele miava
também. E eu, que não tinha coragem para ouvir tudo aquilo, principiei a chorar
e dizia: «Ó Mãezinha, permiti que venha aqui alguém para lhes acudir. Valei-me,
Jesus, Santa Teresinha e vários santos!» Também dizia: «Coitadinho de quem está
presinho!»
Por acaso, vieram duas pessoas e, ao ouvirem
os meus soluços, entraram no meu quarto e ficaram pesarosas ao verem a minha
aflição. O gatinho estava morto. Não me impacientei. Chorava com pena dos
animaizinhos, mas não ofendi Jesus. Este caso foi origem de grandes aflições
morais, porque minha mãe e minha irmã não levaram a bem o procedimento da
pequena. Tudo lhe perdoaram, e eu perdoei também.
Como gostava de ficar sozinha – e
principalmente aos domingos, quando havia adoração ao Santíssimo sacramento –
dizia a todos os meus que fossem e que me deixassem a sós com Jesus. Pouco
depois de todos saírem, pus-me a orar e ouvi alguém abrir a porta da rua, subir
as escadinhas, mas, já falando muito alto, dizia: «Abre-me a porta.» Pela voz
conheci a pessoa. Fiquei muito assustada. Ai, que seria de mim se ele
conseguisse entrar! Apertei nas minhas mãos o meu tercinho com toda a confiança,
enquanto a pessoa continuava a empurrar a porta com toda a força. Pensava na
forma como havia de falar e, assustada, nem sequer podia respirar. Como não
conseguiu abrir a porta, retirou-se, deixando-me em paz. Fiquei tão cheia de
medo que não mais tornei a ficar sozinha, a não ser que me fechassem à chave.
Atribuí esta graça a Jesus e à Mãezinha, que
me livraram daquela má companhia, pois antes me queria ver acompanhada pelos
demónios do inferno.
PRIMEIRO EXAME DA SANTA SÉ
― Em 1 de Maio de 1937, recebi a vista de
Rev.mo o Padre Durão. Vinha mandado da
Santa
Sé para examinar o caso da consagração do Mundo a Nossa Senhora. O meu desejo
era viver ocultamente, sem que ninguém soubesse o que se passou. Sua Reverência
entregou à minha irmã um cartão do meu Director espiritual e disse-lhe que mo
lesse. Ao ouvir as palavras do cartão que eram assim «Vai aí o Sr. Padre Durão;
fale-lhe à vontade e responda-lhe a tudo o que lhe perguntar», fiquei admirada e
disse para a minha irmã: «Que hei-de eu dizer-lhe?» Não sabia que era preciso
estes exames para casos destes. Minha irmã animou-me e disse-me: «Dirás o que
Nosso Senhor te inspirar.»
Fiquei surpreendida quando me fez perguntas
das coisas de Nosso Senhor, mas, sem a mais pequena hesitação, comecei a
responder às suas perguntas. Sua Reverência disse-me que só queria que lhe
dissesse o principal, pois não me queria cansar, visto ser grave o meu estado.
Respondi-lhe que não sabia que era o principal. Sua Reverência disse-me: «Gosto
disso, gosto disso.» E foi quando me falou da consagração do mundo a Nossa
Senhora. Depois de me fazer várias perguntas, com muito bom modo, disse-me: «Não
se enganará?» Ao ouvir estas palavras, passou-me pela mente o engano da minha
morte e pensei assim: «Isto é contra mim, vou já dizê-lo.» Então respondi:
«Enganei…» E contei-lhe o que se tinha passado na Festa da Santíssima Trindade
de 1936. Sua Reverência não mais me disse se estaria enganada, e falou assim:
«Estas coisas custam muito, não custam?» Respondi: «Custam e fico triste.» E
comecei a chorar. Sua Reverência pediu-me para o não esquecer nas minhas orações
e prometeu-me nunca me esquecer no Santo Sacrifício da Missa.
Ajoelhou-se, rezou três Ave-Marias a Nossa
Senhora e algumas jaculatórias. Despediu-se de mim e retirou-se. Chorei muito e
fiquei muito atribulada e triste por se saber o que há tanto tempo de passava
ocultamente. Escrevi logo ao meu Director espiritual, contando-lhe tudo. Sua
Reverência respondeu-me imediatamente sossegando-me e dizendo que era tudo para
glória de Nosso Senhor.
PERÍODO EM QUE O DEMÓNIO MAIS ME APOQUENTOU
― Se a vida material melhorou nesta altura,
redobraram os assaltos do demónio que há
meses
me vinha ameaçando. Foi em Julho de 1937 que o «manquinho», não satisfeito de me
atormentar a consciência e de me dizer coisas demasiadamente feias, principiou a
atirar-me abaixo da cama e de noite e a qualquer hora do dia.
A princípio, até para as pessoas da casa fui
encobrindo, menos para a minha irmã, passando por ser aflições do coração. A
pouco e pouco, o mal foi aumentando e teve que o saber minha mãe e uma pessoa
que vivia connosco. Quem observava os tombos que eu dava abaixo da cama
mostravam-se muito pesarosos, não supondo nada do que se tratava. Passavam-se os
dias e o mal aumentava sempre. Uma noite atirou-me para o chão, passando por
cima da cama de minha irmã, que ficava junto de mim. Ela levantou-se, pegando em
mim ao colo, e dizia: «Anda para a tua caminha.» Mal ela me deitou, levantei-me
rapidamente e dei uns assobios. Reconhecendo imediatamente o mal que tinha
feito, principiei a chorar e disse para minha irmã: «Ai, o que eu fiz!» Ela
sossegou-me, dizendo: «Não te aflijas, que não foste tu.» Na noite seguinte,
voltou a acontecer o mesmo, e disse-lhe em voz alta: «Não me deito» –
afastando-a de mim. Quando reconhecia que fazia mal, chorava.
Uma noite em que passei com o mafarrico as
coisas piores que se podiam imaginar, o que tudo desconhecia e ignorava, chorava
amargamente e pensava não receber o meu Jesus sem me confessar. Nesse dia, o Sr.
Abade não estava na freguesia para vir trazer Nosso Senhor, mas pensava quanto
me custaria ter de dizer que não comungava sem me reconciliar, com receio que o
Sr. Abade me perguntasse a causa, e ter de lhe dizer tudo, tudo, e não querer
abrir-me com ele. Minha irmã, ao ver as minhas lágrimas, procurava consolar-me
por todas as formas. Como não conseguisse, disse-me que à tarde iria falar com o
meu Director espiritual que se encontrava a fazer uma pregação numa freguesia
vizinha da nossa. Disse-lhe que nada adiantava, pois não lhe diria a ele o que
se tinha passado. Pedi-lhe um postal de Nossa Senhora e, com grande sacrifício,
descrevi por maior o sucedido, guardando-o debaixo do travesseiro até que
chegasse a hora de o ir entregar. De repente, entrou no meu quarto o meu
Director, acompanhado por um seminarista, trazendo-me Jesus-Hóstia para eu
receber. Como soubesse que estava para banhos o nosso pároco, teve a boa
lembrança de me vir trazer Jesus. Quando Sua Reverência me disse que trazia
Nosso Senhor para receber, respondi-lhe: «Não posso comungar sem me confessar.»
As lágrimas e a vergonha não me deixavam
falar. Com muito custo disse que tinha escrito um postal e que o guardava sob o
travesseiro. O meu Director tomou-o, leu-o e tudo compreendeu, sossegando-me e
dizendo-me que tudo previa em face de tudo quanto se tinha passado, mas não me
tinha prevenido de nada.
Foi tremenda esta tribulação, que se repetiu
por várias vezes. Tinha ataques muito furiosos duas vezes por dia, pelas nove ou
dez horas da noite e depois do meio-dia, durante cerca de uma hora ou mais.
Durante os ataques, sentia em mim toda a raiva e furor do inferno. Não podia
consentir que me falassem de Nosso Senhor e na Mãezinha, nem podia ver as Suas
imagens, cuspindo-as e calcando-as aos pés. Também não podia consentir junto de
mim o meu Director; chamava-lhe nomes, queria espancá-lo e tinha-lhe uma raiva
de morte, assim como a algumas pessoas da casa. Ficava com o meu corpo
denegrecido com as pancadas e a escorrer sangue com as mordeduras. Também dizia
palavras muito feias para quem estava junto de mim. Hoje gostava que muita gente
presenciasse só para temerem o inferno e não ofenderem a Jesus.
Depois que passava a influência do demónio e
recordava o que tinha feito e dito, sentia horrorosos escrúpulos; parecia-me ser
a maior criminosa. Foram meses de doloroso martírio. Muito mais tinha que dizer
sobre este assunto, mas não posso. A minha alma não resiste ao relembrar tais
sofrimentos.
JESUS MOSTRANDO-ME AS SUAS DIVINAS CHAGAS
― Uma noite, apareceu-me Jesus em tamanho
natural, despido, apenas com uma faixa à cinta
e nas
suas divinas mãos, pés e lado, estavam abertas profundas chagas. O sangue
escorria em abundância. Da chaga do lado escorria até à cintura, atravessando a
faixa, indo cair ao chão. Jesus sentou-se ao meu lado, ficando com as pernas ao
dependuro. Beijei com muito amor as chagas das mãos e ansiava por beijar as dos
pés. Como estava deitada, não lhes chegava, e nada disse a Jesus. Mas Ele, que
conheceu os meus desejos, com as Suas mãos tomou um pé, levantou-o e deu-mo a
beijar; depois o outro, deixando-os cair para a mesma posição. Depois,
contemplei a chaga do lado e todo o sangue que dela corria. Muito compadecida,
atirei-me para os braços de Jesus e disse-Lhe: «Ó meu Jesus, quanto sofreste por
meu amor!» Fiquei um poucochinho encostada ao peito de Jesus e depois
desapareceu-me Nosso Senhor.
Escusado será dizer que jamais se apagará da
minha mente tudo isto e recordarei sempre, como sempre me estivesse presente.
Sinto o meu coração ferido ao recordar este quadro. Só por obediência e amor a
Jesus falo nisto. Penso que a apresentação de Nosso Senhor neste estado seria a
prepara-me para o que agora vou descrever. Que Ele me dê forças e a Sua graça
para o poder fazer.
Em 23 de Julho de 1938, escrevia: «Jesus é a
minha força, é o meu amor, é o meu esposo. Deixai, meu Jesus, que eu, a Vossa a
louquinha de amor, Vos diga, não com os lábios mas com o coração: só a Vós
pertenço.
Não tenho nada, nada que não seja de Jesus.
É bem duro falar assim, quando se sente o
contrário! Nas horas mais amargas da minha vida, nos dias de tanta luta, em que
o demónio me diz o contrário, só o contrário.
Maldito! Não te pertenço! Tu és só digno de
desprezo! És a mentira!
Jesus é todo meu e eu sou toda de Jesus.
Coração meu, grita alto, muito alto ao teu Jesus, que O amas! Sim? Que O amas
mais que todas as coisas da terra e do Céu!!!
Sou de Jesus na alegria, sou de Jesus na
tristeza, sou de Jesus nas trevas, nas horríveis tribulações, na pobreza, no
abandono total.
Por Jesus sofro tudo para O contemplar, para
salvar as almas.
Enviai, Jesus à Vossa Alexandrina, à Vossa
vítima, tudo quanto se possa imaginar, tudo o que houver e que se possa chamar
sofrimento. Com Vós, Jesus, com o Vosso divino auxílio e o da Vossa e minha
querida Mãezinha, tudo venço. Nada temo.
Eu beijo-te, eu abraço-te, ó Cruz bendita do
meu Jesus!!!»
O MEU RETIRO ESPIRITUAL
― Sempre que ouvia falar em pessoas que iam
fazer um retiro, eu dizia: «Todos o fazem, só eu não! Eu não sei o que é um
retiro.»
Cheguei a dizer isto várias vezes na presença
do meu Director espiritual. Este prometeu-me pedir licença ao Sr. Padre
Provincial e, uma vez que ele o autorizasse, viria aqui fazer-me um. Por altos
desígnios de Deus, a licença foi concedida e, em 30 de Setembro de 1938, veio o
meu Padre espiritual principiá-lo.
Já há tempos que sentia grandes agonias na
minha há alma e por vezes prestes a cair em assustadores abismos. Nestes dias
redobraram os meus sofrimentos. Os abismos eram aterradores. A justiça do Pai
Eterno caía sobre mim e Ele bradava-me repetidas vezes: «Vingança, vingança,
etc.» Aumentavam os meus sofrimentos da alma e do corpo. É impossível
descrevê-los, só sentidos e presenciados. Passava os dias e as noites rolando
pela cama, a ouvir a voz assustadora do Eterno Pai.
Na manhã de 2 de Outubro de 1938, disse-me
Nosso Senhor que iria passar por toda a Paixão, do Horto ao Calvário, só não
chegaria ao «Consummatum est». Seria a primeira vez no dia 3 e depois ficaria a
passar pela Paixão todas as sextas-feiras, pouco depois do meio-dia, às 3 horas,
mas na primeira vez ficaria até às 6 horas, a desabafar comigo, fazendo-me os
Seus queixumes.
Não disse que não a Nosso Senhor. Preveni o
meu Director espiritual de tudo que Nosso Senhor me disse. Esperava o dia e a
hora com grande aflição, pois nem eu nem o meu Director fazíamos ideia do que se
ia passar. Na noite de 2 para 3 de Outubro, se era grande a agonia da alma,
também foi grande o sofrimento do meu corpo, começando a vomitar sangue e a
sentir dores horríveis. Vomitei bastantes dias seguidos e, durante cinco dias,
não tomei alimento algum. Foi neste sofrimento que eu fui para a primeira
crucifixão. Que horror eu sentia em mim! Que medo e até pavor!... É indizível a
minha aflição.
PRIMEIRA CRUCIFIXÃO
― Depois do meio-dia, veio Nosso Senhor
convidar-me assim: «Olha, minha filha, o Horto está pronto e o Gólgota também,
aceitas?»
Senti
que Nosso senhor me acompanhou por algum tempo no caminho do Calvário, depois
senti-me sozinha, vendo-O a Ele lá no alto, em tamanho natural, pregado na cruz.
Percorri todo o caminho do Calvário sem O perder de vista… era junto d’Ele que
eu tinha de ir parar.
Vi por duas vezes Santa Teresinha. Na
primeira vez, via vestida de freira, entre duas irmãs, à porta do Carmelo. Na
segunda, vi-a cercada de rosas e envolvida num manto celestial.
Nota –
Dado que a Alexandrina nunca se dispôs a descrever a Paixão,
transcrevemos a carta seguinte, em que descreve ao seu Director espiritual
os sentimentos da sua alma durante as horas que precediam a Paixão.
Balasar, 7/4/1939.
«Busco um bocadinho de alívio para o meu
sofrer. Espero a hora da minha crucifixão. Nem posso falar. O coração está em
marcha acelerada. É uma revolta, é uma barafunda na minha alma. O peso
esmaga-me. Trevas, noite medonha e triste; estou num abandono tremendo.
Figura-se-me que ando no meio de todo o ódio, de tribunal em tribunal. Pobre de
mim! E não recebi Jesus! Mas confio que Ele suprirá a falta nas Comunhões
espirituais, apesar do nojo que tenho de mim mesmo e horror à minha enorme
miséria.
Ontem a temperatura acalmou. Que horror eu
sentia! O meu corpo era-me trespassado todo, de um lado ao outro, com agudos
ferros. Que momentos tão terríveis! Apesar do bocadinho de alívio, fiquei sempre
numa noite escuríssima, numa tristeza profunda. A noite, passei-a, posso dizê-lo,
quase que toda a fazer companhia a Nosso Senhor Sacramentado e concentrava-me um
pouquinho em toda a tragédia da noite. Parecia que Jesus me convidava ao Horto.
Que movimento de gente! Mas tudo isto era sentido na minha alma.
Ai, meu padre, parece que tudo isto que estou
a dizer-lhe é mentira! Ai, tantas dúvidas!... Ai, ai os medos de toda a Paixão!
Já disse à Deolinda: do modo que sinto o coração, é preciso um milagre para eu
resistir. Jesus seja comigo! Não digo mais nada, que não posso.»
Aqui, interrompeu a
carta, porque logo se seguiu a Paixão. Sua irmã Deolinda assim no-la descreve:
«Ai, meu padre, o que foi o dia de
sexta-feira santa! É bem sexta-feira da Paixão! Antes de principiar, oh, como se
via nela cara de aflição! Ela temia passar este dia! E dizia-me: Ai, se eu vejo
este dia passado!... Eu confortava-a quanto podia e acariciava-a; apesar de eu
também estar cheia de medo e muito aflita.
Durante a Paixão, eu não podia passar sem
chorar e vi correr lágrimas pelas faces de quase todos os assistentes. Que
espectáculo tão comovedor! A agonia no Horto foi muito demorada e aflitiva…
Ouviam-se gemidos muito profundos e por vezes via-se soluçar. Mas a flagelação e
a coroação de espinhos é que foi! Os açoites forma tomados de joelhos, com as
mãos (como que) atadas. Eu cheguei-lhe uma almofada para debaixo dos joelhos e
ela retirou-se dela, não quis. Tem os joelhos em mísero estado. Os açoites não
tinham conta! Levaram tanto tempo! Ela desfalecia tanto! Os golpes na cabeça
(com a cana na coroa de espinhos) foram inumeráveis. Vomitou por duas vezes
durante a Paixão: era água, porque mais nada tinha que vomitar. O suor era tanto
que os cabelos estavam empastados e, ao passar-lhe a mão por cima de toda a
roupa, ficava molhada. Quando acabou a coroação de espinhos, ela parecia um
perfeito cadáver.
O Sr. Cónego Borlido veio assistir com mais
duas pessoas. Também veio o Sr. Dr. Almiro de Vasconcelos com a esposa e a irmã
D. Judite.»
Continua a Alexandrina:
Durante alguns dias foi doloroso todo o meu
sofrimento. Continuaram os vómitos de sangue e uma sede abrasadora, que não
havia água que me saciasse. Eu não podia beber, mas passava dias e noites
seguidas com a água a corre pela boca, não podendo engolir nenhuma. Cheguei a
cansar-me e a cansar as pessoas que me tratavam. Depois de passar muita e muita
água pela minha boca ainda exclamava: «Dai-me água, muita água, pipas de água!»
Parecia-me que estava a arder, nada havia que me saciasse.
Sentia uns cheiros horrorosos; não queria que
as pessoas se aproximassem de mim, porque todas e tudo me cheirava a cães
mortos. Davam-me violetas e perfumes a cheirar, mas tudo repelia, porque era
sempre o mesmo mau cheiro que me atormentava.
Não passei sem sentir mau paladar nos dias em
que me alimentava e, desde que comia, de tudo tinha nojos, porque tudo me sabia
aos maus cheiros que tinha.
Quanto não teria eu que dizer sobre isto, se
pudesse descrever tudo quanto sinto! Falta-me a coragem, pois custa-me tanto
lembrar estas coisas!...
DÚVIDAS E RECEIOS DE ENGANAR.
EXAMES DOS MÉDICOS E TEÓLOGOS
― Assim como iam aumentando as graças e
favores para comigo, assim cresciam também
as
dúvidas e receios de me enganar e enganar o meu Director espiritual, bem como
todos os que conviviam comigo. Crescia o meu martírio, momento para momento.
Tudo me aprecia falso e inventado só por mim. Meu Deus, que dor para o meu
coração! As trevas caíam sobre mim; não havia luz que me mostrasse o caminho.
Por mais que o meu Director me infundisse confiança, não havia quem me
confortasse. Contudo, entreguei-me nos braços de Jesus, confiada a não ser
arrastada pela corrente.
Sofria por ver as lágrimas em todos os que me
rodeavam e pensava: Meu Deus, se falta a coragem a eles, como não há-de
faltar-me a mim?
Que grande humilhação ter de ser observada!
Ah, se eu pudesse sofrer sozinha, sem que pessoa alguma me visse!... Bastava que
Jesus soubesse quanto por Ele sofria.
Logo na segunda crucifixão, principiaram os
exames feitos por uns Padres da Companhia de Jesus. Que vergonha eu sentia! Não
nas horas da crucifixão, mas antes e depois!...
Principiei a sentir que o meu Director
espiritual sofria muito no íntimo, por minha causa, isto é, por tudo o que se
passava.
Sucederam-se a estes os dos médicos, que
foram bem dolorosos, deixando o meu corpo em mísero estado. Parecia-me que
andava a ser julgada de tribunal em tribunal, como se tivesse praticado os
maiores crimes. Quanto me custava vê-los entrar no meu quarto e, depois de me
examinarem e observarem, vê-los reunir-se numa sala para discutirem e minha
causa, deixando-me sob o peso da maior humilhação.
Se não me engano, foi na terceira crucifixão
que vieram os médicos examinar o meu caso. É difícil e sei que não posso
descrever todo o meu sofrimento. Deixavam o meu corpo martirizado, mas outras
coisas havia que me custavam muito mais. A vergonha que me faziam passar! Triste
cena eu fazia diante deles! Nem a maior criminosa seria julgada num tribunal com
mais cuidado! Se pudesse abrir a minha alma e deixar ver o que nela se passa,
porque estou a reviver esses dias, fá-lo-ia só com o fim de fazer bem às almas,
mostrando quanto sofro por amor de Jesus e das almas. Foi só por isto que me
expus a tais sofrimentos.
Quando o meu Director espiritual me falou em
ser examinada pelos médicos, foi para mim um grande tormento, uma grande
barreira que se levantou em minha alma. Queria sofrer escondida, que só Jesus
soubesse do meu sofrimento. Mandava a obediência. Calei-me e tudo aceitei por
Jesus. Faltavam os médicos para completar o meu calvário. Alguns foram
verdadeiros algozes que no meu caminho encontrei.
Resolveram que fosse ao Porto. Custou-me
muito a convencer-me, devido ao estado em que me encontrava. Temia não poder
fazer a viagem e, ao convite do médico assistente, respondi-lhe: «Então o Sr.
Doutor, em 1928, não consentiu que eu fosse a Fátima e agora que eu tenho
piorado tanto quer que eu vá ao Porto?» Sua Exa. disse-me: «É verdade que não
consenti, mas agora queria que fosse.» Perguntei-lhe se o meu Director
espiritual sabia do caso e, como me afirmaram que sim, cedi ao pedido.
No dia 6 de Dezembro de 1938, pelas 11 horas,
fui tirada da minha cama para uma auto-maca. Naquela manhã, fui muito visitada
por pessoas amigas e em quase todas via lágrimas nos olhos, assim como nas
pessoas da minha família. Eu procurava alegrar a todos, fingindo que nada
sofria. Foi dolorosa a minha viagem, pois foram precisas três horas e meia para
chegar ao Porto. Parámos inúmeras vezes.
No Porto, no consultório do Sr. Dr. Roberto
de Carvalho, tirei a radiografia e por ele fui tratada com todo o caminho.
Disse-me assim: «Ai minha menina, quanto sofres!»
De lá fui transportada para o Colégio das
Filhas de Maria imaculada, onde me trataram muito bem. O que mais me custava era
sofrer os ruídos da rua, chegando por vezes quase a perder os sentidos. Lá, fui
examinada pelo Sr. Dr. Pessegueiro, exame este que só serviu para maior
sofrimento meu.
No regresso a casa, voltei a ter uma viagem
penosa. Quando me encontrei no meu quartinho, vi-me cercada de várias pessoas
amigas. Em 26 de Dezembro de 1938, fui visitada e examinada pelo Sr. Dr. Elísio
de Moura, que me tratou cruelmente, tentando sentar-me numa cadeira com toda a
violência. Como nada conseguisse, atirou-me ara cima da cama, fazendo várias
experiências que me fizeram sofrer horrivelmente. Tapou-me a boca, atirou-me
contra a parede, fazendo-me dar uma forte pancada. Vendo-me quase desmaiada,
disse-me: «Ó minha Joaninha, não percas os sentidos!».
Sem querer, chorei, mas todas as minhas
lágrimas ofereci a Jesus com os meus sofrimentos, que foram muitos, pois o que
digo nada é do muito que passei. Tudo lhe desculpei, porque ele vinha em missão
de estudo.
SEGUNDO EXAME DA SANTA SÉ
― Em 5 de Dezembro de 1939, recebi a visita
do nosso Sr. Abade, acompanhado pelo Ex.mo
e
Rev.mo Senhor Cónego Vilar que, depois de me ser apresentado, ficou a sós
comigo. Falámos de várias coisas de Nosso Senhor cerca de duas horas, para
depois entrarmos verdadeiramente no assunto que o trouxe aqui. Sua Reverência
disse-me assim: «A Alexandrina deve estranhar a minha visita, não me conhece…»
Sorri-me e respondi-lhe: «Eu sei com certeza
ao que V. Reverência vem aqui.» Ao que ele disse: «Diga, diga, Alexandrina.»
Então disse eu: «Vem de mando da Santa Sé», pois era o que eu sentia na minha
alma nesse momento. Sua Reverência confirmou, dizendo: «É isso mesmo.» E
apresentou os documentos que tinham vindo de Roma. Fez-me várias perguntas a que
respondi. Não falei da crucifixão, mas falou-me ele, dizendo: «Parece que há
mais qualquer coisa que se passa há meses…», apontando a Paixão, mostrando
desejo de vir assistir, como veio logo na primeira sexta-feira seguinte.
Falando disto ao meu Director espiritual,
este aconselhou-me a que lhe falasse com toda a franqueza. Visitou-me quatro
vezes, mas só duas foram obrigatórias. Se não me engano, logo da primeira vez
disse-me: «Olhe, Alexandrina, gostava de há muito a ter conhecido, mas não
queria ter vindo como vim.» Confiou-me o segredo da sua partida para Roma, pois
naquela ocasião só era sabedor o Sr. Arcebispo.
Como me sentia muito bem a conversar com ele
e como tinha toda a licença do meu Director espiritual, falámos muito, mesmo
muito de Jesus, porque sentia-me como que mergulhada num abismo de santidade e
sabedoria, o que raras vezes me acontece, mesmo com sacerdotes. Disse-lhe que
não falava assim com outros senhores Padres, porque não era feitio meu, mas sim
pela confiança que nele sentia. Sua Reverência respondeu-me: «Faz muito bem,
Alexandrina, em nada dizer porque, se lhes dissesse, eles não a compreenderiam.»
Chorei quando Sua Reverência se despediu de
mim na partida para Roma. Prometeu escrever-me de lá, dizendo-me que ficaria a
ser a sua intercessora na terra. Recebi algumas cartas dele em que mostrava ter
em mim inteira confiança. Respondi-lhe, e ajudámo-nos mutuamente com orações a
Nosso Senhor.
OPINIÕES DO POVO. NOVOS TORMENTOS
― Jesus ia-me pedindo mais sacrifícios. Com
os exames médicos e da Santa Sé, foi-se o caso tornando mais conhecido. Era um
martírio para mim! Queria viver escondida de todos!
Apesar de a minha família não me contar o que
a meu respeito diziam lá fora, muitas vezes sabia como comentavam a minha vida.
Coitadinhos dos ignorantes que tantas mentiras diziam! Afirmavam que a minha ida
ao Porto tinha sido para receber mensalmente uma tença (mensalidade) que o Sr.
Dr. Oliveira Salazar ficaria a mandar-me. Para uns era de 500$00, para outros de
300$00 e 200$00. Tanto valia desfazer as mentiras como nada. Eles ficavam sempre
na sua.
Outros diziam que fui tirar o «retrato de
santa», isto é, avaliar a minha santidade por meio de uma máquina. Minha irmã
disse (para desfazer essa ideia): «Se isso pudesse ser, também eu queria tirar
esse retrato para ver no ponto em que estava.»
Que pena tenho que as coisas do Senhor sejam
tão mal compreendidas!...
Outros então diziam que todos os senhores
Padres que me visitavam andavam a pedir esmolas por essas freguesias fora para
me darem, e portanto que não me faltava nada.
Diziam que eu talhava o ar, fazendo de mim
bruxa, que era corpo aberto; chegando várias pessoas a aproximar-se de mim para
fazerem várias perguntas, como se eu adivinhasse. Falavam-lhes muito
serenamente, fingindo não as compreender, mas, quando insistiam comigo,
respondia-lhes: «Eu não adivinho, nem ninguém adivinha. Nós não temos o direito
de penetrar nas consciências alheias. Isso é só para Nosso Senhor.»
Quando me contavam o que diziam a meu
respeito, eu fingia não sofrer, mas sofria amargamente e respondia: «Eles falam
de mim? É porque têm que dizer. Eu não tenho; deixai que falem para eles. Que
Nosso Senhor lhes perdoe, que eu também lhes perdoo. Falam, falam e falarão. Não
há quem os cale: uns contra mim, outros a favor de mim.»
E assim o tempo ia passando.
VISITA DE UM MÉDICO ENVIADO POR DEUS
― Em 29 de Janeiro de 1941, recebi a visita
dum Sr. Padre conhecido, acompanhado por
várias
pessoas da sua freguesia. Apresentou-mas na chegada, mas só depois de conversar
muito fiquei a saber que um deles era médico. Ao saber que tinha junto de mim um
médico, corei de vergonha, não por estar a mentir do que tinha falado do meu
sofrimento, mas por não o esperar aqui. Sua Excelência conservou-se calado e
sorridente. Não sei o que sentia intimamente por ele. Mal eu pensava que, dentro
em pouco, ele seria meu médico assistente.
Principiou a examinar-me minuciosamente, mas
com toda a prudência e carinho. Depois de feito o seu exame, achou conveniente
convidar o Sr. Dr. Abel Pacheco e o meu médico assistente naquela altura, que
vieram conferenciar a meu respeito. Fiquei muito triste, porque já estava cheia
de exames médicos, mas cedi, tendo sempre em vista a vontade de Nosso Senhor e o
bem das almas.
Foi no dia 1 de Maio do mesmo ano que fui
examinada pelo Sr. Dr. Abel Pacheco. O exame durou poucos minutos, contudo
causou-me grande sofrimento para o corpo e para a alma. No corpo, porque as suas
mãos pareciam de ferro, e na alma, porque já sentia humilhações e o resultado
daquele exame. Com tudo isto ainda estava longe do fim. Fui prevenida pelo Sr.
Dr. Dias de Azevedo que seria melhor voltar ao Porto, consultar o Sr. Dr. Gomes
de Araújo, se fosse essa a vontade de Nosso Senhor. Pediu-me que pedisse luz
divina sobre o caso, porque em nada queria contrariar Nosso Senhor.
Pedi durante um mês. Mas, quanta mais luz
pedia, mais em trevas ficava, tornando-se assim a dor da minha alma cada vez
mais profunda, não sabendo o que havia de fazer, até que Nosso Senhor me disse
que era da Sua divina vontade que fosse ao Porto.
O meu estado físico era gravíssimo, temiam
tirar-me do leito para tão longa viagem; até eu temia, e muito, pois se não
consentia que me tocassem no corpo, como havia de poder ir tão longe!... Animada
com as palavras de Nosso Senhor, confiava n’Ele e, sob a Sua acção divina,
preparei-me para sair na madrugada de 1 de Julho de 1941. Eram quatro horas da
manhã, já eu tinha feito as minhas orações e, para fingir que ia muito alegre,
principiei a chamar minha irmã, dizendo-lhe que íamos para a cidade. Só por este
meio escondia a minha dor e alegrava os meus. Quando dizia isto, senti o
automóvel que pouco depois chegava a nossa casa. Entrou no meu quarto o Sr. Dr.
Dias de Azevedo, acompanha por um senhor amigo. Depois de conversarmos um pouco,
minha irmã vestiu-se e preparámo-nos para sair. Às 4,50 partimos, era ainda de
noite, para não alarmar o povo, e saímos da nossa freguesia sem encontrar
ninguém.
Em que silêncio ia a minha alma! Mergulhada
num abismo de tristeza, mas sem me separa um momento da união íntima do meu
Jesus, ia-lhe pedindo sempre toda a coragem para o exame que ia ter; e pelo seu
divino amor e pelas almas oferecia todo o meu sacrifício. Chamava pela Mãezinha
e pelos santos e santas a quem mais amava. Não ligava importância a nada e tudo
o que se me deparava causava-me profunda tristeza. De vez em quando,
interrompiam o meu silêncio perguntando-me se ia bem. Agradecia, sem sair do
abismo em que ia mergulhada. Era já dia claro quando parámos em casa do senhor
que nos acompanhava, na Trofa. Era aí que eu ia descansar e receber o meu Jesus,
esperando pela hora de seguir para o Porto. Antes de continuar a minha viagem,
levaram-me ao jardim do Sr. Sampaio. Amparada e sob a mesma acção divina, fui
até junto de umas florinhas, que colhi, dizendo: «Quando Nosso Senhor criou
estas florinhas, já sabia que hoje as vinha aqui colher.» Depois, fui
fotografada em dois lugares escolhidos. Desloquei-me de um lugar para o outro
por meu pé, o que nunca pude fazer depois que acamei, pois nem sequer podia
voltar-me de lado, na cama. Só um milagre divino, porque sem ele não me mexia,
nem sequer consentia que me tocassem.
Depois, entrei no carro, segui a viagem, e a
minha alma sofria horrivelmente. À distância de seis quilómetros do Porto, Nosso
Senhor retirou a Sua acção divina. Principiei a sentir todos os sofrimentos do
meu corpo e tornou-se tormentosa o resto da viagem e disse, não por saber a
distância que faltava, mas o meu estado fez-me falar assim: «Já estamos perto do
Porto.» E alguém me disse: «Estamos, estamos.» Porque tinha visto que só
faltavam os 6 quilómetros a que me referi.
A ida de carro para o consultório foi o que
há de mais doloroso. No corpo, sentia o maior martírio, e na alma a maior
agonia, parecendo que morria.
Antes de entrar na sala de consultas, dizia
aos que me levavam nos braços: «Pousai-me, pousai-me, ainda que seja no chão!»
De repente, apareceu o médico e instalou-me numa cama de observações, e aí
estive até que fosse observada. Pouco antes de ir para a sala de consultas,
Nosso Senhor tirou-me a agonia da alma, deixando-me só os sofrimentos físicos.
Já podia resistir melhor.
Principiou o exame que foi muito doloroso e
demorado. Quando me despia, disseram-me que não me afligisse. E eu, recordando o
que fizeram a Nosso Senhor, disse: «Também despiram Jesus», não pensando em mais
nada. O Dr. Gomes de Araújo, apesar de me parecer um pouco brusco, foi prudente
e delicado.
De o regresso a casa, voltou Jesus a exercer
sobre mim as Sua acção divina para continuar a minha viagem, mas deu-me de novo
as agonias da alma. Ao passar em Ribeirão, fui descansar em casa do Sr. Dr. Dias
de Azevedo, a esperar pela noite, para poder entrar na freguesia sem ninguém
perceber.
Tanto numa casa como na outra, fui tratada
por todos com muito carinho, mas nada me confortava. Sorria a tudo, encobrindo o
mais possível a minha dor. Saí de lá já de noite, e tudo me convidava a um
silêncio cada vez mais profundo. Tudo me passava despercebido. Durante a viagem,
só reparei numas flores do jardim de Famalicão, porque me chamaram a atenção
para elas. Chegámos a casa era meia-noite e assim conseguimos que ninguém desse
pela minha saída.
Depois desta viagem, os sofrimentos
agravaram-se muito, muito. Tudo o que deveria sentir no dia da viagem guardou-me
Nosso Senhor para o dia seguinte, piorando sempre cada vez mais.
CARTA A NOSSA SENHORA
«Balasar, 30/4/1941
Querida Mãezinha
Ao principiar o Teu mês bendito, venho
pedir-Te a Tua bênção, o Teu amor, para eu poder amar o Teu e meu querido
Jesus. Quero amá-Lo tanto, tanto, quero ser uma louquinha de amor, quero só
viver e morrer de amor! Ajudai, minha querida Mãezinha, o Vosso Jesus a
imolar e sacrificar esta que quer dar o sangue e a vida pelas almas e pelo
Vosso Jesus. Dá-me, Mãezinha, a Tua pureza, a Tua humildade, a Tua
obediência; dá-me as tuas virtudes para que eu seja santa, para dar toda a
glória ao Teu Jesus para quem só quero viver.
Mãezinha, peço-Te esta esmolinha do Céu:
quero que o mês de Maio seja para mim o último que passo na terra. Quero ir
depressa gozar do Teu Jesus e da Tua companhia. Quero continuar junto de Ti
a implorar perdão e misericórdia para o mundo Teu. Tua filha a mais indigna,
pobre Alexandrina.
P.S. – Hei-de fazer cair uma chuva de
graças e de amor sobre aqueles e aquelas que na terra me são queridos.
Sempre a Tua filha, Alexandrina.» VISITA DO REVº PADRE TERÇAS.
CONSEQUÊNCIAS DESTA VISITA
― Em 27 de Agosto de 1941, recebi a visita do
Sr. Abade acompanhado pelo Sr. Padre Terças e outro sacerdote. Esta visita foi
para mim de grande desgosto, pois fiz o sacrifício de responder às perguntas que
o Sr. Padre Terças me fez diante de todos, o que me custou imenso. Respondi a
tudo conscientemente, porque prensava que viria em estudo como outros tinham
vindo. Só Nosso Senhor pode avaliar quanto me custou ter de falar do assunto da
Paixão, e foi sobre isto que mais me interrogou. O nosso Pároco disse-me que Sua
Reverência queria voltar aqui na próxima sexta-feira, dia 29. Não queria ceder
ao pedido sem consultar o meu Director espiritual, mas, como me disseram que se
tinha de retirar para Lisboa nos dias imediatos a este, consenti dizendo: «Eu
penso que Vossa Reverência não vem aqui por curiosidade.» Como me afirmasse que
não, cedi prontamente, embora me fizesse sofrer muito a sua visita na
sexta-feira. Sua Reverência não faltou, mas trouxe consigo mais três sacerdotes.
Mal eu pensava que esta visita vinha erguer para mim um novo calvário. Não levou
muito tempo que Sua Reverência publicasse o que observou e o que soube de mim.
Que Jesus tenha em conta a dor que me causou
aquela publicação, por saber que a minha vida foi publicada e os meus segredos
revelados, aquilo que tanto tempo escondi.
De vez em quando, chegavam-me aos ouvidos
vários comentários a meu respeito. Eram espinhos que me cravavam no peito, mesmo
sem as pessoas darem por isso. Eram variadas as impressões com que ficavam as
pessoas que liam o livro ou ouviam falar de mim.
A minha ida ao Porto e a publicação da minha
vida fizeram inquietar os espíritos dos Superiores do meu Director espiritual a
ponto de o proibirem de vir junto de mim e de me prestar a assistência religiosa
que necessito, assim como o proibiram também de me escrever e de receber as
minhas notícias.
Depois disto, principiei a viver de ilusões:
virá hoje o meu Director espiritual, virá amanhã? Vinham ao meu pensamento mil e
uma coisas. Impressionava-me por me lembrar que perdia o tempo em coisas
inúteis, mas não era capaz de desviar o meu espírito do que tanto me fazia
sofrer. Passava algumas horas persuadida de que tudo podia suceder como eu
pensava. Um dia, persuadi-me de que, apesar de não ser prevenida pelo meu
Director espiritual, este viria celebrar o Santo Sacrifício da Missa no meu
quartinho. Pensei: vem amanhã no comboio sem me prevenir. Principiei a ouvir o
comboio ao longe e, ao chegar ao apeadeiro, pareceu-me que o comboio teve lá
grande demora, motivada por desastre de que foi vítima o meu Director
espiritual, sendo apanhado por uma perna que lhe ficou logo cortada. Queriam
levá-lo para a Póvoa, mas, como Sua Reverência dissesse que vinha visitar-me,
pediu que o trouxessem à minha presença. Senti como se o visse entrar no meu
quarto nos braços de várias pessoas, quase moribundo. Uma das pessoas trazia a
perna na mão. Quando se me representou aquele quadro tanto ao vivo na minha
alma, senti como que me pusesse de joelhos diante de Nossa Senhora, exclamando:
«Ó Mãezinha, mostrai aqui o Vosso poder», que era o de colar a perna. Depois
disto, figurou-se-me que não tinha vindo à nossa casa e que o levavam para o
Hospital. Ao saber-se de tudo isto, senti que os seus irmãos em religião se
regozijavam e diziam: aqui está uma prova evidente de que Nosso Senhor não
queria que ele fosse junto dela.
Parecidas com estas ilusões tive mais, mas
não me fizeram sofrer tanto como esta.
A minha vida foi toda uma vida de sacrifício;
quase posso dizer que não sei o que é gozar, do que não sinto nenhuma pena.
Sinto-me no fim da vida e, se junto à pena de ter ofendido Nosso Senhor eu podia
juntar o gozo deste mundo, era um horror para mim. Só ter gozado o pecado, que
horror!
Anseio pela eternidade, porque só lá saberei
agradecer a Jesus o ter-me escolhido para viver esta vida de sacrifício,
ansiando só por amar Jesus e salvar as almas.
Sei bem que poucas almas me compreenderão,
mas uma só coisa me basta: Jesus tudo compreende.
O MEU ENTERRO
― Os meus desejos são que o meu enterro seja
pobrezinho. Quero que o meu caixão seja de forma a não ser muito bom, nem muito
fraco, para não chamar a atenção de ninguém. Quero ir vestida de branco, como
«Filha de Maria», mas muito modesta. Porém, sei que tenho um vestido muito bom,
melhor do que era minha vontade: ofereceram-mo e, como não tenho vontade
própria, por ser mais perfeito, aceito tudo o que me quiserem dar.
Se não for proibido pela Santa Igreja, quero
no meu caixão muitas flores. Não porque as mereça, mas sim porque as amo muito.
Se fosse por merecimento meu, nada tinha e nada levaria.
A minha vontade é ir para a terra, sem caixão
de chumbo. Também não quero ofício, porque minha mãe não tem posses para isso.
No trajecto do meu enterro, queria o máximo
recolhimento. Causa-me dó presenciar e ouvir a maneira como se fazem os
acompanhamentos fúnebres.
Não quero autópsia; basta o meu corpo em
exposição, enquanto viva, às consultas dos médicos.
A MINHA CAMPA
― Quero ser enterrada, se puder ser, de rosto
virado para o sacrário da nossa igreja. Assim
como na
vida anseio estar junto de Jesus Sacramentado e voltar-me para o sacrário as
mais vezes possíveis, quero depois da minha morte continuar a velar o meu
sacrário e manter-me voltada para ele. Sei que com os olhos do meu corpo não
vejo o meu Jesus, mas quero ficar assim para melhor provar o amor que tenho à
Divina Eucaristia.
Quero que a minha campa seja rodeada de
plantas chamadas martírios, para assim mostrar que os amei na vida e os amo
depois da morte. A entrelaçar com os martírios quero roseirinhas de trepar, mas
daquelas que têm muitos espinhos. Amo e amarei durante a vida os martírios que
Jesus me dá e os espinhos que me ferem e amá-los-ei depois da morte e quero-os
junto de mim, para mostrar que é com espinhos e com todos os martírios que nos
assemelhamos a Jesus, que consolamos o Seu Divino Coração e que salvamos as
almas, filhinhas de todo o Seu Sangue. Que maior prova de amor podemos dar a
Nosso Senhor senão sofrendo com alegria tudo o que é dor, desprezo e
humilhações?! Que maior alegria podemos dar ao Seu Divino Coração senão
dando-Lhe almas, muitas almas por quem Ele sofreu dando a vida?!
Quero também ao cimo da minha campa uma cruz,
e junto dela, uma imagem da querida Mãezinha. Se puder ser, gostava que uma
coroa de espinhos envolvesse a cruz. A cruz é para sinal que a levei durante a
vida e amei até à morte. A Mãezinha é para mostrar que foi Ela quem me ajudou a
subir o caminho doloroso do meu calvário, acompanhando-me até aos últimos
momentos da minha vida. Confio que assim será. Ela é Mãe, e como Mãe não me
deixará sozinha no último transe da minha vida.
Amo a Jesus, amo a Mãezinha, amo o
sofrimento, e só no Céu compreenderei o valor de toda a minha dor!!!
QUARENTA DIAS PASSADOS NA FOZ (1943)
― Para satisfazer os desejos e vontade do Sr.
Arcebispo Primaz, mais uma vez me sujeitei a uma nova conferência, que se
realizou no dia 27 de Maio deste ano. Quando me comunicaram isto, novo
sofrimento se apoderou do meu espírito, mas como visse em tudo só a vontade
santíssima de Deus, aceitei, como sempre, por obediência, pois o que mais me
custava era o ter de me sujeitar a mais um exame médico. Quando me disseram o
dia em que os médicos vinham, pedi com todo o amor à minha querida Mãe do Céu
que me desse a calma precisa para tudo suportar com coragem e resignação, pois
era por Jesus e pelas almas que a tudo me ia sujeitar.
No
dia combinado, compareceram o meu médico assistente, Sr. Dr. Manuel Augusto Dias
de Azevedo, o Sr. Dr. Henrique Gomes de Araújo e o Sr. Dr. Carlos Lima. Quando
chegaram junto de mim, eu encontrava-me na maior serenidade e calma. Nosso
Senhor tinha ouvido e acedido ao meu pedido! As primeiras palavras de um dos
médicos foram para saber se eu sofria e por quem oferecia esses sofrimentos; se
sofria contente e se ficaria satisfeita, se Nosso Senhor de um momento para o
outro me tirasse esses mesmos sofrimentos. Respondi que realmente sofria muito e
que oferecia todos estes grandes sofrimentos por amor de Nosso Senhor e para
conversão dos pecadores. Novamente me perguntaram qual era a minha maior
aspiração e eu respondi: «É o Céu!» Então disse-me se eu queria ser uma santa
como Santa Teresa, Santa Clara, etc., e subir às honras do altar, deixar nome
como esses grandes do mundo. «É o que menos me preocupa!»
Querendo tirar-me a confiança em Deus,
propôs-me o seguinte: Se para salvar os pecadores fosse necessário perder a
própria alma, que faria? «Eu tinha toda a confiança que no fim de salvar as
outras, a minha seria salva também; mas, se no fim perdesse a minha, então, não,
pois nem Nosso Senhor seria capaz e pedir uma coisa dessas... E ainda digo mais:
prometi a Nosso Senhor os meus olhos, que é o que tenho de mais querido no meu
corpo, se isso fosse necessário para converter Hitler, Staline e todos os outros
causadores da guerra.»
— E por que não come?
— Não como porque não posso, sinto-me cheia,
não tenho necessidade de comer, mas sinto saudade da comida.
Depois começaram a fazer o exame médico, que
eu suportei sempre bem disposta. Foi muito rigoroso, mas, ao mesmo tempo,
tiveram cuidado com o meu corpo.
No fim resolveram — visto eu não estar em
condições de fazer a viagem — mandar para cá duas religiosas para se
certificarem da veracidade de eu não me alimentar.
Quando eles se ausentaram, Nosso Senhor
fez-me sentir que a resolução que eles tinham tomado não ia ter realização e
fiquei à espera de notícias que me trouxessem nova maneira de pensar dos
médicos.
A 4 de Junho, veio cá o médico assistente,
juntamente com o meu confessor ordinário, comunicar-me a resolução dos médicos e
convencer-me, e à minha família, para eu ir para o Refúgio da Paralisia
Infantil, num quarto particular, estar lá um mês, para verificarem, mais de
perto, tudo o que em mim se passava. Eu respondi imediatamente que não, mas logo
me arrependi do que tinha dito e da obediência devida, e disse que sim, porque
não queria desobedecer ao Senhor Arcebispo, deixar mal situados o meu Director e
o médico assistente, e todos aqueles que tanto se têm interessado por mim. Pus,
porém, umas condições:
1) de poder receber a Jesus todos os dias;
2) de minha irmã me acompanhar sempre;
3) de não ter mais exame nenhum, porque ia
para observação e não para exame.
Durante aqueles dias que cá estive, pedi a
Jesus e à Mãezinha que me dessem forças e coragem para ser a coragem dos meus,
que se encontravam desolados. Quantas vezes, durante a noite, com o coração
oprimido e as lágrimas a bailarem-me nos olhos, eu pedia a Jesus que me
ajudasse, pois parecia-me que me iam faltar as forças e via-me sem coragem para
mim, quanto mais para dar aos outros!
Chegou o dia 10 de Junho, em que estava tudo
preparado para a minha partida para a Foz. A amargura que se apoderou de mim
era enorme, mas, ao mesmo tempo, sentia uma coragem tão grande que com ela podia
encobrir o que ia na minha alma. Confiava tanto em Jesus, e estava tão
convencida do seu Divino auxílio que até julgava, que, se necessário fosse,
Jesus enviaria os seus próprios anjos a ajudar-me no exílio onde ia
encontrar-me. Quando o médico chegou junto de mim, não teve coragem para me
dizer que era preciso partir, mas eu disse-lhe então: «Vamos! quem não vai não
vem.»
Então começaram as despedidas. Só Nosso
Senhor sabe quanto me custou esta separação, pois todos os meus vieram
abraçar-me e beijar-me cheios de dor. Eu só olhava para o Sagrado Coração de
Jesus e para a querida Mãezinha a pedir-Lhes que me dessem coragem e forças.
Ao descer as escadas na maca, disse-lhes para
os animar: «Coragem! Tudo isto é por Jesus e pelas almas!» Não pude dizer mais
nada, tal era o aperto que sentia em meu coração e seria impossível conter as
lágrimas. Era isso o que eu não queria, não por mim, mas para não ser causa de
maiores dores para os meus. Quando fui posta na maca, rodeada por mais de cem
pessoas, via as lágrimas nos olhos de quase todos, ouvia os gritos de minha mãe
e mais pessoas de família. Era indizível a minha dor. Era ansiada (sic)
de partir, mas partir depressa. O meu coração pulsava com tanta força que
parecia arrancar-me as costelas. Nessa ocasião disse a Jesus: «Aceitai, meu
Jesus, todas as pulsações do meu coração, por Vosso amor e para salvação das
almas.»
A viagem foi difícil de fazer, pois o meu
coração sentia imenso e parecia por vezes que ia sucumbir. Olhava para a minha
irmã e via-a muito desolada. O médico dizia-me que, com doentes como eu, não
custava fazer viagens, porque me via sempre com um sorriso nos lábios, mas só
Jesus sabia a amargura que ia no meu coração e as torturas do meu pobre corpo.
Com as trepidações da auto-maca, eu sentia grandes aflições no coração, mas
repetia sempre: «Tudo por Vosso amor, meu Jesus, e que a noite escura que sinto
na minha alma, sirva para dar luz as almas!»
Ao chegar às últimas casas de Balasar, vi que
o Sr. Sampaio levantou as cortinas da auto-maca e notei que as lágrimas
assomaram aos olhos do médico, que ia a meu lado e exclamou: «Coitadinhas!» Ao
ouvir estas palavras, perguntei-lhe o que era. Disseram-me que umas crianças, à
beira da estrada, lançavam flores para o nosso carro. Senti-me então cheia de
compaixão para com as criancinhas, enquanto as lágrimas teimavam deslizar-me nas
faces, o que a custo pude conter. Quando chegámos a Matosinhos, o médico
levantou a cortina da janela da auto-maca para eu ver o mar. Então um silêncio
enorme se apoderou do meu coração e, ao ver o movimento contínuo das ondas e a
sua vinda até à praia, eu pedi a Jesus que o meu amor fosse também assim sem
interrupção e duradoiro.
Chegámos perto do Refúgio, e o Sr. Dr. Gomes
de Araújo não quis que a auto-maca fosse até à porta e para isso disse aos
bombeiros que virassem a maca e me levassem assim pela rua, cobrindo-me o rosto
para que ninguém me visse. Logo nessa ocasião, o meu coração mais triste ficou,
pois adivinhava já o que seriam para mim esses longos trinta dias que iria
passar nessa casa. Enquanto ma transportavam de rosto encoberto, parecia-me
estar num caixão. A minha tristeza subia, e eu perguntava a mim mesma: «Que
crime fiz eu?»
A subida das escadas do Refúgio foi um
martírio, por eu estar de cabeça para baixo. Só no quarto descobriram-me o
rosto, e eu vi-me então rodeada pelo Sr. Dr. Araújo e algumas das senhoras que
iam servir de vigias, enquanto eu lá estivesse. Colocaram-me na cama que já
estava destinada para mim.
À minha irmã mandaram-na para outro quarto,
contra o que eu tinha pedido, pois este era um dos maiores sacrifícios que
podíamos fazer, tanto uma como a outra. Como havia eu de passar sem ela, que me
dava todas as voltas precisas e me ajudava com as suas carinhosas palavras a
levar este doloroso calvário?...
Estava apenas na cama quando a Deolinda se
apresentou à porta trazendo uma mala, em que tínhamos a nossa roupa. O médico,
Dr. Araújo, ao ver a minha irmã, berrou alto: «Essa mala lá fora!...». Foi
espinho sobre espinho. Principiou a dar ordens: «As vigias, as vigias! A doente
pode dizer o que quiser, mas as senhoras não têm licença de a interrogarem».
Depois de dar todas estas ordens, retirou-se,
ficando o médico assistente e duas senhoras que estariam ali permanentes para
vigiarem todos os seus movimentos.
À noitinha já, ao retirar-se para vir embora
o Sr. Dr. Dias de Azevedo, então não consegui reter por mais tempo as lágrimas
que me banhavam os olhos. O meu médico teve ainda esta fineza, este respeito
pela minha dor ― mais do que respeito, carinho: «Coragem, amanhã voltarei cá!»
Chorei sentidamente, mas logo ofereci essas
lágrimas tão amargas ao meu querido Jesus. Ao verem-me tão desolada, sempre
consentiram que essa noite ficasse junto de mim a minha irmã juntamente com uma
das senhoras enfermeiras para ela aprender as voltas que a minha irmã me costuma
dar, mas ajuntou logo: «Só por esta noite, porque amanhã não fica».
No dia seguinte, que era sexta-feira, começou
então para mim o verdadeiro calvário naquela casa. Na ocasião do êxtase, como
acontece todas as sextas-feiras, a minha irmã veio para junto de mim,
encontrando-se também o médico assistente e uma enfermeira.
Nada escapou aos observadores, nem os
pequenos pormenores que foram depois espalhados e comentados. Tais como estes: o
Sr. Sampaio ter puxado pelo relógio, … a minha irmã ter ajoelhado ao pé de mim
para ouvir as palavras do êxtase, … uma enfermeira ter chorado, etc.… O Sr. Dr.
Azevedo escreveu, como sempre as palavras do êxtase para entregar aos médicos. A
Deolinda, que devia por ordem estar apartada do quarto, andava amargurada e
pedia: «Nem ao menos poderei ver a minha irmã à porta do quarto? A minha vista
alimentá-la-à, talvez?» E debruçada sobre a minha cama, chorava inconsolável.
Foi então que eu lhe disse: «Não te aflijas,
Nosso Senhor há-de estar connosco!» A vigia que chorara durante o êxtase,
batendo-lhe no ombro, disse-lhe: «Não chore, o Sr. Dr. Araújo é de muita
caridade!» Mas foi o bastante para nunca mais essa vigia poder aproximar-se de
mim, a não ser nos últimos dias, quando já havia provas de verdade, e mesmo
assim, só acompanhada por outras pessoas.
Deve-se isto, e muitas coisas mais, a uma
vigia que foi o meu carrasco durante os dias da Foz. Deus Nosso Senhor lhe
perdoe.
Nessa noite, comecei a sentir uma crise
tremenda de vómitos que, como sempre, muito mal me fazem e tanto me afligem, mas
mais ainda aí, onde não tinha a não ser uma vez quem me amparasse.
No sábado, veio novamente o Sr. Dr. Gomes de
Araújo ver como eu me encontrava e saber de tudo o que se tinha passado. A minha
prostração era tão grande que não dei conta de quando bateu à porta, que estava
sempre fechada à chave; só o ouvi quando, ao pé da minha cama, dizia à
enfermeira: «Está pronta! Está pronta!» Foi então que abri os olhos e disse-lhe:
«Ó Senhor Doutor, em casa também tenho estas coisas.» A resposta dele, muito
pronta e imperiosa: «Menina, não pense que vem aqui para jejuar!» Compreendi
onde queria chegar e senti-me profundamente ferida.
Quando soube do que se tinha passado na
sexta-feira, exigiu os escritos do êxtase e foi então que disse berrando:
«Parece impossível que o Dr. Azevedo, sendo um rapaz tão inteligente, se deixe
levar por estas coisas. Isto tem que acabar. No entanto, que desapareçam todos
os relógios para ela ignorar as horas...» (Como se Nosso Senhor precisasse
deles!)
Ao ver o meu estado, queria medicar-me, mas
eu não o consenti, nem o consentiria. Quantas vezes as enfermeiras vieram junto
de mim, convencidas de que eu tinha morrido. Foram cinco dias de contínua
agonia, mais da alma do que do corpo, pois durante estas crises não consentiram
que a minha irmã viesse para junto de mim, eu que em casa chegava a precisar que
duas pessoas me aliviassem. Julgavam todos que esta crise era devida à falta de
alimentação, porque ao verem-me completamente isolada e sem ninguém que me
pudesse levar qualquer alimento, eu sentiria necessidade de o pedir ou então que
estava a morrer. Como estavam enganados! O meu alimento vinha-me da Hóstia
bendita da minha Comunhão de cada manhã.
Foi durante esta crise que voltou a
visitar-me o médico assistente e, depois de informado pela minha irmã lá fora da
minha prisão, ao pé da minha cama, foi aconselhado pela vigia de que eu
precisava de tratamento. E eu que ainda não tinha conta de ele entrar, abri os
olhos para ele e ouvi que ele dizia para a mesma: «Esta doente veio para aqui
para ser observado e nada mais. Creio que o Sr. Dr. Araújo cumprirá com as
condições. Não consinto que se lhe dê uma injecção ou outro medicamento, a não
ser que ela o peça. E as senhoras verão que, passada esta crise, as olheiras
desaparecerão, as cores voltam, o pulso volta ao seu normal. Não digo mesmo ao
seu normal, talvez devido aos ares do mar... O que lhes afianço é uma coisa:
morrerão as senhoras, morrerei eu, mas ela cá no Refúgio não morre.»
Sentado ao pé de mim, veio dar-me um pouco de
alívio de que precisava. Porque Nosso Senhor assim permitiu e achou bem;
passados cinco dias os vómitos desapareceram por completo e a cor natural do
rosto voltou juntamente com o brilho dos olhos. À nova visita do médico
assistente que ia frequentemente ver-me, a vigia teve esta frase: «Veja, Senhor
Doutor! Olhe essa cara!» Ele, muito delicado sempre, mas com firmeza: «Foi com
os bifes que comeu e com as injecções que levou.»
Jesus quis mais uma vez mostrar o seu poder
nesta humilde criatura sua. Contudo, todas as senhoras-vigias cumpriram bem as
ordens do médico, pois não me abandonavam um momento. A porta do meu quarto só
se abria para dar passagem aos médicos ou às enfermeiras.
À nova transformação que houve em mim, nem o
médico nem as enfermeiras se queriam convencer de que era possível eu continuar
a viver sem me alimentar. Porque se usavam argumentos para me atemorizarem,
passava-se de repente a frases que mostravam carinho e interesse pela minha
pessoa. Eu ouvi dizer nas conferências que tinham uns com os outros que o meu
caso seria de histerismo ou outro qualquer fenómeno que não sabiam explicar. Um
dia em que se aproximou de mim o Sr. Dr. Dias de Azevedo, eu disse-lhe o que ia
na minha alma tão amargurada: «Para ser tratada como histérica não preciso de
estar aqui.» Mas ele respondeu-me que tivesse coragem e confiança. Eu assim fiz,
para cumprir em tudo a vontade santíssima de Deus. O Sr. Dr. Gomes de
Araújo visitava-me sempre duas ou três vezes ao dia e sempre a horas
desencontradas, para ver se conseguia descobrir alguma coisa, penso eu, e
algumas vezes entrou no meu quarto já sendo noite, sendo ele a vigia que foi
baptizada por alguém com o nome de «cardeal-diabo».
Ainda que eu vivesse até ao fim do mundo,
nunca mais poderia esquecer a impressão que me causava o abrir e fechar das
portas pelo médico, porque estava sempre à espera do que ele iria dizer. Sentia
uma impressão tão grande que o meu coração estremecia e a minha alma mais triste
se sentia. E quantas vezes dizia e repetia a Jesus: «Que esta noite sirva para
dar luz a ele, às pessoas que me rodeiam e a todas as almas que se encontram nas
trevas».
Nas conversas e interrogatórios, que várias
vezes me fez, empregou o Sr. Doutor todos os meios possíveis, para me convencer
a alimentar-me e fazer-me sentir que não devia fazer assim, porque Deus não
gostava. Até pelos escrúpulos me quis levar. Mais, a enfermeira tentou muitas
vezes levar-me pelo lado do coração; uma das vezes que falou comigo, até queria
ver se conseguia tirar-me a fé. Serviu-se de quantos meios tinha ao seu alcance,
e, com interrogatórios intermináveis e torturantes para me levar a desanimar,
julgando que tudo isto, quanto se tem passado em mim, fosse influência humana e
não de Deus. Se em todos os dias que era interrogada pelo médico me parecia ter
diante de mim um lobo com pele de cordeiro, neste dia, pior ainda: parecia-me
ver nele o próprio Satanás, com as suas artes, com seus sorrisos manhosos, a
tentara tirar-me a fé e a persuadir-me que tudo era ilusão.
«Convença-se, a menina — dizia ele — que Deus
não quer que sofra. Se quer salvar os outros, que os salve Ele, se é verdade que
tem poder para isso! Se é verdade que Deus recompensa aqueles que sofrem, para
si já não tem recompensa para lhe dar, pelo que tem sofrido».
Mas, meu Deus, eu sei que Vós sois infinito,
infinito no poder, infinito nos Vossos prémios.
Se fosse como ele diz, por quem sofro eu?
Acompanhava as suas palavras com um olhar
maliciosos de demónio. (Assim me parecia.) Eu, então respondi-lhe:
«São tão grandes, tão grandes as coisas de
Nosso Senhor, e nós somos tão pequeninos, tão pequeninos, ao menos eu!»
Ficou-se; e depois, indignado, disse: «Tem razão; mas eu sou pessoa maior um
bocado!» – e saiu.
«Quão longe estava o médico de conhecer esta
lei do amor das almas! Se ele soubesse o valor duma alma, veria então que
nada é demais tudo quanto façamos para as salvar.
Era uma chuva constante de humilhações e
sacrifícios. Oh, se eu soubesse sofrer bem, quanto tinha que oferecer a
Jesus! Estavam sempre a aparecer coisas novas que humilhavam e sacrificavam.
Tinha aos pés da minha cama um retrato da pequenina Jacinta, que me mandaram
para lá. Eu olhava-a com amor e, então, já sem temer que as vigias contassem ao
médico, dizia assim: «Querida Jacinta, tu, tão pequenina, soubeste o que isto
custa! Ajuda-me, lá do Céu onde estás.» Só o auxílio do Céu, só as orações de
almas boas podiam ser a minha força, para subir tão doloroso calvário e suportar
o peso de tão pesadíssima cruz!
Era interrogada pelo Sr. Dr. Gomes de Araújo
todas as vezes que ele vinha junto de mim. Repetia frequentes vezes as mesmas
perguntas e todas as vezes me deixava assustadíssima, dizendo quase sempre:
«Temos muito que conversar.»
Logo que eu o via sair do quarto, respirava
fundo e dizia para mim mesma: Graças a Deus que já estou livre de ti. Mas logo o
pensamento que ele depressa voltava me deixava um sofrimento bem amargo.
Um dia, sentado ao meu lado direito,
procurou todos os meios para convencer-me de que tudo isto que se passava eram
ilusões minhas e então principiou com uns rodeios, muito ao longe, sobre a
Medicina, falando num professor seu e num Colégio do Porto onde ele tinha gasto
muitas horas de noite no seu estudo, não tinha dormido, e tinha escrito muitas
páginas e convencido de que tinha acertado com o seu estudo, foi ao encontro do
professor contar-lhe o resultado das suas lições. O professor dizia-lhe: «Tem a
certeza do que diz?» E ele afirmava-lhe, uma e outra vez, que sim, por esta e
por aquela forma. A conversa já ia longa e eu fitava-o como se nada
compreendesse, e dizia para mim mesma: «Andas por tão longe, para vires cair tão
perto!» Enquanto ele continuava dizendo: «Eu estava convencido que tinha feito
um belo estudo; o professor deixou-me dizer tudo e depois disse-me: “Não vê que
está enganado, que não pode ser nada disso, por esta e por aquela razão?” Eu
fiquei: Meu Deus, tantas horas perdidas! Tantas horas de ilusões! Tudo caiu por
terra!» — Eu, que já via há muito tempo aonde ele queria chegar, sorri-me e
disse: «Não cai, Senhor Doutor. Tenho à minha frente um Director muito santo e
muito sábio e estudou o caso por alguns anos. E, se a obra é de Deus, não há
nada que a deite por terra».
Ele, um pouco embaraçado, disse-me: «Ai
não!...» ― fingindo com as suas palavras que não era isso o que ele queria
dizer. Dada a minha resposta, depressa se retirou, e já era tempo.
Ai, meu Jesus, só convosco podia desabafar,
só para Vós eram as minhas lágrimas. Cantava com o maior dos entusiasmos. Mas
dentro em mim e até aos meus próprios olhos parecia-me não haver sol nem dia.
Algumas vezes, durante a noite, lembrava-me: o que estará, agora, minha irmã a
fazer? Estará a chorar? E lembrando-me que ela sofria tanto por minha causa, uma
vez não pude conter as lágrimas. Chorei, chorei. Só receava que Jesus ficasse
triste pelas minhas lágrimas. Mas Ele bem sabia que tudo queria e aceitava por
Seu amor, com desejo imenso de lhe dar todas as almas. E oferecia-Lhe as minhas
lágrimas como actos de amor para os sacrários. Quanta mais amargura, mais amor,
não é, meu Jesus? Aceitai. Foi minha mãe visitar-me aos 16 dias e aos 30. Tinha
tanta saudade dela! Estava tão pouquinho tempo junto de mim e sempre sob os
olhares curiosos das espias! Ela chorava e eu fingia não ter coração: sorria-me
e gracejava com ela, acariciava-a, e com o meu sorriso enganador escondia a
amargura que me ia na alma, e retirava as lágrimas que teimavam deslizar-me nas
faces. Animava-a e desabafava intimamente sozinha com o meu Jesus. Era a minha
cruz, e quem não havia de levá-la por amor d’Aquele que morreu por mim?
Assim iam passando os dias nesta luta
constante, alternados pela mudança das senhoras enfermeiras, que iam e vinham
conforme a vontade do médico. Com algumas sofri imenso porque chegaram a ir além
dos direitos que lhes competiam e dos deveres que tinham a cumprir. Ao
aproximarem-se os dias que o médico tinha dito que nos iria pôr mais à vontade,
visto estar convencido da verdade, deixando minha irmã passar mais algum tempo
junto de mim e da vigia que desempenhava a sua missão, concedendo também, aos 29
dias, uma visita, embora de fugida, das irmãs franciscanas do Refúgio,
pensávamos também mandar dizer aos meus o dia do regresso, mas, sem o
esperarmos, deu-se o contrário.
Uma das vigias informou do que se passava, a
meu respeito, um médico que não me conhecia nem conhecia o caso, o que levantou
novas dúvidas.
Atreveu-se esse médico a dizer que não podia
ser, que as vigias facilmente se deixavam enganar e que só acreditaria, mandando
para lá enfermeiras da sua confiança.
O Sr. Dr. Araújo, um pouco indignado
por não acreditarem na observação feita por ele, exigiu que o mesmo mandasse
então uma pessoa da sua confiança. E escolheu uma irmã dele. Quando nós
pensávamos ver suavizada a nossa dor, foi então que se nos pediu nova prova,
mais triste e dolorosa.
O Sr. Dr. Araújo procurou
convencer-nos de que era conveniente passar lá ainda dez dias, embora ele
estivesse convencidíssimo da verdade, e, contra a vontade de minha irmã, ele
insistiu que era preciso ficar para convencer o outro médico. Eu respondi-lhe:
«Quem está trinta está quarenta». Assim é que ficou resolvido.
O Dr. Álvaro, na verdade, nem exigia tanto
tempo, bastava-lhe só, para se convencer, que eu ficasse quarenta e oito horas
sem comer e sem evacuar, e não exigia mais.
Foi o mesmo Dr. Araújo que, delicadamente,
para honra do seu nome, convidou a senhora a ficar mais um dia, depois mais
outro.
Mesmo depois de cumprida a sua missão, essa
senhora voltou várias vezes a visitar-me, convencida enfim da verdade. Este
último tempo foi um verdadeiro calvário e eu oferecia a Nosso Senhor e à
Mãezinha este grande sacrifício. Dura prova, meu Deus!
O Dr. Araújo, sem me dizer o que ia fazer,
tomou a borracha que tinha sobre o estômago e um garrafão de água que as vigias
tinham para molharem o pano da cabeça e infundiu lá o que ele quis para eu, que
ignorava o facto, se chupasse do pano ou da borracha, como o outro médico
afirmava, houvesse em mim algum transtorno que eles lá sabiam, exigindo das
vigias que eu não pedisse que me fosse mudado o gelo. Assim o fiz, apesar de,
por vezes, ela tentar mudá-lo. Eu respondia: «Põe-se fora de mim para arrefecer.
Manda o Sr. Doutor e é assim que eu cumpro.» Voltou-se então ao rigor de antes
ou pior, proibindo de qualquer forma até que se me falasse de Jesus, julgando
que com isso podia tirar o que anda dentro de nós. «Não consinto – dizia ele –
que chame a sua irmã a não ser uma vez por noite.» A vigia, muitas vezes, como
que a tentar-me, durante a noite, com carinho impostor (não quer dizer que ela
seja impostora, mas era a impressão que me deixava): «Santinha, minha santinha –
dizia-me – sempre nessa posição! Eu chamo, eu chamo a sua irmã.»
― Muito obrigada, minha senhora, não quero.
Manda o Senhor Doutor: é só uma vez que ela vem.»
E quando, de facto, a minha irmã vinha por
sua vez dar-me o jeito na cama, segundo o médico permitira, a vigia acendia a
luz, abria a porta e punha-se a par com a minha irmã. Logo que a irmã se
retirava, fingindo compaixão e cuidados pelo frio que eu podia apanhar,
descobria-me mais, para ver se alguma coisa me tivesse deixado debaixo da roupa.
Eu compreendia muito bem e abria os braços
sobre as almofadas para ela ver melhor, fingindo não compreender. «Só por Vós,
Jesus!»
Não faltaram as seduções para ver se eu
tomava alguma coisa das suas comidas. Quando me mostravam os petiscos sem dizer
nada, eu contentava-me com sorrir-lhes… E quando ofereciam a comida com
palavras, eu agradecia: «Muito obrigada!», mas sempre a sorrir, mostrando não
compreender a sua maldade.
Quantas vezes me foi tirada a roupa toda para
ser examinada!
Quando me via só, e principalmente de noite,
parecia-me que o tempo tinha duração da eternidade. Sentia que o meu coração
fosse como uma árvore que enraizasse com as suas veias pelo soalho e pelas
paredes e que a fúria de tanta tempestade as arrancava, ficava-me tudo por
terra… e que todos e tudo me calcassem. A fúria da tempestade era tão grande
que, por fim, sentia que quisesse arrancar essas veias e tudo caísse por terra.
Dizendo isto, sinto de não dizer nada do que eu passei nesses dias… Tudo se me
apresenta pavorosamente à minha memória. Que tormento! … Só o amor de Jesus pode
vencer e a loucura das almas!
Sentindo aproximar-se o médico: «Lá vem o
carrasco visitar a pobre encarcerada pelo amor de Jesus e das lamas. Não ofendi
ninguém a não ser a Vós, meu Jesus, mas os homens querem que desta maneira e sem
o pensarem eu pague assim as minhas ingratidões.»
Vendo a minha irmã desalentada que aparecia
de vez em quando à bandeira da porta a perguntar se eu estava pior… procurava
encorajá-la. Coitada! Ela ouvira a conversa do médico que o meu envenenamento
era certo, por eu não evacuar. Coitados deles!... Jesus sabe fazer as coisas
melhor do que os homens!
Na véspera da partida, fora o dia das
visitas. Passaram ao pé de mim todas as criancinhas do Refúgio, a quem dei
rebuçados e com quem rezei por todos o da casa.
A minha irmã sentia-se outra e todos o
notaram. Fui visitada talvez por mil e quinhentas pessoas… Os polícias tiveram
de intervir para manter a ordem. Achei muita graça a um dos polícias que,
encarregado de manter a ordem, se limitou a pôr-se ao meu lado e ali ficou todo
o tempo, contentando-se com dizer de vez em quando ao povo: «Passem! Passem!»
Que impressão, meu Deus, aquele burburinho do
povo! Não valeram as súplicas da minha irmã para que acabassem com aquilo. Não
valeram de nada os polícias. O mesmo médico teve de ir à janela a dizer que se
devia acabar porque era impossível mais movimento para me não matarem. Quanta
gente julgava que a própria doente tivesse morrido! Eu, de facto, fiquei
humilhada, abismada e cansadíssima com o nojo de mim mesma pelos beijos
recebidos, as lágrimas, etc. que me deixaram no rosto, a dizer-me uma estima que
não mereço e não quero.
A primeira coisa que eu fiz foi pedir à minha
irmã que me lavasse. No dia da partida, de manhã, o Médico, que não dormira
quase nada, pela responsabilidade, chegou ao Refúgio onde muita gente esperava
para poder visitar-me… e depois de estar um pouco comigo, deixou entrar algumas
pessoas.
Foi então que nos disse que ficássemos à
vontade e que a observação terminara; deixou a minha irmã comer ao pé de mim e
disse-me: «No mês do Outubro terão lá, em Balasar, a minha visita, não
como médico espião, mas como amigo que as estima.»
Beijei, reconhecida, a mão do Sr. Dr.
de Araújo e agradeci reconhecida todos os cuidados que tiveram para
comigo, e fiz isso com toda a sinceridade, pois sabia muito bem que, embora
tivesse sido áspero para comigo, mostrou toda a seriedade com que devia ser
tomado o meu caso.
Naquela tarde do dia 20 de Julho, foram as
despedidas das religiosas e das vigias. Todas as vigias me fizeram oferta das
suas prendas. Algumas delas vieram assistir à minha partida. Estava já dentro da
auto-maca e foi uma despejar sobre mim um frasco de perfume. Trazia consigo um
ramo de cravos, oferta de uma senhora, horas antes de eu me retirar. No decorrer
da viagem, ofereceram-me dois ramos de flores. Recebi-as por delicadeza, apesar
de não prever o resultado que vinha a dar, que havia de vir pouco depois a ser
causa de maiores sofrimentos para mim. Penso que as pessoas que mas ofereceram
era por saberem a estima e a loucura que eu tinha por elas. Só Jesus sabe quanto
eu amo florinhas, porque amo o Autor delas. Quantas vezes as queridas florinhas
me serviam para meditação – via nelas o poder, a bondade e o amor de Jesus! Nem
o perfume, nem as flores, nem a multidão do povo que rodeava o nosso carro no
decorrer da viagem foram motivo da mais pequenina vaidade para mim. Quando
parámos para eu descansar e eu via tanto povo a aproximar-se de mim com tantas
exclamações, eu dizia logo ao meu médico assistente, que vinha ao meu lado:
«Vamos, vamos, Sr. Doutor!»
Por vezes, pensava que me tornava
impertinente, mas ele tinha muita paciência comigo.
Durante a viagem, vivi mais dentro em mim do
que fora. O mar, tudo o que se me apresentava aos meus olhos, convidavam-me ao
silêncio, à vida íntima com Deus. Não tinha de que ter vaidade: tudo isso eram
motivos para me humilhar e fazer pequenina até desaparecer. O que seria de mim
se fosse julgada pelo mundo! Deitaram tanta malícia onde não havia nenhuma.
Perdoai-lhes, Jesus! Não conhecem as Vossas coisas!
Comovi-me com as lágrimas das vigias e das
pessoas. Foi preciso telefonar à polícia para conter o povo. E saí daquela
bendita casa alegre por ter cumprido o meu dever e por regressar aos meus e ao
meu querido quartinho, de que tivera tantas saudades. Quando cheguei ao meu
quartinho, parecia mentira entrar nele. Houve lágrimas, mas desta vez muito
diferentes: eram de alegria. Depois de estar na minha cama, por muito tempo, não
pude consentir que me tocassem, soltava grandes gemidos com dores das mais
dolorosas. Foi o efeito da viagem. Agora digo eu: Por quem me sacrifiquei assim?
Seria isto também por vaidade? Ó mundo, ó pobre mundo! Vaidade, mas pelo quê?
Que somos nós sem Deus? Quem seria capaz de sofrer tanto por uma grandeza e uma
vaidade do mundo?
Quarenta dias passados na Foz: só Jesus sabe
o que eu lá passei, quantos espinhos a ferirem-me, quantas setas cravadas em meu
coração! Quantas humilhações, quantas humilhações!
Razão tinha o meu médico na minha ida para
lá, ao colocar-me na testa um pano molhado, em dizer-me: «Tem por aqui uns
cabelos brancos, mas quando vier ainda há-de ter muitos mais.» E, de facto,
assim aconteceu: ele já adivinhava tudo o que me esperava. Mas é tão bom
passarmos por tudo por amor de Jesus!
APÊNDICE
«Desde os meus seis ou sete anos não gostava
de estar ociosa, e então ocupava-me em pôr tudo em ordem em casa. Gostava muito
de ir ao rio lavar roupa. Quando mais não tinha que lavar, tirava o meu
aventalinho e ia lavá-lo. Entretinha-me a arrumar a lenha, pondo as achas
encasteladas e muito direitinhas.
Às vezes, era no jardim que trabalhava,
ocupando-me a cuidar das plantas que haviam de dar flores que ofereceríamos para
adornar os altares da igreja.
Gostava de tudo perfeito e asseado, mesmo
quando doente.
Tinha nojo do que estava sujo e fazia
limpezas, as mais custosas, porque alegrava-me de ver tudo limpinho.
Pouco depois de virmos da Póvoa de Varzim –
onde aprendi o pouco que sei – viemos morar para o Calvário. A casa onde
vivíamos não era assim como é hoje. Tinha a cozinha na parte de baixo. Na
primeira noite que passámos aqui, minha mãe mandou-me despejar fora da porta da
cozinha uma gamela de água. Eu tive medo e por essa razão disse à minha mãe que
não ia. Ela deu-me uma bofetada. Por má vontade nunca disse à minha mãe: eu não
vou. Deus me livre! Ela procurava-nos a cara e não sei onde devíamos ir
encontrá-la!...
Minha irmã, com os seus 12 anos, principiou a
aprender a costurar. Uma das primeiras peças de vestuário que fez foi uma camisa
para mim. A camisa era muito larga e com um talho como se fosse para um rapaz.
Eu, apesar de ter os meus nove anos, escarneci da obra e da costureira. Peguei
nela, vestia por cima da roupa que trazia e vim assim até à nossa casa. Minha
irmã, às gargalhadas, ia dizendo: «Ó Alexandrina, tira a camisa, que é uma
vergonha!...» Eu não me importei; vim assim e também me ria à vontade.
Em Santa Eulália de Rio Covo (tinha eu os
meus 11 ou 12 anos) viviam meus tios que adoeceram com uma febre intitulada a
espanhola. Minha avó foi tratar deles, mas adoeceu também. Para olhar por eles
foi minha mãe que também ficou doente. Por fim, fomos nós, apesar de ser
novinhas. O meu tio morreu à noite e ficámos lá até à Missa do sétimo dia.
Foi preciso ir ao arroz, mas tinha que passar
pelo quarto donde meu tio morrera. Ao chegar à porta do quarto, senti-me tomada
de medo. Não entrei. A minha avó veio dar-mo. À noite, era preciso ir fechar a
janela. Chegando à parte da sala, disse comigo: Eu hei-de perder o medo. E
passei devagar, mesmo com esta intenção. Abri a porta, passei por onde tinha
visto o cadáver e fui ao quarto onde ele morreu. Desde então, nunca tive medo.
Venci-me a mim mesma, à minha custa.
Quando tinha doze ou treze anos, tinha muita
força. Um homem começou a fazer-se muito forte com outras raparigas. Ele estava
sentado. Eu dirigi-me a ele e voltei-o. Ele pôs-se a gritar: «Deixa-me!
Deixa-me!» Mas deixei-o só quando quis. O meu fim era só: como ele era homem,
que mostrasse a sua força.
Aos treze anos dei uma bofetada a um homem
casado que me tinha dirigido uns palavrões… Virei as costas a um rapaz rico que
me esperava num lugar solitário, por onde eu tinha de passar, para me falar em
namoro.
Com catorze anos, tinha muito gosto em
assistir aos moribundos. Lembro-me de um homenzinho que estava a morrer e de uma
pequena minha amiga. Fui à casa do homenzinho e encontrei-o no meio duns
manteirinhos velhos. Vim a casa e pedi à minha mãe que lhe emprestasse roupa de
cama. Minha mãe fez-me a vontade e eu, muito contente, fui levar a roupa e
fiquei a fazer companhia às filhas. O homem durou uns doze dias. Apareceu em
casa do doente um homem a pedir lenha à filha dele, mas ela não a tinha. Começou
a disparatar. Eu disse: «Ela não tem tido tempo de a ir arranjar; que há-de
fazer?» O homem respondeu: «Se não fosse pela generosidade da tua mãe, levavas
duas bofetadas!» Não mas deu, porque eu calei-me. Quando não, era ele capaz de
mas dar e eu ficava com elas…
Veio
aqui uma rapariga dizer que estava a morrer uma vizinha. Minha irmã pegou num
livro e num garrafãozinho de água benta e foi à casa da moribunda. Seguiram-na
duas aprendizas de costura. Eu fui também. Minha irmã começou a ler as orações
da boa morte. Estava nervosa e tremia, pois custava-lhe muito assistir aos
moribundos. A minha irmã acabou de ler quando a mulherzinha morreu e disse: «Até
agora fiz o que pude; agora não tenho coragem para mais.» Vi a filha ao pé da
mãe da morta. A neta fugiu e eu não tive coragem para a deixar só. Fiquei a
ajudar a lavá-la e a vesti-la. Estava cheia de chagas. Exalava um cheiro
horrível. Julguei que caía sem sentidos, porque me sentia mal. Outra mulher que
se encontrava no quarto, percebendo o meu estado, foi buscar uns raminhos de
sardinheiras e deu-mos a cheirar. Só vim para casa depois de tudo pronto.
Com os meus dezasseis anos, e já doente, fui
à casa de uma vizinha onde minha irmã estava a trabalhar de costura. Ao deparar
com um fato de rapaz, vesti-o e apareci junto da minha irmã e da dona da casa.
Riram-se a escangalhar. Depois disse-me a dona da casa: «Olha, vai pela estrada
fora, que os meus filhos e o meu marido andam a podar as videiras por cima da
estrada.» Eu pensei que me conheceriam, mas resolvi e fui. Os senhores não me
reconheceram e, muito admirados, pararam de trabalhar, para ver se conheciam o
cavalheiro. Da janela da casa, minha irmã e a dona da casa encheram-se de rir.
Entre os meus 17-18 anos, eu e a minha irmã
partimos daqui para irmos a Aldreu, com o fim de fazermos flores artificiais por
conta das zeladoras e a pedido do pároco. Eu já andava doente. Fui para ajudar a
Deolinda e virmos embora mais depressa. Hospedámo-nos na residência do Pároco.
Dois rapazes dos lados de Viana foram lá e queriam namorar com a Deolinda, mesmo
nas vésperas de virmos embora. Pediram ao pároco para jogarmos as cartas.
Pusemo-nos à lareira e o jogo passou-se em conversa. O pároco, quando nos viu,
dirigiu-se aos rapazes assim: «Ai, ai! Então estou aqui há quatro anos e nunca
vieram cá jogar e hoje vieram?»
Na noite seguinte, quando havíamos de vir
embora, houve grande trovoada e chuva que fez muita lama. Sendo eu muito doente,
a sobrinha do pároco emprestou-me uns socos e a minha irmã veio descalça. Um
quarto de hora depois de sairmos de casa, desatou a chover novamente. O sangue
espirrava-me dos pés, por causa do calçado não ser meu e por ter os pés muito
mimosos, pois havia muito tempo que me não descalçava. As dores eram muitas e,
por fim, tive de me descalçar, molhando-nos todas. Quando chegámos à estação, o
comboio tinha partido haviam passado cinco minutos. Minha irmã desatou a chorar
ao ver como eu estava. Eram nove horas da manhã. Só havia comboio às 11 horas,
mas só parava em Barcelos, não nos convinha esse comboio. Esperámos na estação.
Apareceram uns professores de Aldreu que nos levaram a tomar café. Só
continuámos a viagem mais tarde, até que chegámos a casa da tia em Santa Eulália.
Ela preparou-nos uma boa refeição e não queria que viéssemos embora por nos ver
cansadas e ser tarde. Teimámos e prometemos vir só até Chorente, onde vivia a
tia Felismina. De lá viemos até Balasar, onde chegámos alta noite. Batemos à
porta, mas a mãe não estava em casa. Uma vizinha disse: «Olhem, a Sra. Matilde
está a morrer.» A vossa mãe estava lá. Fomos ter com ela. No dia seguinte fui a
casa da moribunda. Uma sobrinha dela disse-me: «Precisava tanto de ir a casa…»
Eu respondi: «Vá, que eu fico.» E ela: «Não tens medo? – Eu não tenho medo
nenhum!» Daí a pouco, a Sra. Matilde agonizava. Eu rezei sempre aquilo que
entendia, mas sem medo nenhum.
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