Em Balasar é preciso — a ideia nem é
minha — um Centro de Estudos da Alexandrina : há
tanta
coisa a estudar e a fazer! Se a Alexandrina é, como muitos pensam que de facto
é, candidata séria ao doutoramento, será preciso pôr
muitas instituições
científicas da Igreja a reflectir. E isso só se consegue com muito estudo e
publicações regulares e ocasionais.
O que vou fazer aqui é dar um pequeno
contributo para definir com mais rigor o lugar que teve junto da nossa Beata o
médico Dr. Abílio de Carvalho.
São vários os médicos que se nos
deparam na sua bio-grafia. Uns com nomes sonantes, outros mais humildes; uns
acompanharam-na por longos períodos e mais de perto, outros abeiraram-se dela
mais pontualmente.
Entre os nomes sonantes, contam-se o
Dr. Elísio de Mou-ra, o Dr. Henrique Gomes de Araújo e o Dr. Roberto de Carvalho.
Entre os que a acompanharam por mais lon-gos períodos, destacam-se o Dr. Abílio
Garcia de Carvalho, o Dr. João Alves Ferreira e o Dr. Dias de Azevedo. Médicos
como o Dr. Pessegueiro e o Dr. Carlos Lima e outros tive-ram uma intervenção
ocasional.
O médico Dr. Abílio de Carvalho foi
um homem lutador e empreendedor e católico militante; como muitas vítimas da
Primeira República, viu em Salazar o redentor da Pá-tria. Orgulhava-se de
pertencer à sua geração e propagan-deou com convicção os ideais que o animavam.
Durante alguns anos, esteve à frente dos destinos da Câmara povei-ra, onde deixou
obra meritória.
Hoje interpela-nos. Como ele, muitos
homens e mulheres, inteligentes e generosos, se colocaram sob a bandeira do
salazarismo. Só por demagogia se pode pretender condenar em bloco tanta gente
pensante e comprovadamente honesta.
Aliás nos estudos da Alexandrina, o
lugar de Salazar, sem ser duma importância grande, é incontornável.
Para uma visão global da biografia do
Dr. Abílio de Carvalho, consulte-se a minha Página de Cultura Poveira:
http://www.eseq.pt/trab_profs/Garcia_Carvalho.htm
O Dr. Abílio de Carvalho aparece a
cuidar da Alexandrina em dois mementos diferentes, mas relacionados: quando ela
tem dezasseis/dezoito anos, ainda no contexto das sequelas do salto, e em 1938,
quando, ao reviver a Paixão, readquiria a capacidade motora perdida.
Veja-se, para começar, esta citação
do livro do Pe. Pinho No Calvário de Balasar, pág. 23:
Depois
(a Alexandrina) sempre melhorou um pouquinho e foi para a Póvoa a fim de
continuar o tratamento. Mas vendo que pouco adiantava, foi ouvir a opinião de
outros médicos, entre eles o especialista do Porto Dr. Abel Pacheco, que a
submeteu a uma exame rigorosíssimo. Nesta ocasião a Alexandrina chorava muito
com dores e com vergonha. O Sr. Dr. Abel Pacheco informou o médico assistente,
que nessa ocasião era o Dr. Garcia, de que a doente não tinha cura. É claro que
ela não sofreu este desgosto, porque e a família soube encobri-lo.
Como consta da biografia do Dr.
Abílio de Carvalho para que remeti, este abriu consultório na Póvoa em 1919. A
ida da Alexandrina ao Porto ao especialista Dr. Abel Pacheco aconteceu em 1922.
O mais provável é que ela já frequentasse o Dr. Garcia – que é o Dr. Abílio de
Carvalho – talvez desde 1920. E foi ele com certeza quem lhe receitou a cura
marinha.
Para o Dr. Abílio de Carvalho, a
Alexandrina devia ser uma doente especial, pois terá visto nela desde o
princípio uma heroína, ao modo de Santa Inês ou de Santa Maria Goretti (só
canonizada mais tarde).
O seu consultório ficava perto do
actual Quartel dos Bombeiros da Póvoa. A Alexandrina viveria no n.º 33 da Rua da
Junqueira, a umas duas centenas de metros.
Continuemos a ouvir o Padre Pinho:
Andou a pé durante dois anos,
sofrendo fisicamente muito. Continuou sempre em tratamento. Sabendo a mãe que
não havia esperanças de a curar pelo médico que a tratava
(o Dr. Abílio de Carvalho), pediu-lhe que consultasse outro que vivia perto
da sua aldeia, para evitar despesas que tinha em a levar à Vila (Póvoa de
Varzim). Com isso, a Alexandrina desgostou-se muito, porque estava habituada
com ele.
«Desgostou-se muito, porque estava
habituada com ele», certamente também porque havia entre os dois muito clara
comunhão de empenhamento religioso; ardia nos dois o mesmo fogo. Não vai o Dr.
Abílio de Carvalho dissertar sobre o tema da Eucaristia no Congresso Eucarístico
da Póvoa? E um dia não há-de inscrever a Alexandrina no Apostolado dos Doentes,
que fundara?
Passou depois a ser médico assistente
da Alexandrina o Dr. João Alves Ferreira, de Macieira de Rates.
Quando, muitos anos adiante, ao
reviver a Paixão, a Alexandrina readquiria a capacidade motora, o Pe. Pinho
sentiu necessidade de ouvir a voz dos médicos, como escreve em No Calvário de
Balasar, pág. 146:
Convidaram-se, antes de mais
ninguém, o médico assistente, Dr. João Alves Ferreira, e o Dr. Abílio Garcia de
Carvalho, da Póvoa de Varzim, a presenciar alguns desses êxtases da Paixão.
O Pe. Pinho vivera alguns anos na
Póvoa de Varzim (fora aí que criara a revista eucarística Cruzada) e certamente
aí conhecera este dinâmico Dr. Abílio de Carvalho. Havia sido até na Basílica do
Sagrado Coração de Jesus (então ainda em construção) que este lera em 1925 a sua
intervenção no Congresso Eucarístico. Além disso, anunciava os seus serviços no
jornal A Voz do Crente, a que indirectamente o nome do Pe. Pinho estaria
ligado.
Mas havia outra razão, mais clínica:
era razoável que começasse por ser ouvido o médico que tratara a Alexandrina ao
tempo em que ela perdera a capacidade de se movimentar. Além disso, o Dr. Abílio
de Carvalho fazia radiografias, o que devia ser raro no tempo e foi visto como o
meio de diagnóstico prometedor.
Num relatório de 24/4/45, o Pe. Pinho
refere-se assim à actuação do Dr. Abílio de Carvalho neste período:
Eu mesmo fui o primeiro a ficar
perplexo, não sobre os êxtases mas sobre os movimentos
(que readquiria no momento da Paixão). Por este motivo interessava-me saber
com certeza qual o género da sua paralisia. Falei disso ao Dr. Abílio de
Carvalho, que já tinha tratado a doente; interessou-se e levou-a ao Porto, ao
Dr. Roberto de Carvalho, em Dezembro de 1938.
O
Dr. Roberto de Carvalho era um especialista de radio-logia, que fora companheiro
das lutas académicas do Dr. Abílio de Carvalho (mas não eram familiares, apesar
do apelido comum) ao tempo do CADC. (Ele e o Dr. Pesse-gueiro, que também vai
reaparecer adiante.)
A confirmar as palavras do Pe. Pinho,
na biografia que o Pe. Gabriele Amorth dedicou à Alexandrina, vem uma fotografia
em que o Dr. Abílio de Carvalho está de cócoras ao lado dela, que, em êxtase,
revive a Paixão. Diz a legenda que o «Dr. Abílio tenta em vão separar as mãos de
Alexandrina, unidas no momento da flagelação».
Na Autobiografia, a Alexandrina,
referindo-se a este período, ditou:
Sucederam-se a estes
(aos exames dos teólogos) os dos médicos, que foram bem dolorosos, deixando o
meu corpo em mísero estado. Parecia-me que andava a ser julgada de tribunal em
tribunal, como se tivesse praticado os maiores crimes. Quanto me custava vê-los
entrar no meu quarto e, depois de me examinarem e observarem, vê-los reunir-se
numa sala para discutirem e minha causa, deixando-me sob o peso da maior
humilhação.
Se não me engano, foi na terceira
crucifixão que vieram os médicos examinar o meu caso. É difícil e sei que não
posso descrever todo o meu sofrimento. Deixavam o meu corpo martirizado, mas
outras coisas havia que me custavam muito mais. A vergonha que me faziam passar!
Triste cena eu fazia diante deles! Nem a maior criminosa seria julgada num
tribunal com mais cuidado! Se pudesse abrir a minha alma e deixar ver o que nela
se passa, porque estou a reviver esses dias, fá-lo-ia só com o fim de fazer bem
às almas, mostrando quanto sofro por amor de Jesus e das almas. Foi só por isto
que me expus a tais sofrimentos.
Quando o meu Director espiritual
me falou em ser examinada pelos médicos, foi para mim um grande tormento, uma
grande barreira que se levantou em minha alma.
E ainda isto era o princípio. Outras
idas ao Porto, principalmente ao Refúgio de Paralisia Infantil, foram muito mais
dolorosas.
Na pág. 147 do livro do Pe. Pinho,
transcreve-se uma carta do Dr. Roberto de Carvalho dirigida ao Dr. Abílio de
Carvalho. Veja-se:
Meu prezado amigo e colega,
O estudo analítico da coluna
lombar, sacro, articulações sacro-ilíacas e articulações coxo-femurais não
mostra a existência de qualquer lesão óssea evidente. Os corpos vertebrais, os
espaços intervertebrais, os contornos ilíacos, dum modo geral, toda esta
estrutura é regular e normal, como se verá pelo cliché junto, não havendo
qualquer sinal que nos leve a pensar em lesões ósseas propriamente ditas,
parecendo portanto, que as suas perturbações tróficas devem estar relacionadas
com qualquer processo de mielite, lesão medular, que não é fácil de estudar,
como é sabido, pelo exame radiológico. É um caso para ser internado e estudado
convenientemente, porque com o estádio geral que a doente apresenta e sem um
estudo cuidadoso do caso, não é possível formar qualquer hipótese.
Com os cumprimentos do amigo
grato,
R.C.
Em Balasar há duas cartas deste Dr.
Abílio. Uma dirigida ao P.e Pinho e outra talvez ao Prof. Roberto de Carvalho,
trazendo o papel nas duas o timbre da presidência da câmara poveira. Nelas se
mostra deveras interessado em concorrer para o esclarecimento das dúvidas sobre
a doença da Alexandrina.
Exprime-se assim na que julgo
dirigida ao Dr. Roberto de Carvalho:
Meu caro colega
Agradeço as suas notícias.
Entendo que terá a doente de ir ao
Porto e lá permanecer dois ou três dias para ser observada. Espero a fineza de
me dizer o dia em que ela vai, para eu lá ir com o meu colega num dos dias, a
fim de que o Dr. Pessegueiro a veja, se o colega concordar.
Seu amigo e colega,
Abílio de Carvalho.
Veja-se agora a que é dirigida ao P.e
Pinho:
Ex.mo Senhor P.e Pinho e meu muito
prezado amigo
A minha vida muito trabalhosa e o
meu estado de saúde muito precário durante alguns dias, entre os quais os
últimos da semana finda, obstaram a que eu pudesse ir na sexta-feira à rua de
Santa Catarina, como desejava.
O Dr. Pessegueiro
(companheiro de juventude do Dr. Abílio, como já se disse) fez-me a vontade
indo ver a doente; acredito porém que a sua observação fosse superficial, porque
se não tratava de assunto da sua especialidade; porém, o que eu despejava não
era uma opinião sobre os factos, e antes um exame físico tanto quanto possível
completo; não interpretou assim, o que foi pena.
Ao falar anteontem com ele,
disse-me que na verdade se inclinava para a hipótese de alta histeria; porém,
que a doente deveria ser observada com cuidado por especialista no assunto.
Também assim o julgo; e por isso acho óptima a ideia de que seja vista pelo
prof. Elísio de Moura, incontestavelmente uma das mais altas competências e
sumidades no assunto; estou certo que a sua opinião dissipará nossas dúvidas.
Eu não tenho senão relações de
cumprimento com S. Ex.a; não deseja V. Rev.a trazê-lo na sexta-feira, 30 do
corrente? Eu conto cá estar e, caso V. Ex.a me previna de que vem, eu procuraria
também assistir, para trocar impressões.
A radiografia que tenho e da qual
envio o relatório (é o único) nada revela, não confirmando as minhas suspeitas
de lesão vertebral.
Precisamos
caminhar com toda a prudência, e para tal convém sobretudo a opinião do Prof.
Elísio de Moura. Ainda bem que ele vem a Braga nas férias. V. Ex.a, se assim o
entender, poderá mostrar-lhe esta carta, a fim de que ele faça a caridade de vir
dissipar as dúvidas.
Agradecendo a acarta de V. Ex.a,
tenho a honra de me subscrever amigo ...
14/12/938
Abílio de Carvalho
«Precisamos caminhar com toda a
prudência, e para tal convém sobretudo a opinião do Prof. Elísio de Moura»,
afirma. Com prudência e insistência até ao esclarecimento completo, recorrendo
às pessoas mais credenciadas. Mas esse esclarecimento só vai ser adquirido mais
tarde.
O Dr. Abílio de Carvalho morreu em 26
de Janeiro de 1941, com um cancro no estômago. Ora fora nesse mesmo Janeiro que
o Dr. Manuel Augusto Dias de Azevedo se apresentara ao Pe. Pinho a pedir
autorização para visitar a Alexandrina. Mas o Dr. Abílio de Carvalho já se teria
retirado de Balasar desde há algum tempo, não só pela doença que a acometera,
mas também porque fora nomeado governador civil de Angra do Heroísmo. Como quer
que fosse, a Alexandrina passou das mãos dum médico sábio e piedoso para as de
outro com estas mesmas qualidades e com determinação, com aquela força de
vontade que vence as barreiras.
Antologia
«A Eucaristia
e a Medicina»
O Dr. Abílio de Carvalho, como já
está dito, foi um católico militante, daqueles que não deixam fugir as
oportunidades que lhe surgem e as criam quando elas não aparecem. Por isso,
quando, em 1925, – o ano em que a Alexandrina acamou – se realizou na Póvoa um
Congresso Eucarístico Diocesano, ele interveio com uma conferência. Deu-lhe o
título de «A Eucaristia e a Medicina».
Este título parece-nos hoje estranho,
mas não o seria tanto na altura. O Pe. Leopoldino Mateus, que viria a ser pároco
de Balasar, era então coadjutor da Matriz poveira. No escrito que publicou no
opúsculo com que então se quis levantar o ânimo das gentes da Póvoa para o
Congresso, encontra-se esta frase:
Depois, como no actual regime
da Primeira República fosse proibido levar o Sagrado Viático aos Doentes,
parece que tinha esmorecido a fé dos poveiros a Jesus-Hóstia, mas não!
Certamente as leis anticlericais de
então davam acuidade acrescida ao tema «A Eucaristia e a Medicina». Ao
justificar o imprimatur para a publicação impressa da conferência, o
cónego L. de Almeida evocava o «funesto preconceito de que a recepção dos
sacramentos agrava o mal dos doentes».
«A Eucaristia e a Medicina» é um
título de glória para o Dr. Abílio de Carvalho, pois que mereceu ser transcrita
em jornais portugueses, mas também espanhóis e franceses.
O autor pediu a vários notáveis do
tempo apoio para o seu trabalho. E recebeu-o, por exemplo, de dois homens que
mais tarde haveriam de intervir no caso da Alexandrina. Vejam-se estas «três
sínteses que enviou o Dr. Henrique Gomes de Araújo, «especialista dos mais
brilhantes em doenças nervosas, que todo o norte do país conhece e admira», e
que havia de receber a Alexandrina durante 40 dias no seu Refúgio de Paralisia
Infantil:
1.ª - «A Eucaristia, como todos os
actos de alta sublimação espiritual, deve contribui, contribui com certeza, para
a concentração da consciência num sentido bem determinado e preciso, capaz de
impedir ou atenuar as manifestações ou ambições da carne, as funções da matéria
(do prazer ou da dor) poupando assim a deturpação ou conspurcação, a depressão
do ser humano.»
2.ª - «A Eucaristia, servindo de
fulcro às manifestações da nossa vida mental, congrega-as em sal volta, dá-lhes
forma especial própria, e isto constituirá um carácter – um tipo de vida
psíquica purificada, sublimada, perfeita, perfeita sobretudo em confronto com a
vida mental dos amorfos, mormente daqueles que não dispondo de um intenso
potencial de inteligência, resolvem tudo pela via do menor esforço, segundo a
expressão de um teísta francês.»
3.ª - «De resto a Eucaristia (e esse
será o seu menor papel) pode como agendes de acentuadas emoções preparar o
espírito com toda a receptividade para qualquer injunção sugestiva, em regra
felizmente boa pela casta dos coniventes daqueles que procuram tão elevado
sacramento.»
O Dr. Abel Pacheco, já acima
referido, «um dos maiores cirurgiões portugueses na actualidade», foi menos
sintético na resposta ao Dr. Abílio de Carvalho:
«A acção subjectiva que a sagrada
Hóstia exerce em todos os crentes que a doença prostra não se discute. Tal a sua
evidência.
Eu repto quem quer que seja a
demonstrar-me o contrário.
Os incrédulos, aqueles que nunca
souberam o que é o gozo espiritual da comunhão, não podem avaliar directamente o
valor da graça divina concedida ao homem nesse sacramento, como o coo nada pode
dizer de positivo sobre a luz, cujo efeito soer a retina eles desconhece em
absoluto.
O que eles sabem, o que eles têm
observado é que muitos doentes cuja crença vívida ou
despertada
pelo abalo moral que a doença causa ao espírito, vivendo em comunhão com Deus ou
reconciliando-se com Ele pelo sacramento da penitência, passam, depois da
administração da Sagrada Hóstia, por transmutações tão singulares que ainda os
mais mal intencionados não podem deixar de registar.
E assim deve ser.
O homem não é só um bloco de matéria
que se pulveriza quando as forças físico-químicas se desorganizam.
Junto ao coração que pulsa, há o
espírito que pensa, há uma inteligência que perscruta o mistério insondável,
quer no domínio da ciência empírica, quer no domínio do imponderável e
imaterial, há uma razão que de dedução em dedução sobe dos infinitamente
pequenos até ao Infinitamente Grande que rege o Universo, a Terra onde vivemos.
Ao lado das paixões que nos arrastam,
sentimos todos a voz da consciência que nos acusa e somos amparados pela vontade
que quer a felicidade, que a razão nunca encontrou no seio da Terra.
Ao contemplar a natureza, que muda ou
que morre, seguindo uma lei imutável que a subjuga, a humanidade sobe até Deus
ou seja pela filosofia simplista do rude, quer seja pelo douto raciocino do
sábio.
Deus é o fulcro à volta do qual gira
toda a humanidade sob o império do dever moral.
Todo o compêndio da religião se
resume neste capítulo. A humanidade pois só descansa em Deus, porque vive só
d’Ele e para Ele.
Sendo assim, a vida só é perfeita
quando há equilíbrio dinâmico sob o ponto de vista orgânico e ligação estreita
com Deus sob o ponto de vista espiritual.
Desviemos o homem do seu estado de
equilíbrio orgânico, teremos uma doença cujos sintomas nos demonstram a
qualidade e a sede do desequilíbrio.
Separe-se ele do seu centro
espiritual de gravitação e tê-lo-emos sob o império do remorso que o definha e
oprime.
Ambos os males são doenças que
prostram, deprimem e matam.
As doenças do espírito não são menos
inquietantes que as do corpo.
Depois destas breves considerações,
que a mais íntima ligação da alma com Deus é um remédio de valor extraordinário,
colocando o doente em condições de mais fácil cura?
Acaso o doente pode viver sem
espírito?
E sendo a vida do espírito mais
perfeita, não lucra por isso o corpo que o serve?
A
propósito vem um dos mais extraordinários casos da minha vida de cirurgião.
Uma rapariga cuja conduta era mais
que repreensível tinha de sujeitar-se a ma operação gravíssima, cujo resultado
era tanto mais aleatório quanto frágil era a resistência cardíaca.
Foi preparada com todos os agentes
medicamentosos que a ciência dita e, quando julguei o momento oportuno,
intervim.
A operação não foi a termo porque uma
grave síncope cardíaca impôs a suspensão.
Passaram-se horas aflitivas de
angústia e ansiedade, visto que a terapêutica não lograva levantar o coração que
a cada momento ameaçava nova síncope fatal.
Pois bem: a doente confessou-se,
comungou, não tomou mais remédio algum e, no dia seguinte, eu fui encontrá-la
livre de perigo.
O meu testemunho aí fica.
A lição recebemo-la nós, os médicos,
todos os dias.»
Estas transcrições dão
verdadeiramente o mote de toda a conferência. Mas ainda assim vale a pena citar
um caso da experiência pessoal do conferencista – e portanto da experiência de
muitos dos seus ouvintes poveiros. Conta ele:
«Há pouco ainda tive um caso que me
parece interessante descrever para corroborar as afirmações feitas.
Por ocasião da última epidemia de
gripe, em Março deste ano, fui chamado para tratar uma doentinha de oitenta
anos. Eis o seu estado:
Um forte ataque de gripe, agravado de
congestão pulmonar no terço superior do pulmão direito, temperatura a 40 graus,
língua seca, abundante expectoração hemoptóica, etc.
O prognóstico, como V. Ex.as vêem,
era mais que reservado.
Esta senhora é profundamente
religiosa; nada lhe importa a morte, porque o seu desejo é ir para Deus.
Porém, para tão longa viagem desejava
ir preparada com todos os sacramentos; e por isso estava um pouco excitada antes
de eu chegar, para saber se o seu estado era de molde a receber A Extrema-unção;
uma vez recebido este sacramento, ficou completamente tranquila; e tão santa
indiferença pela morte permitiu que os remédios actuassem eficientemente.
O coração de oitenta anos manteve-se
com a medicação habitual; a congestão pulmonar cedeu; a febre passou; e, ao fim
de cerca de trinta dias, a doente levantou-se, e hoje vive entregue aos seus
habituais lavores, ali na Rua da Igreja.
A conferência, ainda assim, é bem
mais do que isto. Mencionam-se, por exemplo, vários milagres cientificamente
comprovados no Santuário de Lurdes.
Em 1939, o cónego Vilar, natural
de Terroso (que foi, como sabemos, um importante amigo da Alexandrina), foi
nomeado Reitor do Colégio Português de Roma. O facto motivou merecida homenagem.
Dela resultou o livro O
Senhor Cónego Vilar. O Dr. Abílio Garcia de Carvalho participou na homenagem
na qualidade de presidente da edilidade poveira:
«Finalmente levantou-se o Sr. Dr.
Abílio Garcia de Carvalho, um trabalhador dedicado e desinteressado a bem da
Póvoa de Varzim, sua terra adoptiva..., e outro amigo e admirador do Sr. Cónego
Pereira Vilar. Perguntou se mais alguém desejava falar e, como ninguém se
erguesse, apresentou a S. Rev.a os cumprimentos do Município inteiro, ali
representado por todos os membros da Câmara.
‘Ex.mo Sr. Cónego Vilar e meus
Senhores:
A Câmara Municipal da Póvoa de
Varzim, representada por todos os seus membros aqui presentes, quis vir de
longada até esta cidade para apresentar a V. Ex.a, em nome do concelho da Póvoa,
respeitosos cumprimentos de admiração e de despedida.
É-nos sumamente grato venerar e
prestar homenagem ao poveiro ilustre que V. Ex. é, em quem o talento e a virtude
se associam de tal modo e em comunhão tão íntima que todas as almas boas que um
dia tiveram a felicidade de o conhecer tomam para si uma quota-parte dos seus
triunfos, das suas alegrias, e também das suas tristezas; por isso aqui estamos,
pois não podiam os edis da terra de V. Ex.a deixar de lhe apresentar os
cumprimentos de despedida da Póvoa inteira, acompanhando a freguesia de Terroso
nesta magnífica homenagem.
Temos como certo, Sr. Cónego Pereira
Vilar, que dificilmente o espírito público do nosso concelho nos poderá um dia
incumbir de delegação mais distinta e mais unânime; porque se V. Ex.a deixa
vivas saudades entre nós, e ao mesmo tempo nos deixa a certeza da falta imensa
que nos faz neste momento de graves preocupações sociais, em que a actuação da
sua personalidade veneranda, quer pela palavra falada ou escrita, quer pelo
trabalho canseiroso do seu apostolado são exemplo vivo e lição proveitosa e
constante de que carecemos, também em compensação nossas almas sentem justa
satisfação por reconhecermos com sumo prazer e honra que Sua Santidade, o
insigne Pontífice Pio XII, tem os olhos postos em V. Ex.a, escolhendo-o para
missão nobre e honrosíssima na Cidade Eterna.
A carreira de V. Ex. será sempre e
justissimamente ascencional; e esperamos, Senhor, que a Póvoa será mais honrada
ainda quando tiver a dita de contar, entre os seus filhos mais queridos, um
Prelado sábio e piedoso, tão sábio quanto piedoso.
Que Deus o reconduza de novo à
Pátria, para perto da sua ilustre e muito virtuosa família, são os votos que
formulamos neste instante em que desejamos a V. Ex.a muito boa viagem e as
maiores felicidades no desempenho do alto cargo para que foi justamente
escolhido.’»
Tudo te hão-de
chamar, Abílio
A dinâmica inovadora e criativa
que o Dr. Abílio Garcia de Carvalho impôs à gestão municipal não conseguiu
silenciar os detractores. Apesar de crer que ele tinha estofo de verdadeiro
santo, talvez mesmo por isso, foi também sinal de contradição.
Ouçam-se as palavras que, em 1939,
lhe dirige a este propósito o amigo Pedro Correia Marques, no prefácio das
Festas de homenagem a Braga, Barcelos, Guimarães e Famalicão:
Quanto às vilanias que topares pelo
teu caminho, lembra-te daquelas palavras que o grande Camilo escreveu a respeito
do Conde de Azevedo:
“Era um homem de bem. Para lhe
chamarem nas gazetas facínora, caipira, besta e ladrão, foi necessário que
governasse o distrito de Braga em 1845. Desde que esquivou na poltrona da sua
biblioteca o osso sacro aos pontapés da política, volveu a ser, por comum
assentimento de todos os partidos, um espírito recto, muito esclarecido e digno
de exercer os cargos superiores do Estado.”
Tudo te hão-de chamar, Abílio, tudo
farão para te desgostarem do trabalho, para te aborrecerem da obra que estás a
realizar com tanto desvelo e tanto amor ao Bem Comum, ao Bem da Nação.
Prof. José Ferreira
|