Homilia para a Jornada Mundial do
Doente
na memória de Maria, Nossa Senhora de Lurdes
Génova, Catedral de São Lourenço,
11 de Fevereiro de 2005
Também este ano Nossa Senhora, no
aniversário da sua aparição em Lurdes, nos guia para
Jesus presente na
Eucaristia e nos entrega aos braços abertos de Jesus Crucificado, nosso
salvador.
Entrega ao Senhor todos os doentes do
mundo, que participam no sacrifício redentor e todos aqueles que em nome
de Cristo se fazem bons Samaritanos, inclinando-se com amor para quem
sofre no corpo e no espírito.
Agradeço a todas as
associações de
voluntariado e de caridade aqui presentes e a todos aqueles que
contribuem para aliviar a dor e para tornar concretos os sonhos de
es-perança de tantos nossos irmãos.
A Madre Teresa de Calcutá disse : « A
doença mais grave que pode afligir uma pessoa é não ser amado. A
verdadeira cura está nas mãos desejosas de servir e nos corações
desejosos de amar ».
1.
A Eucaristia: Jesus para nós
O propósito de Jesus de dar a vida por nós é
expresso de modo pleno e simbolicamente denso na instituição eucarística, no
momento em que exprime com palavras, sinais, gestos, esta sua vontade de
oferecer-se por nosso amor, para a nossa salvação, perante o Pai, até às últimas
consequências.
Sempre que celebramos a
Eucaristia, vivemos o êxodo de Jesus : a saída voluntária de Jesus de si
para nós, por nosso amor. Como diz Paulo: « Anunciamos a morte do Senhor
até que Ele venha » (cfr 1 Cor 11,26).
Parece-me que é este o
sentido do sacrifício eucarístico: a vontade irrevogável, irremovível de Jesus
de morrer pela nossa salvação. Uma vontade, um propósito que compreende toda a
sua vida – nascimento, vida desconhecida, vida pública, pregação, milagres; e
depois a paixão, as torturas, os insultos, a flagelação, o caminho da cruz, a
crucifixão, a morte, a ressurreição e a ascensão ao Pai – e que se tornou
sensível, sacramental, símbolo real na Eucaristia, o símbolo simplicíssimo do
pão comido e do sangue vertido por nós.
Naturalmente a
Eucaristia é um mistério. Nós acumulamos palavras para exprimir alguma coisa que
está para lá do nosso entendimento, pedindo ao Senhor que transforme em
Eucaristia a nossa vida.
2.
E nós para a Eucaristia ?
É fácil compreender o que é a Eucaristia para
nós. E que fazemos nós pela Eucaristia, isto é, por Jesus que se doa
irrevogavelmente no mistério pascal até à morte na cruz ?
a)
Deixar-se amar
Penso que antes de mais não devemos « fazer »
alguma coisa – nós pensamos instintivamente em gestos do culto –, mas
deixar-nos amar.
Frente à Eucaristia devemos deixar-nos salvar,
purificar por Jesus, deixar que seja ele a fazer tudo e receber a sua vida com
gratidão. Não temamos estar em silêncio, não encontrar nada para dizer, porque é
ele que nos fala, que nos vem ao encontro com todo o peso da sua decisão de amor
que quer lançar sobre nós; em suma deixemos que Jesus seja Eucaristia, salvação,
perdão, piedade, ternura, afecto, purificação para nós. Deixemos que Jesus seja
Jesus.
Poderemos então viver o culto espiritual e o
culto eucarístico.
b)
O culto espiritual
Parece que da Eucaristia nos vem sobretudo o
convite de Jesus a celebrar o nosso culto espiritual, com a oferta do nosso
corpo.
Reencontramos aqui o versículo revelador de
São Paulo na Carta aos Romanos (12, 1) : « Exorto-vos pois, irmãos, pela
misericórdia de Deus, a oferecer os vossos corpos como sacrifício vivo, santo e
agradável a Deus. É isto o vosso culto espiritual ».
O Apóstolo diz que o nosso culto é sobretudo
oferecer os nossos corpos. E os nossos corpos são a nossa vida em to-da a sua
fisicidade, em toda a sua extensão, o dia e a noite, a juventude e a velhice,
a saúde e a doença, o sucesso e o insucesso, a alegria e a dor, o entusiasmo
e a depressão. Tudo seja doado como sacrifício vivo, oferecendo-nos a Deus como
Jesus se deu a nós e ao Pai. Muitas pessoas realizam, talvez sem disso estarem
cons-cientes, este culto espiritual quando vivem honestamente, amam a família,
vivem com serenidade a fadiga do trabalho ou do estudo, se sacrificam, aceitam
com paciência situações difíceis e dolorosas.
Sacrifício vivo, pois, não simplesmente um
rito ou uma celebração; sacrifício santo, porque nos purifica, nos afasta da
conivência como mal; e sacrifício agradável a Deus.
Que também o nosso ministério é culto a Deus,
recorda-o claramente São Paulo no início da Carta aos Romanos : « Deus, a quem
presto culto no meu espírito anunciando o Evangelho do seu Filho, me é
testemunha de que eu me recordo sempre de vós » (1, 9). O culto do Apóstolo é
sobretudo e concretamente pregar o Evangelho. Leiamos também em Rm 15,
16 : « Foi-me concedida da parte de Deus a graça de ser um ministro de Jesus
Cristo entre os pagãos, exercitando o ofício sagrado do evangelho de Deus para
que os pagãos se tornem uma oblação agradável ». Pregando, vive o seu culto
espiritual, a fim de que os mesmos pagãos possam oferecer-se a Deus, com uma
oblação que é precisamente a Eucaristia vivida.
Quero fazer mais duas citações. A
primeira encontro-a na Carta aos Efésios : « Fazei-vos pois imitadores de Deus,
como filhos caríssimos, e caminhai na caridade, do mesmo modo que também Cristo
vos amou e se deu a si mesmo por nós, oferecendo-se a Deus em sacrifício de
suave odor » (5, 1-2). « Caminhar na caridade » quer dizer viver o culto
espiritual, o culto da vida.
A segunda citação, encontramo-la na Primeira
Carta de Pedro, onde uma série de pensamentos, ricos de novos símbolos, regressa
ao tema da oferta. « Unindo-vos a Cristo, pedra viva, rejeitada pelos homens,
mas escolhida e preciosa diante de Deus, também vós vos empenhai como pedras
vivas na construção dum edifício espiritual ».
A primeira metáfora é a do templo: vós sois
pedras do templo de Deus, que tem a sua pedra angular em Jesus. Mas a comparação
alarga-se e transforma-se : « para um sacerdócio santo, para oferecer
sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por meio de Jesus Cristo » (2,4-5).
Todo o cristão, pois, é sacerdote; e sobre isto Pedro insiste no versículo 9 :
« Vós sois a raça eleita, o sacerdócio real, a nação santa ».
Esta é pois a primeira consequência da
Eucaristia : a oferta da vida quotidiana, a que fazemos todos os dias na
oração matutina : « Ofereço-Vos, Senhor, no coração de Cristo, todas as acções,
as orações, os sofrimentos, as alegrias deste dia ». Este é o nosso culto
fundamental, que depois se exprime na caridade, no amor, em todas as obras de
misericórdia.
3.
O culto eucarístico
Exprime-se através das celebrações que a
Igreja promove desde o seu início, segundo a doutrina e os gestos exemplares dos
Apóstolos : de modo especial através da S. Missa e a adoração Eucarística.
Depois de Maria, a mulher Eucarística para excelência, um modelo de fé e de
experiência eucarística é Alexandrina
da Costa, portuguesa. Alexandrina é uma
« pérola » na historia da santidade e da mística, pela riqueza espiritual que
nos deixou através das numerosas páginas do seu diário e das cartas, quase todas
ditadas à irmã Deolinda que esteve com ela durante os longos trinta anos
passados no leito, porque paralisada desde a idade de 20 anos.
A vocação de alma vítima e o tipo de
experiência mística aproximam-na doutras duas grandes
místicas de 1900 : a francesa Marthe Robin (1902-1981) e a alemã Teresa Neumann
(1898-1962). Três mulheres, leigas, quase contemporâneas, de família aldeã,
associadas a uma vida de digna pobreza e duma experiência mística que se insere
na história do século XX, atravessado pelos dramas das duas guerras mundiais, do
surgir do sistema totalitário comunista na Rússia e sucessivamente do nazismo em
Alemanha, duma luta e perseguição à Igreja, que no século passado contou um
elevado número de mártires. O que as une, no plano da experiência mística, é não
só a comum vocação de almas-vítimas, até reviver no próprio corpo a Paixão de
Cristo, mas facto ainda mais extraordinário na história da mística do século
passado, todas três viveram em jejum total, alimentando-se somente da
Eucaristia por um longuíssimo tempo : 50 anos Marthe Robin, 36 Teresa
Neumann e 13 Alexandrina. Mons. Angelo
Comastri, Arcebispo de Loreto, classificou-os com propriedade como os "milagres
eucarísticos" do século XX.
4.
O testemunho da B. Alexandrina
Alexandrina
nasceu em Balasar, uma paróquia do Norte de Portugal, em
quarta-feira
da Semana Santa, a 30 de Março de 1904. O seu nascimento foi precedido dum facto
de natureza extraordinária ocorrido na festa do Corpo de Deus, em 21 de Junho de
1832. Na estrada que levava ao lugar do Calvário, lugar onde viveu
Alexandrina, uma cruz aparecera na terra, de cor diversa da do restante
terreno e, não obstante todas as tentativas da parte do pároco de apagá-la
usando mesmo água, a cruz reaparecia.
Um documento da época, redigido pelo pároco,
lembra este acontecimento e uma pequena capela foi depois construída para
proteger a cruz, tornada entretanto meta de numerosas peregrinações. Este sinal,
que antecipava já aquela que haveria de ser a vocação de Alexandrina como
alma vítima, foi confirmado pelo próprio Jesus durante o êxtase de 5 Dezembro de
1947 :
Quase um século era passado que eu mandei
a esta privilegiada freguesia a cruz para sinal da tua crucifixão. Não a mandei
de rosas, porque a não tinha, eram só espinhos; nem de oiro, porque essa, com
pedras preciosas, serias tu com as tuas virtudes, com o teu heroísmo a
adorná-la. A cruz foi de terra, porque a mesma terra a preparou.
Estava preparada a cruz; faltava a vítima,
mas já nos planos divinos estava escolhida ; foste tu.
Desta cruz, desta imolação, tirei dois
proveitos: o amor à cruz, o amor à minha imagem crucificada e uma grande
reparação. Não é só a minha Alexandrina a ser na cruz crucificada, mas
Cristo nela e com ela...".
* * *
Desde a idade de 20 anos, a Alexandrina
viveu no leito paralisada por causa de uma mielite na espinha dorsal,
consequência dum salto dado aos 14 anos da janela da casa para fugir a três
homens mal intencionados que com violência lá tinham entrado. Na solidão do seu
quartinho, Alexandrina tornou-se o anjo consolador de Jesus Eucaristia,
presente em todos os Sacrários do mundo, e, ao mesmo tempo, hóstia na Hóstia
divina, aceitou ser com Jesus imolada pela conversão dos pecadores e pela
salvação das almas. A partir de 1935, foi porta-voz de Jesus para o pedido da
Consagração do mundo ao Coração Imaculado de Maria, efectuada por Pio XII em
1942.
Durante os anos que precederam a consagração
do mundo a Nossa Senhora,
Alexandrina
reviveu misticamente a Paixão de Jesus no corpo e na alma todas as sextas-feiras
desde as 12 até às 15 horas. Foi este o sinal dado pelo Senhor para comprovar o
seu pedido. Quando o Papa consagrou o mundo, terminou para Alexandrina a
experiência mística da crucifixão visível no corpo, mas continuou a interior, a
agonia da alma, e iniciou o jejum total que se prolongou pelos últimos 13 anos
da sua vida, durante os quais viveu só da Eucaristia.
Entre os muros do seu quartinho,
Alexandrina recebeu multidões de pessoas, que acolhia sempre sorrindo, não
obstante os grandes sofrimentos que ininterruptamente vivia no corpo e no
espírito. Escondia toda a dor por trás do sorriso, através do qual comunicava
Jesus a vida divina às almas, tocando os corações de quantos a visitavam e que
dali saíam levando em si o toque da silenciosa mudança interior. A 13 de Outubro
de 1955, aniversário da última aparição de Fátima, às 20h30 horas, depois de um
longuíssimo beijo no Crucificado, Alexandrina deixou o seu quartinho na
casa de "Rua do Calvário" para ir ao encontro do Senhor ressuscitado e com Ele
viver na Páscoa eterna. No Porto, na tarde de 15 de Outubro, as floristas
ficaram todas sem rosas brancas. Todas vendidas. Tinham sido enviadas a Balasar,
como homenagem floral a Alexandrina, que fora a rosa branca de Jesus. Foi
elevada à honra dos altares por João Paulo II em 25 de Abril do ano passado.
Alexandrina,
por vontade de Jesus, mostrou ao mundo o valor e o poder da Eucaristia, o que é
"a sua vida para as almas". Façamos dela um tesouro, caros fiéis e caros
doentes.
† Tarcisio
Card. Bertone
Arcebispo de Génova
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