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ARTIGOS SOBRE A BEATA ALEXANDRINA

A BEATA ALEXANDRINA
NA IMPRENSA PERIÓDICA DO SEU TEMPO

Uma mulher que não come nem bebe
há 6 anos e vive perfeitamente !...

Jornal de Notícias – 4/11/47

Haviam-nos falado da existência, em Balasar, no concelho da Póvoa de Varzim, de uma paralítica que viveria em regime de jejum integral. Conhecemos, da tradição, os grandes jejuadores da Índia, que conseguem passar largos períodos, 40 a 50 dias, sem ingerir alimentos, mas sabemos que se esses indivíduos não comem sólidos, não deixam porém de ingerir líquidos. Pelo que nos informavam, a doente de Balasar não comia nem bebia. Seria possível ? Mas então como se explica a sua existência – a sua sobrevivência ?

O assunto espevitou a nossa curiosidade jornalística – e decidimos tirá-lo a limpo tanto quanto os nossos meios permitissem.

Claro que a primeira ideia que nos acudiu foi ir à Póvoa.

Não se trata, aqui, como se entende, de pôr em prática a conhecida divisa de S. Tomé – « Ver para crer ». O facto de vermos a doente, e foi isso que tratámos de fazer, não quer dizer que nos desse a certeza de que ela se encontra em abstinência completa. Para tal seria preciso usar outros meios, que já não são da nossa competência.

Indicava-se uma observação demorada, uma vigilância permanente, durante muitos dias. Mas também esse pormenor não o descuramos, como o leitor verificará na altura própria. Por nossa parte, o que pretendíamos e o que conseguimos foi falar à paralítica, ouvir-lhe algumas palavras, colher uma impressão pessoal acerca da sua enfermidade e da sua psicologia.

A doente chama-se Alexandrina e tem presentemente 43 anos. Reside com sua mãe e sua irmã, na freguesia de Balasar, a 10 quilómetros da sede do concelho, numa pequena casa do lugar do Calvário, em cuja parede exterior se vê um azulejo com a imagem da Virgem.

À porta, quando chegámos, estacionava um automóvel. Um dos moradores do local, que nos havia indicado o caminho, elucidou-nos:

— São visitas.

E acrescentou :

— É uma excelente mulher. O que mais impressiona é que, não comendo nem bebendo, a sua aparência é relativamente magnífica. Fala pouco, mas é para todos duma grande doçura. E olhe que pensa como se fosse uma pessoa de saber.

E rematando, admirativamente :

— O que se passa com ela é um mistério !

Nesse momento saem as pessoas por quem o automóvel esperava. Depois de partirem, a Sra. Maria do Vicente, mãe da Alexandrina, manda-nos entrar.

A doente está meia deitada na cama, a cabeça e as costas amparadas em almofadas. O quarto, simples, com a claridade luzente que lhe vem duma janela ampla, está ornamentado por um crucifixo e várias imagens. Ao fundo do leito, sobre um cobertor fino, repousa um bichano de raça.

A Alexandrina, de sorriso aberto, espera talvez que lhe dirijamos a palavra. O rosto é sobre o comprido, a boca rasgada, a pele branca, um tudo-nada rosada. Seus olhos são pretos, duma luz brilhante, e os cabelos também negros, emolduram-lhe a fisionomia numa expressão de simpatia desafectada mas, tem 43 anos, mas não figura mais que 35.

Entrámos em conversa :

— Disseram-nos que não se alimenta.

— É verdade. Deixei de comer e de beber há seis anos.

— Mas não tem apetite ?

— Estou sempre enfartada.

— Repugnam-lhe os alimentos ?

— Não. Por vezes sinto até saudades deles.

— Então porque não aproveita essas ocasiões para tentar uma alimentação ligeira ?

— Não posso. Sinto-me bem.

— Mesmo bem ?

— É como quem diz: Passo bem, passando mal.

— Há que tempo está doente ?

— Trinta anos. Só há 13 é que tive a primeira grande crise. Dessa vez, torturada pelo vómito, sofri um jejum de 17 dias. Vieram depois outras crises, menos prolongadas. Quando elas passavam, voltava a comer. Por fim, quase só o comia fruta. Mas há seis anos veio a crise definitiva. Então deixei os alimentos por completo.

— O seu aspecto não deixa perceber isso.

— Cada um sabe de si. Compreendo que a minha doença tem despertado curiosidade e murmurações. Aflige-me que tal suceda: desejaria que não se preocupassem comigo. De mim já se tem falado demais. Se estivesse no meu poder, metia-me num buraco.

A Alexandrina fala porém sem aborrecimentos – fala naturalmente, dizendo o que sente. Essa simplicidade é transparente. Sofre, por certo, mas resiste com alegria, couraçada por uma decidida força espiritual, a sua fé.

Insistimos no interrogatório :

— E os médicos ?

— Os médicos – não dizem nada. Todas as semanas vem aqui o Sr. Dr. Azevedo, mas não me receita remédios. Há cinco anos estive em observação numa casa e saúde do Porto. Foram 40 dias de vigilância apertada, rigorosa. Mas regressei – daí como havia entrado para lá.

Passava meia hora. A enferma estava visivelmente fatigada. Despedimo-nos, fazendo votos pelas suas melhoras. Sorrindo, ela agradeceu-nos.

A história da enfermidade
a as conclusões clínicas que ela provocou

Se a Alexandrina estivera internada e vigiada, seria curioso saber quais as conclusões a que os médicos haviam chegado.

E foi precisamente esse facto que procurámos elucidar.

O internamento da doente verificou-se com efeito no Refúgio da Paralisia Infantil, de que é director o ilustre neurologista Dr. Gomes de Araújo. Das observações diversas e aturadas feitas durante o internamento, resultou um relatório, cuja leitura nos foi amavelmente facultada. Não seguimos os passos desse documento, em todos os seus pormenores, mas vamos aludir aos seus pontos essenciais, para uma melhor compreensão do estranho caso que nele se foca.

A Alexandrina foi vista em 1941, na clínica do Sr. Dr. Gomes de Araújo, onde compareceu com o seu médico assistente, Sr. Dr. Manuel Augusto Dias de Azevedo, de Ribeirão. O diagnóstico desse exame determinou uma paralisia ergástica por compressão.

Em Maio de 1943, o Dr. Gomes de Araújo, instado pelo Dr. Azevedo e outras pessoas, que lhe afirmaram que a doente deixara de se alimentar há 13 meses, visitou-a em Balasar, na companhia do Sr. Prof. Dr. Carlos Lima, e depois dum exame neurológico e psicológico, aconselhou o internamento, para observação e tentativas de terapêutica.

Em 29 de Julho desse mesmo ano, verificou-se a entrada da enferma no Refúgio, na Foz.

Sigamos agora passos mais curiosos da observação clínica, sob todos os aspectos.

Linha genealógica da enferma e outros antecedentes: não teve ascendentes alcoólicos nem loucos, mas há algures tuberculosos e cancerosos. Aos 11 anos teve uma doença grave que parece ter sido uma febre tifóide. Quando tinha 13 anos, deu uma queda da altura de 3 metros e meio, sentindo uma dor aguda na região lombar sacra. Como a queda foi determinada por uma emoção violenta de temor, ficaram-lhe dela penosas recordações, surgindo antes os primeiros distúrbios dispépticos, com depressão neuro-psíquica : dois fenómenos paralíticos de que se libertou mais tarde. Aos 20 anos foi para o leito, por motivo dos seus padecimentos se terem agravado.

As impressões clínicas da observação acentuam: Aspecto perfeito à primeira vista, normal intelectiva, afectiva e volitivamente, mas depressa se revela portadora de um equipamento de ideias fixas, estereotipadas e sistematizadas, vivendo e sentindo intensa e sinceramente, sem sombra de mistificação ou impostura, ideias que determinam a abstinência.

E quanto a sintomas fisionómicos e morais: expressão viva, perfeita, meiga, bondosa, acariciante; atitude sincera, despretensiosa, correntia. Nem exotismo nem melifluidades ; nem timidez nem exaltamento de voz. Conversa natural, inteligente, subtil.

Na vigilância feita à doente participaram várias senhoras da mais absoluta seriedade. D. Maria Guichard, D. Amélia Romualdo Ribeiro, D. Irene e D. Júlia F. Madureira Guedes, D. Rosa e D. Helena Gomes de Araújo, D. Helena G. Araújo Silva, D. Maria de Sousa Pinto e D. Maia Alice Silva Rosas. Algumas destas senhoras foram convidas a verificar a doente por se mostrarem incrédulas quanto à abstinência. E essa vigilância durou 40 dias, sendo aplicados à doente panos frescos na fronte e um saco impermeável no epigastro, com soluções de sal amargo, aliás por ela ignorados.

O médico interrogou-a longamente, tentando convencê-la a alimentar-se. Que não: sofre por amor de Deus – redargue.

Morrerá se continuar a não comer. Por isso, faz-lhe saber que vai começar a tentar uma pequena alimentação. Ela insiste na recusa: «Deus não quer que eu coma».

— Mas repugnam-lhe os alimentos ?

— Não. Até por vezes tenho saudades da comida.

Concretamente – a observação e a vigilância permitiram verificar estes factos excepcionais: a doente não comeu, não bebeu, não urinou, não defecou. Citando Charcot, anota-se que a falta de apetite (anorexia mental) é dos acidentes mais graves nos histéricos. Em parte é o caso da Alexandrina. Mas só em parte. É que nela a abstinência é total, acompanhada pela paralisação da função excretora dos rins; quer dizer, nenhumas micções, como também nenhumas defecções.

O documento é uma notável peça científica e conclui desta maneira, em que o autor empenha a sua probidade profissional e pessoal:

Trata-se duma neurópata. Verificou-se durante 40 dias completa abstinência de alimentos e bebidas, o que leva a crer que tal situação possa ter notável precedência. Durante esse período não defecou nem urinou, o que ultrapassa os caos de aneura (?) conhecidos.

A despeito da normal perda de peso, conserva uma frescura e resistência impressionantes. Finalmente, oferece o aspecto dum caso que a Medicina sabe em grande parte explicar, mas não deixa contudo de patentear alguns pormenores que, pela sua importância de ordem biológica, tais a duração da abstinência de líquidos e anúria, impõem uma suspensão, aguardando que uma explicação clara faça a necessária luz.

A ciência não é definitiva, como se vê. O que é incontroverso é o facto da doente viver há anos – sem levar à boca nem alimentos nem bebidas.

Uma mulher que não come nem bebe
há 6 anos e vive perfeitamente!...

Jornal de Notícias, 8/11/47

A propósito da reportagem que publicámos com este título no pretérito dia 4, recebemos, com o pedido de publicação, do Sr. Dr. Manuel Augusto Dias de Azevedo, médico assistente da Alexandrina Maria da Costa, a seguinte carta-esclarecimento:

«Ex.mo Sr. Director do « Jornal de Notícias » :

Ribeirão, 6 de Novembro de 1947.

No « Jornal de Notícias », de que V. é digno Director, de 4 do mês corrente, na 2.ª página, vem um artigo intitulado « Uma mulher que não come nem bebe há 6 anos… » e em que há, pelo menos, duas « expressões », em que, como médico assistente dessa doente, eu não posso concordar. Nesse artigo, embora escrito de muito boa fé, se diz que é uma neurópata e portadora de ideias fixas. Em resposta, venho pedir a V. se digne mandar publicar no « Jornal », que tão brilhantemente dirige, um relato do que então, em 1943, escrevi e entreguei a alguém, a respeito do estudo da dita doente, feito pelos Srs. Dr. Gomes de Araújo e Prof. Doutor Carlos Lima e por mim, o que desde já muito agradeço a V.

« Ligeiras considerações sugeridas pelo Relatório do Sr. Doutor Gomes de Araújo, relativo ao internamento, jejum absoluto e anúria de, pelo menos 40 dias, no Refúgio da Paralisia Infantil, da Foz do Douro, da doente Alexandrina Maria da Costa, de Balasar ».

Antes de iniciar estas considerações, quero afirmar o seguinte :

O caso de abstinência de sólidos e líquidos e ainda da anúria da Alexandrina Maria da Costa, de Balasar, existente há meses e verificado, durante 40 dias, por testemunhas fidedignas, é inexplicável à face dos conhecimentos actuais da Ciência e até contrário às leis registadas por esta, leis essas que nunca poderão ser naturalmente alteradas, num ou noutro caso, a não ser por quem as estabeleceu. Esta afirmação infere-se do atestado assinado pelo Prof. da Faculdade de Medicina do Porto, Sr. Doutor Calos Alberto Lima, homem de saber e probidade indiscutíveis e pelo actual médico assistente da doente, devendo notar-se que o Sr. Doutor Gomes de Araújo, dotado de inteligência tão brilhante que o seu anseio, se pudesse, era explicar tudo naturalmente, o que é próprio de todo o cientista, julga um caso único e desconhecido nos anais da Medicina (embora nós conheçamos casos idênticos na hagiografia mística – ver La stigmatisation, t. II, pág. 182, por Dr. Imbert Goubeyre), terminando o seu relatório por dizer que, na sua interpretação, ficamos suspensos, « aguardando que uma explicação clara faça a necessária luz ». Ora, apresentando a doente fenómenos que o Sr. Doutor Carlos Lima e o médico assistente dela julgam místicos (autênticos êxtases) e que o Sr. Doutor Gomes de Araújo, apesar de os observar, não classifica nem razoavelmente podia classificar de origem histérica ou devidos a qualquer psico-nevrose, justo é que os Teólogos façam, para complemento de estudo da doente, o estudo desses ditos fenómenos, observados às quinze horas oficiais das sextas-feiras. Esses fenómenos, pelo seu início, duração e fim, pelas circunstâncias várias que os acompanham e ainda pelas palavras pronunciadas e pelo valor dos conceitos que elas exprimem, são inconfundíveis com os tristes fenómenos que as histéricas apresentam, por vezes, e os grandes mestres da histeria referem nos seus tratados. Feitas estas afirmações que julgo oportunas, e indispensáveis e irrefutáveis, elucidando consequentemente, pela sua verdade, este caso maravilhoso, aguardamos, para complemento necessário do estudo deste caso, que a verdadeira Mística se pronuncie pelos seus legítimos representantes e por ordem de quem de direito, e vou passar às supra-mencionadas considerações.

1.ª Consideração : – Ficou provado, pelo que escreveram os três médicos encarregados de estudar a doente Alexandrina Maria da Costa, de Balasar, que estes senhores não sabem explicar satisfatoriamente este caso extraordinário, à face dos dados actuais da ciência, dizendo dois dos Relatores que acham o caso inexplicável e que a Mística também sobre ele se deve pronunciar, e afirmando o outro Relator que devemos ficar suspensos, aguardando « que uma explicação clara faça a necessária luz », ou talvez melhor, ficou provado que os três Relatores afirmam, por palavras e hipóteses diferentes, a mesma coisa:

Não sabem, à face da Ciência, explicar plenamente este caso admirável.

2.ª Consideração : – A paraplegia, em 26 de Maio de 1943, poderia parecer melhorada, em relação à que foi observada, em 15 de Julho de 1941, porque o exame, nesta data, foi feito, após uma viagem dolorosa de cerca de 50 quilómetros, e, em 1943, a doente, embora repassada de dores, estava em descanso. Esta circunstância não deve ser olvidada, para bem julgarmos a gravidade da paraplegia numa e noutra época. Não me parece, como médico assistente da doente, que a paraplegia fosse melhorada, mas sim agravada, no decorrer desses dois anos.

3.ª Consideração : – Ninguém, depois dum estudo atento, com razão poderá afirmar que o cérebro da Alexandrina Maria da Costa é instável e portador de ideias fixas, porque a doente sempre apresentou o mais nítido equilíbrio mental e o mais admirável bom-senso, pelo menos durante estes três anos da minha assistência clínica, e as suas ideias fixas (sem prejuízo de todas aquelas ideias que deve ter quem sensatamente quer viver neste mundo, cumprindo a sua missão e o seu dever perante Deus e os homens) são a maior glória de Deus, a conversão dos pecadores e a salvação das almas. Se isto ou coisa equivalente é ter ideias fixas, no sentido depreciativo que a Psiquiatria lhe atribui, então os mais ilustres luminares da Ciência, os maiores heróis da santidade e das grandes e elevadas acções que a História regista não passaram de doidos ou diminuídos mentais e a fina-flor da humanidade – as melhores almas do mundo, de que Renan lastimava ver-se isolado – podem ser acusadas de ter ideias fixas, recaindo sobre elas a desconfiança de serem histéricas, em maior ou menor grau, ou possuídas de qualquer psiconevrose. Felizmente passou o tempo, para os maiores intelectuais contemporâneos, em que a actividade mística era tida como uma manifestação mórbida, passou o tempo em que os místicos eram tidos como desequilibrados, histéricos, anormais, psicasténicos, degenerados, e eu sei lá que mais. Bergson, contra muitos, provou, na sua obra «Les deux sources de la morale et de la religion», que a mística era a actividade suprema do espírito humano, mostrando que os místicos cristãos não eram loucos nem desequilibrados, mas sim o próprio modelo do equilíbrio, da robustez e da saúde do Espírito. E o grande Carrel chegou a essa mesma conclusão, no seu « O homem, esse desconhecido ». E assim poderemos, sem receio de desmentido razoável e que o tempo justifique, afirmar que a Alexandrina Maria da Costa é dotada dum cérebro cheio de equilíbrio e dum admirável bom-senso, sendo as suas ideias fixas aquelas que deveriam possuir todos os cristãos que quisessem deveras honrar o seu Mestre e Senhor. É que não tem cérebro instável nem pode ser suspeita de histeria aquela que, tendo carácter firme, constante e resoluto, é senhora de si e das suas paixões e verdadeiramente fiel às suas resoluções, até ao seu cumprimento exacto. Não tem cérebro instável nem pode ser suspeita de histeria quem, desde a sua infância, prometeu a Deus servi-Lo com toda a sua alma e coração, e sempre o tem feito, com a maior constância e heroísmo, no meio das maiores dores e das maiores alegrias espirituais, sem cambiantes de humor e sem a menor incoerência nos seus actos, nas suas palavras e nas suas atitudes, praticando as virtudes cristãs, com a maior perfeição e com o mais perfeito bom-senso, sem imaginação desregrada e sem qualquer extravagância moral ou física, dominando sempre os movimentos do seu coração e as suas paixões. Os histéricos, segundo todos os mestres da histeria, têm uma imaginação ardente, uma grande tendência para a mentira, para a vaidade, para o coquetismo, para a irascibilidade, para o exagero de tudo, e nós podemos ver que a Alexandrina tem uma imaginação bem regulada a ponto de ninguém lhe notar qualquer imoderação nas suas atitudes ou palavras, e um amor inexcedível verdade, é a humildade personificada, no sentido cristão da palavra, é sensata, muito simples, embora muito inteligente, paciente com heroísmo, nunca triste nem melancólica, sempre serena e resignada, sempre ordeira e coerente, em nada exagerada, sendo seu gosto que ninguém se ocupe dela com particularidades censuráveis. Isto é, a Alexandrina não apresenta os menores sintomas, nem da grande, nem da pequena, nem da benigna histeria. Lembrarmo-nos pois de classificá-la histérica, porque os jejuns totais e as anúrias prolongadas matam, e ela não morreu, durante os 40 dias de anúria e abstinência absoluta de sólidos e de líquidos, constatados por várias testemunhas com o maior rigor, isto não é explicar um efeito por uma causa proporcionada – base de toda a ciência – é lamentavelmente esquecer o conselho muito bem dado, de que devemos « aguardar que uma explicação clara faça a necessária luz ». Classificá-la de histérica, porque as suas ideias fixas, à volta das quais andam todas as outras ideias, são o amor de Deus e a salvação das almas, é certamente preconceito que Renan muito admiraria, nos seus dias de saúde e vanglória, mas que nem todos perfilharão.

4.ª Consideração : – Esta doente não se alimenta, porque todo o alimento ingerido é vomitado, à custa de muitas dores e aflições, e, depois de várias experiências, neste sentido, sabe que passa melhor não se alimentando. É por esta razão que não se alimenta, embora sinta ânsias de ingerir alimentos, e afirma que a ninguém disse que sabia por Deus ou qualquer outra individualidade que não devia alimentar-se. Como ainda vive, sobre o caso pode ser interrogada.

5.ª Consideração : – O resultado da análise do sangue feita depois de várias semanas de jejum absoluto e concomitante anúria, constatados por testemunhas (uma maravilha que não poderá ser explicada à face das leis da Ciência), por si só, demonstrará a importância deste caso, sendo para salientar que a doente não hibernou nem podia hibernar, mas manifestou sempre a mais activa e normal actividade psíquica, recebendo, no último dia de internamento, várias centenas de pessoas, a todas prestando atenção e falando.

6.ª Consideração : – Atendendo ao ptialismo que a trepidação da automaca, na viagem, provocou à doente, não seria para admirar que só esse ptialismo fizesse perder à doente 1.100 gramas, mas há a registar que houve um equívoco nas duas pesagens : na primeira pesagem, estava com dois travesseiros e, na segunda pesagem, somente com um travesseiro. Por isso, se houve perda de peso, essa foi insignificante.

7.ª Consideração : – Os eminentes Profs. Sr. Doutor Carlos Lima e Sr. Dr. Roberto de Carvalho, e também o médico assistente, afastando o diagnóstico da histeria, pensam que a paraplegia da doente é devida a uma mielite, e o Sr. Dr. Gomes de Araújo, apesar de pôr « de parte a pretensão especulativa da natureza dos males », respeita também, como se vê na página 3 do Relatório, « a hipótese da organicidade », constando ainda que não há « razão para eliminar a hipótese de paralisias orgânicas ». E, para encobrir a nossa ignorância em explicar, como médicos, a abstinência total de alimentos e líquidos da doente, não precisamos da palavra – possível histeria – pois, se não sabemos tudo de que ela é capaz, sabemos um pouco do que lhe é possível fazer, atentas as leis e observações feitas da Fisiologia e da Bioquímica. Deixemos, agora, em paz a palavra « Histeria », com que se pode de facto explicar muita coisa explicável, mas também com que se encobre muita ignorância das coisas, e de que muito tem abusado a incredulidade de todos os tempos, tentando em casos extraordinários, dispensar a intervenção directa de Deus. Portanto, como muito bem diz o Sr. Dr. Gomes de Araújo, no seu Relatório, « aguardemos que uma explicação clara faça a necessária luz ».

8.ª Consideração : – Enquanto a descabida influência do director espiritual da doente sobre o jejum absoluto desta, desde já fica referido o seguinte: nos fins de 1941, o Director espiritual desta doente teve, por trabalhos diferentes que lhe foram confiados, de deixar a sua assistência espiritual, que até então vinha, mensalmente, prestando à doente. Em fins de Março de 1942, deixou a doente de alimentar-se e, em Janeiro de 1943, escreveu esse Director a alguém, além de outras coisas, o seguinte :

« Consta-me que a Alexandrina não come já há uns poucos de meses ; gostava de saber com palavras do meu amigo tudo o que há de exacto e o que, à luz da ciência, pensa sobre o caso ».

Isto significa que o Director espiritual da Alexandrina não teve a menor influência no jejum absoluto de alimentos, que há meses esta vinha fazendo.

9.ª Consideração : – Finalmente, será justo manifestar os nossos sinceros agradecimentos ao Sr. Dr. Gomes de Araújo, muito distinto médico-especialista e ilustre fundador e Director do Refúgio da Paralisia Infantil, da Foz do Douro, única instituição deste género em Portugal, e talvez a primeira no mundo, pelos cuidados incessantes e inexcedível dedicação com que se dignou, à custa de muitas horas perdidas para os seus imensos afazeres e até para o seu merecido repouso, averiguar qual da duas coisas deveria ser constatada hoje :

Se uma censurável ingenuidade da minha parte ou, então, um facto verdadeiramente extraordinário nos anais da Medicina, e inexplicável à face da Ciência. O que ficou, porém, constatado está à vista de quem tem olhos para ver.

Ribeirão, 31 de Julho de 1943.

Dr. Manuel Augusto Dias de Azevedo

O « caso » de Balazar
Palavras amigas e de verdade

Pelo Dr. Dias de Azevedo

(Diário do Norte, 30 de Junho de 1953)

Depois de ligeira leitura, veio-me à memória aquele triste caso de S. Leonardo de Porto Maurício ter ido dizer ao Papa que S. Paulo da Cruz e seus companheiros eram homens perigosos e intrujões. Não teria ido de bom grado e sim por obediência, mas foi – este é o triste facto. No entanto, estes dois santos e grandes missionários foram canonizados no mesmo dia.

Lendo a história, mestra da vida, surgem-nos coisas que parecem rapaziadas, mas as rapaziadas, todos nós o sabemos, têm os seus limites e, ultrapassados eles, há a desordem com as suas consequências funestas.

Quero presentemente fazer referência a uma mulher, com uma mielite há 28 anos, paralítica, em abstinência absoluta de alimentos há 12 anos, verificada essa abstinência absoluta de sólidos e líquidos, durante 40 dias numa Casa de saúde, não estando mais tempo sob vigilância contínua porque os Médicos Especialistas não quiseram, e vivendo há 12 anos nessa abstinência, simplesmente bebendo num ou noutro dia, por imposição clínica, uma ou outra colherinha de água simples para verificar como os rins funcionam, tendo até há pouco, mensalmente, verdadeiras menorragias (hoje não as tem, pois a sua idade é de 48 anos), de vida intelectual e afectiva intensas, de faculdades e sentidos normais, sem os menores sintomas de histeria ou outra neuro-psicose, passando dias e noites sem dormir ou dormindo muito pouco, conservando invariavelmente, ou com pequena variação, o mesmo peso, de pulsações e tensões arteriais normais, sustentando conversas inteligentes sem o menor deslize intelectual, durante horas ou na mesma posição, deitada sobre uma tábua, apresentando também o seu sangue normal nos seus elementos constituintes ou de desassimilação, sendo este facto verdadeiramente extraordinário, que a Ciência não pode satisfatoriamente explicar, não podendo consequentemente essa doente ser comparada com qualquer histérica ou anoréxica mental ou santa fingida. Além disso, essa mielítica apresenta outros fenómenos extraordinários que os médicos não podem classificar e que devem ser da competência de autoridades em Ascética e Mística.

No mesmo dia 20, assim o afirmava o Diário do Norte num artigo repassado de elegância, correcção e carinho. Ninguém dela se abeira supersticiosamente, mas para pedir a sua intercessão, perante o nosso Deus e Senhor, como se tem feito junto de outras belas almas, como o Santo Padre Cruz, por estarem habituados a ver que o Senhor vai realizando, nela e por ela, maravilhas e defere, por vezes, alguns dos seus grandes e inúmeros pedidos. Tem havido por ela várias conversões para Deus, e o Mestre ensinou que pelos frutos se conheceria a árvore. Há coisas neste caso que não podem ser explicadas nem natural nem preternatural-mente.

É certo que, pela História e pelos autores místicos, sabemos bem o que se tem feito a almas idênticas. No entanto, é bom recordar o que dizia nosso Senhor à bem-aventurada Ana Maria Taigi : « Escuta, minha filha: tu encontrarás muitas almas falsas e pérfidas. Tu serás escarnecida, insultada, desprezada, caluniada; mas tu suportarás tudo isso por meu amor e eu te asseguro, como Deus grande que sou, que os teus perseguidores me darão conta duma tal conduta… » Almas assim são por vezes verdadeiros pára-raios da Justiça Divina na terra, almas de alta e autêntica imolação por todos nós, que só na eternidade saberemos o muito que lhe devemos. Por toda a parte se nega o Sobrenatural e, em presença de casos só pelo Sobrenatural explicáveis, surgem fariseus a quererem negar as obras do Mestre. Mais : pessoas que têm feito as suas visitas a essa vítima, para recordação, têm obtido, sem qualquer reclamo, por preços a todos acessíveis, bons catecismos e livros idênticos, de autores consagrados da nossa Arquidiocese, imaginando-se bem o trabalho que isso dá em discernir as respectivas importâncias, pertencentes a este e àquele autor. Só por apostolado é que tudo isso se tem feito, e não por negócio ou por propaganda deste caso, que sempre quisemos, perante o público, ocultar, reservando-nos o direito de contestar qualquer mentira sobre ele escrita para a publicidade. Que o diga o Pároco da própria freguesia de que se fala que, se é um pouco cansado de pernas, ainda tem inteligência de sobra para ensinar os ignorantes. A qualquer hora que chegue dos seus afazeres ou viagens, seja de manhã, de tarde ou à noite, vai, desde há anos, dar a Sagrada Eucaristia a essa mártir, e nisto estará tudo dito. De resto, sabemos bem que não são estas graças extraordinárias de Deus, concedidas para nosso bem, que dizem qual o real valor moral das pessoas a quem são concedidas. O heroísmo da respectiva vida e virtudes é que vale e pesa na balança de Deus, no prémio a receber. Não se trata pois de qualquer chamariz e muito menos de injustificadas beatificações.

Só mais uma palavra: recordando o Evangelho, estamos calados, mas não temos culpa de que, por isso mesmo, « clamem as pedras ». E, para explicar certos casos, não nos venham falar na fé que cura, de Charcot, na sugestão, de Bernheim, nos eflúvios, do Dr. Baraduc, no sopro curador das multidões, de Zola, nas forças desconhecidas e ainda não estudadas, de Anatole France, e muito menos em histeria ou mentalidades inferiores e impróprias deste século, porque sabemos que tudo isso, como explicação de certos factos inegáveis, assemelha-se a trastes abandonados para o nosso serviço diário. E aos que passam a vida a falar em Ciência, sem saberem o que isso é, lembramos as palavras daquele médico de Pádua, citado por Bourget : « Vivi oitenta anos, estudei sempre e só aprendi uma coisa : a não ignorar a minha ignorância ». Que sumidades intelectuais por aí andam ignoradas !

Ribeirão, 24 de Junho de 1953.

N. da R. – Informamos os nossos leitores de que o Sr. Dr. Dias de Azevedo é o médico assistente, há mais duma dezena de anos, da Alexandrina, a doente de Balazar.

Para qualquer sugestão ou pedido de informações, pressione aqui :